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Não precisamos escolher entre competências cognitivas e socioemocionais

Para a pesquisadora Rocio Garcia-Carrion, a chave está nas comunidades de aprendizagem e como vencer a resistência de alguns professores

POR:
Soraia Yoshida
A pesquisadora Rocio Garcia-Carrion defende o acesso a pesquisas com evidências para a formação inicial dos professores   Foto: Ricardo Toscani

Para que um menino ou menina possa aprender e se desenvolver, precisa do professor, da família e da comunidade. E, nesse processo, o aprendizado cognitivo soma-se ao desenvolvimento das habilidades socioemocionais. “Não se trata de escolher entre cognitivo ou socioemocional”, afirma a pesquisadora Rocio Garcia-Carrion, da Universidade de Deusto, em Bilbao, na Espanha. “Vamos trocar o “ou” pelo “e”: cognitivo e socioemocional. A ciência da aprendizagem nos mostra que está tudo interligado”.

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Rocio é defensora do movimento das comunidades de aprendizagem, que engloba escolas em toda a Espanha, e vem sendo implantado com sucesso em algumas redes brasileiras de ensino público. A convite do Instituto Natura, que apoia as comunidades de aprendizagem com cursos à distância e formações, ela falou sobre sua experiência para professores.  “A comunidade de aprendizagem coloca sua ênfase na participação das famílias dentro da comunidade”, diz ela. “Sabemos que a aprendizagem das crianças se desenvolve em muitos espaços, através da interação social, com as pessoas que são importantes em sua vida. E a família é fundamental nesse processo”.

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Em seus estudos, como “Escolas como Comunidade de Aprendizagem: tornando possível a viabilidade não testada”, publicado em agosto de 2016, Rocio comprovou como escolas que encaravam desafios enormes foram capazes de obter êxito e fazer a diferença. “Compreendendo que é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança, as escolas como comunidades de aprendizagem juntam todos para desenvolver uma compreensão comum do ethos da escola que promove educação de qualidade para todos”, cita em seu artigo. Conclusões de casos de sucesso demonstram aos professores como implantar essas metodologias em sala de aula – e não “neuromitos”, segundo a educadora. “Se as formações para os professores forem baseadas em teorias de pseudociências, neuromitos que não trazem benefícios claros para suas crianças, eles vão se tornar resistentes a novas ideias”, garante.

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Em um dos encontros dos quais participou com professores brasileiros, a discussão sobre teoria e evidência levou à experiência de alunos com a leitura do clássico literário “A Odisseia”. Durante uma tertúlia literária dialógica, os alunos discutiram sua compreensão das agruras enfrentadas por Ulisses. Como é de praxe nas tertúlias, que promovem a construção coletiva de significado, os alunos e professor realizaram uma troca direta de opiniões e reflexões sobre a obra. “Os alunos compreenderam o sentimento de Ulisses de se sentir sozinho e como é possível ajudar amigos e amigas. E nessa discussão se desenvolvem competências socioemocionais, sentimentos de apoio e solidariedade que vão facilitar relações livres de violência, tudo isso sem renunciar à aprendizagem cognitiva”, cita a pesquisadora. Veja a seguir os principais trechos da entrevista que Rocio Garcia-Carrion concedeu à NOVA ESCOLA:

Em seus estudos, você cita que família e comunidade têm uma grande influência no processo de aprendizagem de uma criança. De que forma podem melhorar o aprendizado?
A comunidade de aprendizagem coloca sua ênfase na participação das famílias. Os estudos comprovaram que existem algumas formas de participação das famílias no aprendizado que influem de maneira significativa no sucesso educacional. Quando falamos de uma escola enquanto comunidade de aprendizagem, o papel da família é essencial. E é um aspecto, muitas vezes, do qual a escola tradicional tem se descuidado. Sabemos que o desenvolvimento da aprendizagem dos meninos e meninas se produz em muitos espaços e na interação social, com as pessoas que são importantes em sua vida. Ao incorporarmos as famílias às aulas, organizando as classes como ambientes de aprendizagem dialógica, como grupos interativos, as famílias – mães, pais, irmãos, irmãs, avós, avôs, todas as pessoas que se relacionam na casa com a menina ou menino – entram no diálogo do processo educativo.

A participação educativa das famílias foi a que mais influiu para que as crianças tivessem uma aprendizagem maior, tanto em nível cognitivo quanto emocional e social. A família presente em um espaço de aprendizagem transmite valores, uma mensagem para as meninas e meninos de que a educação é importante.

No Brasil é frequente a discussão de que se um aluno tem dificuldades de aprendizagem, a causa poderia estar em uma família desestruturada. Será que nesse caso não estaríamos falando de comunidades desestruturadas? O que você pensa sobre isso?
O que sabemos é que a escola é um reflexo da sociedade, então se a aprendizagem está vinculada ao contexto, então nas localidades que têm dificuldades econômicas e sociais, habitualmente as famílias são o reflexo do que acontece nessas comunidades. Em comunidades cujo contexto é de pobreza ou desigualdade econômica, encontramos famílias em situação de desemprego e baixa alfabetização. Mas eu acredito que não devemos colocar o problema na família. Porque senão a tendência será c colocar a culpa no que a família não possui, no que falta à escola. A orientação está em como transformar as dificuldades em possibilidades, recorrendo às palavras de Paulo Freire: “O que as comunidades fazem não é olhar para o problema, ou o déficit, e sim olhar para as possibilidades existentes”. Famílias que possuem alguns integrantes analfabetos, quando participam de grupos interativos, dão início a uma transformação, de modo que essas famílias participam de seu próprio processo de Educação – transformando a relação educacional, em benefício das crianças, e também das próprias famílias. Em nossos estudos, mostramos com evidências científicas que essa transformação é possível.

