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Como um livro de princesas africanas virou alvo de discussão religiosa

Tentativa de censurar livro sobre cultura africana reforça a necessidade de debates sobre o papel da educação na integração da sociedade

POR:
Camila Cecílio
Ilustrações do livro Omo-Oba: Histórias de Princesas Africanas, da escritora Kiusam de Oliveira

A tentativa de pais de alunos da Escola Sesi de Volta Redonda, no interior do Rio de Janeiro, de censurar um livro infantil que aborda a cultura africana, gerou polêmica e indignação nas redes sociais. Omo-Oba: Histórias de Princesas, da escritora Kiusam de Oliveira, seria substituído depois de a instituição ter sido questionada sobre o conteúdo da obra. Com a repercussão negativa, o Sesi voltou atrás e disse que a decisão foi tomada de forma equivocada. Mas aí já era tarde: a discussão sobre o que cabe à escola e aos pais quando se pensa em diversidade deve tomar fôlego em todo o país.

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O episódio desencadeou uma série de debates sobre racismo e preconceito afro-religioso. No imbróglio, também há a discussão sobre quais conteúdos devem ser apresentados para as crianças em um mundo cada vez mais conectado e globalizado. No cardápio de livros oferecidos às nossas crianças e adolescentes estariam todos os nutrientes intelectuais necessários para a sua formação e informação?

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Para a doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP), Neide Noffs, o caso mostra que a comunidade não está acompanhando a evolução histórica. “Muitas famílias ainda estão desatualizadas, querem repetir uma história do passado. Então, nesse momento crucial de mudanças, é preciso explicar a esses pais que vivemos outra realidade da nossa história, em que não falamos mais em cultura, mas sim culturas, no plural”, observa.

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As famílias, segundo a especialista, têm a responsabilidade de questionar a escola. Porém, antes de qualquer decisão, cabe à instituição o compromisso e a responsabilidade de explicar aos pais os motivos da adoção de conteúdos que abordem as mais diversas culturas. Na visão de Neide, ninguém deve cercear conhecimentos de qualquer natureza e, em relação ao caso de Volta Redonda, diz que a sociedade tem uma dívida com a cultura afro. “É uma dívida do passado, mas é simbólica, então temos que substituir a palavra ‘dívida’ pela palavra ‘respeito’ e compreender que a cultura afro faz parte da cultura brasileira”.

Comunicado enviado aos pais da escola do Sesi de Volta Redonda sobre a retirada do livro Omo-Oba postado por Juliana Pereira de Carvalho: discussão se espalhou nas redes sociais   Foto: Reprodução/Facebook

Combate ao preconceito

Mãe e professora de História da rede pública fluminense, Juliana Pereira de Carvalho sentiu o peso de toda essa situação ao chegar em casa após participar de um ato que pedia justiça pelas mortes da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, assassinados no dia 14 de março no Rio de Janeiro. Ainda abalada com os acontecimentos, a educadora ficou sabendo da decisão do Sesi de substituir o livro Omo-Oba e ficou indignada. “Quando meu filho de 8 anos me entregou o comunicado, pensei: é o fim do mundo, só faltava essa! Naquele instante senti o peso do preconceito afro-religioso”.

A publicação de Juliana teve cerca de 6 mil compartilhamentos e não demorou para chegar à autora do livro, Kiusam de Oliveira, que também é doutora em Educação pela USP e ativista do movimento negro. “Eu já esperava essa mira no livro, tendo em vista o contexto político que se instaurou no Brasil”, disse.

Omo-Oba: Histórias de Princesas privilegia o recontar de mitos africanos, muito divulgado nas comunidades de tradição ketu e que são pouco conhecidos pelo público em geral. Eles reforçam os diferentes modos de ser femininos, diz a sinopse da obra. Seis mitos sobre princesas africanas são apresentados com o objetivo de fortalecer a personalidade de meninas de todos os tempos, de acordo com a autora. Um dos trechos do livro, que já tem mais de 30 mil cópias vendidas, diz que “Oduduwá criou o planeta Terra e, se uma mulher teve esta capacidade, o poder está com ela”.

