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O que fazer quando a notícia invade a sala de aula?

Desastres, crises políticas ou mesmo os problemas do bairro. As questões do momento podem ter lugar na sua escola e alavancar o desenvolvimento dos alunos

POR:
Paula Salas e Pedro Annunciato

Desabamento de ocupação em São Paulo foi o mote das aulas de Geografia de Paulo. Crédito: Renato Stockler

Na madrugada do dia 1º de maio deste ano, o Edifício Wilton Paes de Almeida, no Largo do Paissandu, centro de São Paulo, colapsou após um dramático incêndio, deixando um saldo de sete mortes, ao menos 140 famílias desabrigadas e escancarando o problema da falta de moradia na maior cidade da América do Sul. Inaugurado em 1961, o edifício era um marco da arquitetura modernista na cidade, mas estava abandonado há anos e era ocupado por integrantes do Movimento Social de Luta por Moradia (MSLM).

Na manhã seguinte à tragédia, a menos de 2 quilômetros do local do desabamento, o professor Paulo Magalhães retomou as aulas de Geografia na turma de 4º ano da EMEF Duque de Caxias, no bairro do Glicério. Atuando em uma escola tão próxima do local, Paulo sabia que seria muito difícil ignorar o assunto. O que ele não sabia era que o acontecimento estampado nas manchetes estava presente, literalmente, dentro da sala de aula. “As crianças tinham conhecidos que viviam na ocupação. Por isso, elas sentiram mais necessidade de tocar nesse assunto do que eu imaginava”, relata o professor. A partir daí, Paulo resolveu mudar o curso do seu planejamento e abordar de maneira mais aprofundada o ocorrido nas aulas de Geografia.

Assuntos como o desabamento no centro de São Paulo, a greve nacional dos caminhoneiros, a crise política e econômica do país, a Copa do Mundo e outros temas classificados genericamente como “atualidades”, muitas vezes, atravessam o cotidiano escolar sem pedir licença. É comum a demanda partir dos próprios alunos, que conversam e demonstram interesse pelo tema.

Embora esse tipo de assunto não faça, necessariamente, parte da lista de conteúdos escolares, trazê-lo para o centro da aula e tomá-lo como um objeto de estudo, a partir do qual se pode desenvolver uma série de habilidades, pode ser não apenas vantajoso, mas necessário. “Se admitimos que é papel da escola formar cidadãos participativos, capazes de compreender a realidade que os cerca, abrir espaço para discutir os temas que mobilizam a sociedade é absolutamente fundamental”, argumenta Heloisa Ramos, formadora de professores de Língua Portuguesa há 30 anos.

Essa concepção de escola já está há algum tempo nos documentos oficiais que servem de referência para a Educação pública e agora aparece com força na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que entrou em vigor no ano passado. A Base propõe uma estrutura que parta não do ensino de conteúdos, mas do desenvolvimento de competências. As competências são as maneiras pelas quais os alunos conseguem articular um conjunto de habilidades desenvolvidas na escola em todas as situações da vida.

“As atualidades são um fator provocador de atividades capazes de desenvolver muitas competências. A questão é como trabalhar essas atualidades para conseguir extrair delas todo esse potencial”, explica Anna Penido, diretora executiva do Instituto Inspirare e uma das especialistas que acompanhou de perto a construção das competênciasgerais da BNCC. Para ela, é possível conectar os temas do momento com todas as disciplinas, não só como contextualização ou gancho para os conteúdos mas como oportunidades de mobilizar os componentes curriculares tradicionais para pensar nos problemas da vida real.

Nas próximas páginas, você saberá como o professor Paulo e outros dois docentes pegaram carona em temas quentes para desenvolver suas aulas. E verá, ainda, indicações práticas sobre como fazer isso na sala de aula.

O noticiário (literalmente) dentro da escola

Como um professor de Geografia usou a queda do edifício no centro de São Paulo para estudar a questão da moradia

A turma de Paulo visitou o local do desabamento e discutiu a questão da moradia.
Crédito: Renato Stockler. 

Geógrafo com formação em urbanismo, o professor Paulo Magalhães dá aulas de Geografia para várias turmas da EMEF Duque de Caxias, no centro de São Paulo. Desde 2016, ele desenvolve o projeto A Arte de Ocupar os Equipamentos Educativos na Metrópole, no qual organiza aulas públicas e leva as crianças para conhecer e se apropriar dos poucos espaços públicos que restam na região, abordando questões como o problema da moradia, por exemplo. O centro da capital paulista vive há anos um drama habitacional permanente: o descompasso entre a alta dos aluguéis e os baixos salários da população, a falta de políticas de moradia e a especulação imobiliária desenfreada empurram milhares de famílias para ocupações em edifícios onde, muitas vezes, as condições são precárias.