Rocio Garcia-Carrion fala sobre a busca por evidências para fundamentar a aprendizagem   Foto: Ricardo Toscani

Em um de seus estudos, há uma ênfase em como professores podem ser inspirados por histórias de sucesso. Mas não foi sempre assim? O que mudou para voltarmos a falar nesse ponto?
Muitos estudos já demonstraram que a qualidade do ensino influi diretamente no sucesso da aprendizagem das crianças. O problema é que, durante muitos anos, a formação que os professores recebiam na universidade não era baseada em evidências científicas. Nos países que demonstraram alcançar melhores resultados, a formação inicial dos professores apresentou melhoras porque estava baseada em evidências que haviam demonstrado ser melhores para a Educação. O professor precisa saber que a chave para o processo de aprendizagem de sucesso está nas interações com todas as pessoas que se relacionam com as crianças. Estamos falando de interações dialógicas que transformam o contexto baseadas no diálogo entre iguais e com pessoas muito diversas. E não, por exemplo, pensar no aprendizado baseado nos conhecimentos prévios para adaptá-lo e assim ensinar aos alunos. Percebe? É preciso que esses professores se formem com base nas melhores evidências que temos hoje e tenham acesso às investigações de maior impacto social e isso que lhes oferecemos nas universidades e também a formação permanente. Quando esses professores colocam o resultado dessas evidências em prática, a Educação só tem a ganhar, desde a formação do professor à aprendizagem dos alunos.

Você acredita que esse sucesso está ligado também ao fato de colocar os professores no lugar dos alunos nesse processo de aprendizagem?
Sabemos que muitas vezes os professores mostram resistência a essa mudança...

E como vencer essa resistência?
Em primeiro lugar, é preciso entender porque eles têm essa resistência. Durante anos, muitos professores participaram de formações em que se pregava uma teoria que eles tentavam aplicar em suas aulas, sem resultado. Há um foco muito grande nos resultados. E como vencemos as resistências? Demostrando teorias, estudos e práticas baseadas em evidências bem-sucedidas. Nós mostramos aos professores uma evidência de que aquela metodologia funcionou em um grande número de escolas, qual o rigor com que o estudo foi aplicado, e os resultados. Com isso, nós comprovamos que muitos professores voltaram a se encantar com sua profissão. Como se promove esse reencanto? Através do diálogo que leva a uma reflexão com os formadores, os pesquisadores e toda a comunidade que participa do processo educacional. Ao incorporar conhecimento científico nesse diálogo, permitimos que os professores possam refletir sobre o que estão fazendo agora e o que poderão fazer com esse conhecimento em sala de aula. Portanto, dialogar com base em uma teoria e ciência de aprendizagem que eles sejam capazes de aplicar e comprovar que funciona na prática. Há um movimento de professores nas redes internacionais de comunidades de aprendizagem.

Como as comunidades de aprendizagem de educadores funcionam na Espanha?
Os professores, diretores e pesquisadores se reúnem pessoalmente ou via internet no que chamamos de tertúlias pedagógicas dialógicas, nas quais eles discutem livros importantes para a Educação, como obras de Len Vygotsky, Jerome Bruner e Paulo Freire, um dos educadores mais influentes em todo o mundo. Durante esses encontros, eles discutem as teorias e relatam os resultados na prática. Dessa forma, eles podem melhorar sua própria prática em sala de aula com teorias e estudos que demonstraram um benefício verdadeiro para a Educação. Porque se eles se basearem em teorias de pseudociências, neuromitos que não trazem benefício para suas crianças, eles não vão querer participar, vão criar uma resistência maior.

Com a inserção das Competências Gerais na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), como você acha que os professores podem introduzir essas competências no aprendizado dos alunos?
Nas comunidades de aprendizagem, nós entendemos que é possível que as crianças desenvolvam as competências linguísticas, matemáticas, o conhecimento cognitivo ao mesmo tempo em que aprendem as competências socioemocionais. Incorporar essas competências no currículo desde a implementação de atuações educativas bem-sucedidas vai trazer possibilidades enormes de êxito aos professores brasileiros de desenvolver mais seus alunos. Não temos porque seguir tendo que escolher entre competência cognitiva ou competência socioemocional. Podemos trocar o “ou” por “e” para que tenhamos competências cognitivas “e” competências socioemocionais”.  

A ciência da aprendizagem, a base da interação e da aprendizagem dialógica, nos mostra que uma pessoa não possui um lado só pensamento e outro só emoção. Tudo está interligado. As comunidades de aprendizagem nos dão essa possibilidade de desenvolver ao máximo todas as competências, transformando toda a escola, de acordo com os valores que damos às relações sociais, o que passamos quando queremos educar. Dessa maneira, poderemos ter uma sociedade em que as crianças podem viver o desenvolvimento dessas competências em todos os momentos de sua vida, em todos os contextos, seja na aula de Matemática, com os professores, no pátio com os colegas, em casa com suas famílias, enfim, em todos os espaços.

 

 

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