“No país em que a gente tem uma literatura que, quando o negro aparece, geralmente é de forma caricaturada, devemos ter muito cuidado ao lidar com crianças, com a representação dessas negras e negros nos livros. Então, essa discussão nas escolas é algo fundamental para que as crianças negras consigam se enxergar nessas histórias para elevar sua autoestima e fortalecer as suas identidades, preparando a sua resistência no combate ao racismo”, diz Kiusam.

Para Juliana, que é negra e umbandista, a história só ganhou repercussão porque a temática vai diretamente ao encontro da morte de Marielle Franco, mulher negra que se destacou na favela da Maré, no Rio. “Se a nossa geração tivesse lido mais história de princesas africanas, talvez Marielle ainda estivesse aqui com a gente”, diz. A professora enfatiza que a execução da vereadora marca uma posição política, que é a representatividade dos negros no Brasil. “Infelizmente a morte dela foi essencial para impulsionar esse tipo de movimento”.

A escritora Kiusam de Oliveira com seu livro Omo-Oba: Histórias de Princesas Africanas   Foto: Divulgação

Decisão equivocada

O Sesi Rio publicou nota oficial na qual assume o erro da escola de Volta Redonda no tratamento do assunto e anuncia que não mais adotará livro adicional à obra de Kiusam de Oliveira. De acordo com a instituição, além de cumprir a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e suas complementações, que tornou obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena, o Sesi está empenhado e comprometido com a questão da diversidade cultural. Omo-Oba foi adotado como livro paradidático na disciplina de História e começará a ser utilizado por alunos do 3º ano do Ensino Fundamental ainda neste mês.

Recomendada pelo Ministério da Educação (MEC) e utilizada em escolas de todo o país desde 2009, a obra foi escolhida pela qualidade do conteúdo, segundo o gerente de Educação Básica do Sesi Rio, Giovanni Lima. “Vamos trabalhar diretamente com as famílias para mostrar o motivo pelo qual não vamos mudar livro algum, que a proposta é essa e segue o projeto pedagógico que a rede Sesi busca para seus alunos, na formação e aprendizagem, de forma plural, multicultural e que contemple todas as discussões que temos na sociedade de hoje”. Para que equívocos como esse não se repitam, o Sesi fará uma "reciclagem" com toda a sua equipe pedagógica.

Por seu lado, a autora do livro afirma que os danos são irreparáveis para as africanidades brasileiras e que a atitude da escola já serviu de modelo para outras instituições. Para Kiusam, o grupo de pais que questionou o livro não leu o conteúdo, do contrário veria que não há qualquer enfoque religioso. Na verdade, os contos são resultado de 25 anos em sala de aula, período em que Kiusam, como professora, percebeu como as crianças negras sentem falta de se verem representadas em livros dedicados ao público infanto-juvenil.

Kiusam se dispôs a participar de uma roda de conversas com os educadores da rede Sesi para discutir as temáticas abordadas em seu livro. O encontro deverá ocorrer em abril, durante um evento realizado pela instituição, no Rio de Janeiro.

Formação de professores

A professora Juliana disse que está satisfeita com a repercussão de sua postagem e avalia que todo o episódio trouxe à tona a importância da formação dos educadores. A educação, segundo ela, também é território de disputa política e, nesse contexto, chama a atenção para a lei 11.645/2008, que determina o ensino de história e cultura africana e indígena nas escolas, e que até hoje não é fiscalizada.

Por conta disso, a educadora diz que esse é um momento importante para que a categoria consiga pensar e organizar políticas públicas que contemplem, de fato, a formação de professores. “É preciso, imediatamente, compreender a importância de valorizar novas epistemologias que têm muito a contribuir com a construção desse país, no sentido de termos uma sociedade mais justa e igualitária”.

 

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