Crédito: Renato Stockler

Mas, em 2018, a tragédia ocorrida no Edifício Wilton Paes de Almeida, a menos de 2 quilômetros da escola, obrigou Paulo a alterar o planejamento. Quando soube que vários alunos conheciam moradores do prédio, inseriu como uma das etapas do trabalho uma atividade de história oral, em que as turmas puderam compartilhar e registrar relatos da tragédia. Uma das alunas da Educação de Jovens e Adultos (EJA), para a qual o professor também dá aula, é uma das moradoras desabrigadas que compartilhou sua história.

O desabamento do prédio sensibilizou os alunos porque muitos vivem em situação semelhante. Surgiu, então, a ideia de alertar outras famílias da comunidade escolar sobre as consequências do descarte irregular de lixo e as más condições das instalações elétricas das ocupações, fatores que contribuíram para o incêndio e posterior desabamento. Essa mobilização resultou também em uma aula pública que passou pelo Largo do Paissandu, realizada para as turmas do 8º e 9º anos. O desabamento deu ao professor a chance de aprofundar a conversa sobre outros temas que integravam o projeto. “A discussão encaixou perfeitamente, pois o fenômeno das ocupações irregulares é consequência da dificuldade de acesso à moradia”, comenta o professor. O debate se mostrou tão relevante para a realidade dos alunos que o professor decidiu incluí-lo em seu planejamento regular e continuará a conversa no segundo semestre.

Credito: Renato Stockler
Crédito: Renato Stockler

O PAPEL DA GEOGRAFIA

A disciplina costuma ser definida – em tom pejorativo – como um mero ensino de atualidades. Mas seu papel não é só o de relatar fatos recentes. “A atualidade geográfica propõe ao aluno uma análise do acontecimento que o relacione com processos desenvolvidos em outros tempos ou espaços”, explica Sueli Furlan, doutora em Geografia Física pela USP e especialista no ensino da disciplina. A abordagem não é nova: desde a década de 1980, a Geografia passou a incorporar uma visão mais crítica da realidade. “A BNCC recupera o trabalho com procedimentos geográficos, como a análise de mapas que desenvolvem o pensamento espacial dos estudantes”, lembra Sueli. O documento prevê, ainda, elementos já presentes na prática docente. No caso do professor Paulo, isso aparece na análise crítica da ocupação dos espaços urbanos, como o fenômeno da gentrificação, proposta aos estudantes.

A Matemática da febre amarela

Em São Bernardo do Campo, a professora foi além da conscientização e levou a doença transmitida pelo Aedes para a área de exatas

Crédito: Toni Pires

Na EM Neusa Macellaro Callado Moraes, em São Bernardo do Campo, Região Metropolitana de São Paulo, estudar a dengue faz parte do planejamento anual. Mas um surto da febre amarela abriu uma nova frente de estudos da transmissão e a prevenção de doenças.

Entre julho de 2017 e maio de 2018, foram registrados 1.266 casos da doença, segundo o Ministério da Saúde. Desses, 415 resultaram em morte. Antenada nas informações que chegavam dos órgãos oficiais e da imprensa, Eliete Esturari, professora do 5º ano, foi além do trabalho de conscientização. A preocupação das autoridades levou a um atraso no início das aulas, o que motivou ainda mais o burburinho das crianças. “Elas queriam saber mais sobre a doença transmitida pelo Aedes aegypti, o mesmo mosquito da dengue. E nessa idade, os alunos naturalmente já questionam mais”, conta a educadora.

Crédito: Toni Pires

O assunto foi introduzido por meio da leitura de textos e a formação de rodas de conversa para discutir o que a turma já sabia. A partir disso, os alunos compararam os dados da incidência da doença. Os estudantes desenvolveram um trabalho mais ligado à Matemática e construíram gráficos no Excel para verificar onde havia mais ocorrências da doença e comparar com os locais onde havia mais cobertura vacinal. Essa atividade também permitiu trabalhar com algumas noções de probabilidade. “Ficava nítido para eles que, nas regiões onde a população era vacinada, o avanço da febre amarela e as taxas de mortalidade eram menores”, explica Eliete.

Também foram objeto de estudo, em Ciência, as fases da doença e os sintomas. Chamou a atenção das crianças a questão dos macacos, hospedeiros do vírus, que começaram a ser mortos quando cresceram os casos de febre amarela. Sensibilizadas, criaram uma campanha para conscientizar a população de que matar os animais não era uma solução.

Os alunos do 5º ano construíram gráficos com ajuda do computador. Crédito: Toni Pires

Houve ainda um desafio adicional para Eliete: há seis alunos surdos na turma. “Quando se pensa em temas atuais, os materiais em Libras, por exemplo, são raríssimos”, explica a professora. A saída dialogou com uma das competências da BNCC ao utilizar elementos visuais (como imagens e animações) e focar no trabalho com os gráficos, tornando a atividade acessível também para esses estudantes.

TODA DISCIPLINA É FÉRTIL

Há espaço para as atualidades em todas as disciplinas, mesmo a Matemática, considerada mais árida e distante do mundo real, pode se abrir para os temas quentes. “Os conceitos matemáticos são basicamente os mesmos inventados há dois séculos. Mas a forma como são aplicados pode ser modernizada”, defende Joamir Roberto de Souza, mestre em Matemática pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) e autor de livros didáticos. Vale lembrar, porém, que trabalhar atualidades apenas como pano de fundo para os problemas de sempre é possível, mas pouco frutífero. O ideal é pensar em investigações, análises e comparações nas quais a Matemática seja realmente útil para fazer descobertas – e a experiência de Eliete é um bom exemplo disso.

A greve que moveu a escola

A paralisação de motoristas de caminhão abriu a discussão sobre outros meios de transporte e sobre a história da ferrovia presente na cidade mineira de Recreio

O que pode acontecer quando a maior parte dos motoristas de caminhão no Brasil resolvem cruzar os braços no país onde quase tudo o que se faz depende do transporte rodoviário? Os brasileiros tiveram uma mostra da situação no fim de maio deste ano, quando uma paralisação de dez dias causou enorme desabastecimento em todas as cidades brasileiras e gerou prejuízos em muitos setores importantes da economia.

Na EE Presidente Carlos Luz, localizada no distrito rural de Conceição da Boa Vista, em Recreio, Minas Gerais, as aulas ficaram suspensas durante uma semana. Como boa parte dos alunos
ficaram sem meio de transporte por causa do bloqueio nas estradas, a secretaria estadual resolveu suspender as atividades.

Mas a greve não atrapalhou o planejamento do professor de História Leonardo Ribeiro. Pelo contrário. “Dou aula do 6º ao 9º ano, e costumo desenvolver nesses diferentes níveis o projeto Trem na Escola, onde estudamos o surgimento das ferrovias e o papel que elas tiveram na nossa história. Tem tudo a ver com os transtornos causados pela greve dos caminhoneiros”, justifica o docente. A ferrovia já é um tema presente na vida dos alunos: a cidade de Recreio nasceu no entorno de uma linha férrea que transportava minério. Em 2015, ela foi desativada, afetando de maneira significativa a economia da região.

Crédito: Frederico Lacerda
Crédito: Frederico Lacerda

O professor Leonardo, então, teve a ideia de reforçar a discussão sobre as questões que envolvem o município mineiro. Ele separou reportagens publicadas ao longo da greve que falavam sobre como a falta de trens deixou o país mais vulnerável à paralisação e fez uma roda de conversa com os estudantes, que puderam discutir o tema. “Eles falaram das dificuldades que passaram por causa da greve e conseguiram relacionar a perda que a desativação da ferrovia trouxe à nossa região com o que isso causou em âmbito nacional”, diz o professor. A atividade, que conectou a greve à questão das ferrovias, trouxe maior repertório para a turma aproveitar uma visita técnica à oficina da companhia responsável pelos trens da cidade.

Crédito: Frederico Lacerda

A empresa trabalha para restaurar os vagões e reativar o trajeto como um roteiro turístico. Lá, os alunos vão gravar vídeos sobre o tema que serão apresentados para toda a escola.

AGILIDADE PARA MUDAR

Quando algo inesperado como a greve dos caminhoneiros acontece (e ainda gera dias sem aula), é preciso agilidade para replanejar o rumo do ano letivo. Nem sempre é possível fazer as adequações, mas, no caso de Leonardo e em circunstâncias parecidas, é válido aproveitar o gancho, nem que seja para enriquecer ainda mais o repertório dos alunos. Por isso, aconselha Anna Penido, é sempre bom reservar tempo no planejamento para flexibilizar o que já estava previsto no cronograma. Em Língua Portuguesa, por exemplo, é possível prever momentos específicos para a análise de notícias. “Reserve um tempo a cada 15 dias para estudar assuntos do momento como conteúdo de língua”, diz Heloisa Ramos, que sugere o uso de debates para desenvolver a capacidade dos alunos de argumentar com base em evidências a fim de “formular, negociar e defender ideias, pontos de vista e decisões comuns”, como prevê a BNCC.


SERÁ QUE ESSA ATUALIDADE CABE NA AULA?

Para fazer essa avaliação, a especialista Anna Penido, do Instituto Inspirare, propõe pensar em três critérios

1) Impacto direto na vida dos alunos
Verifique se o fato deixa os estudantes inquietos de alguma maneira. Observe as conversas e as trocas em sala de aula. Se o assunto aparece com frequência, já é um sinal de interesse. Priorize aqueles que atingem mais diretamente o cotidiano, como a greve dos caminhoneiros que afetou a rotina das famílias.

2) Você fica confortável para falar
É importante sentir-se à vontade para abordar o tema proposto. Não adianta tentar dar uma aula sobre algo que você tenha pouco domínio, ou uma opinião muito forte que possa despertar discussões mais inflamadas com os estudantes.

3) Relações entre temas
A discussão pela discussão é válida em certos momentos, especialmente quando os alunos se sentem tocados pelo fato e precisam conversar a respeito dele. Mas o ideal é buscar uma
conexão com os componentes curriculares da disciplina. Também é preciso ter em conta a possibilidade de replanejar as aulas e prepará-las.