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EaD não é política nos melhores sistemas educacionais do mundo

Em artigo de opinião, especialistas Gabriela Moriconi e Paula Louzano avaliam proposta de oferecer EaD desde o Ensino Fundamental

POR:
Paula Louzano, Gabriela Moriconi
Crédito: Getty Images

A possibilidade de ensino a distância na Educação Básica já é tema de debate desde 2017, com a aprovação da lei de reforma do Ensino Médio que abre possibilidade, entre outras coisas, para os sistemas de ensino "reconhecer competências e firmar convênios com instituições de educação a distância com notório reconhecimento".

Antes disso, o ensino a distância era permitido quando "utilizado como complementação da aprendizagem ou em situações emergenciais", de acordo com a nossa Lei de Diretrizes e Bases (LDB). É o que acontece em Manaus, por exemplo: comunidades pequenas, com poucos alunos para montar turmas e ainda menos professores específicos de todas as disciplinas, fazem uso de videoaulas oferecidas pelo Centro de Mídias de Educação do Amazonas (Cemeam).

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Nestas eleições, a proposta volta ao debate sob um olhar ainda mais polêmico: não apenas uma parte do Ensino Médio poderia ser oferecida a distância, mas todo o Ensino Fundamental. Quem defende é o candidato à presidência da República Jair Bolsonaro, do Partido Social Liberal (PSL).

A convite do Instituto Interdisciplinaridade e Evidências no Debate Educacional (Iede), as especialistas Gabriela Moriconi e Paula Louzano analisaram a proposta do candidato e escreveram o artigo abaixo, que faz parte do documento "Análise das propostas dos presidenciáveis para Educação", que reúne 10 artigos assinados por artigos e especialistas que debatem diferentes propostas de Fernando Haddad e de Jair Bolsonaro para a Educação (clique aqui para acessá-lo na íntegra). A seguir, a opinião das autoras:

"Em seu plano de governo, o candidato à Presidência Jair Bolsonaro propõe inspirar-se na 'estratégia educacional do Japão, Taiwan e Coreia do Sul', países que diz ter visitado recentemente, sob o argumento de que a educação 'teve papel chave no desenvolvimento econômico e social' desses lugares. Em que pesem as diferenças de contexto e cultura, estes sistemas educacionais de fato obtêm alguns dos melhores resultados no Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes) da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), junto a outros países como Finlândia e Canadá, por exemplo. Além disso, é inegável que a melhoria na qualidade da educação ocorrida nesses contextos foi imprescindível para o seu desenvolvimento.

No entanto, o plano de governo de Bolsonaro não só não é específico sobre como o Brasil deveria percorrer este mesmo caminho, como traz propostas que vão na direção oposta do que estes países realizaram. Uma delas é a educação a distância, que, segundo ele, 'deveria ser vista como um importante instrumento e não vetada de forma dogmática'. Ele diz ainda que a educação a distância 'deve ser considerada como alternativa para as áreas rurais onde as grandes distâncias dificultam ou impedem aulas presenciais.' Além disso, em entrevista coletiva no dia 7 de agosto, afirmou: 'conversei muito sobre ensino a distância. Me disseram que ajuda a combater o marxismo. Você pode fazer ensino a distância, você ajuda a baratear. E nesse dia talvez seja integral.'

Perguntado sobre em qual etapa da educação pretendia investir no ensino a distância, Bolsonaro respondeu: 'no Fundamental, Médio, até universitário. Todos podem ser à distância, depende da disciplina. Fisicamente em época de prova ou aula prática.'

É preciso esclarecer que nenhum dos sistemas educacionais com os melhores resultados em avaliações internacionais, incluindo os destacados, adota o ensino a distância como política educacional. Muito pelo contrário: os países não só se apoiam no ensino presencial como as escolas funcionam em turno único, geralmente com jornadas diárias maiores que as nossas. Aqui é possível obter dados sobre o tempo dedicado à educação obrigatória em diversos países.

A título de exemplo, no Japão, não há nenhuma escola de educação básica que ofereça ensino a distância. Os alunos japoneses permanecem na escola cerca de 7 horas por dia. Lá 'a Educação, que adota uma abordagem holística, é promovida por meio de professores que se engajam ativamente com os alunos'. Isto porque os professores japoneses não ensinam apenas os conteúdos curriculares aos alunos: eles os orientam em suas escolhas, trabalham questões ligadas à convivência e cooperação com os colegas, discutem com os alunos sua relação com a sociedade e a comunidade local, dentre tantas outras atividades. Nesse link é possível se aprofundar e obter mais informações sobre o sistema educacional japonês.

O que o caso do Japão nos ajuda a exemplificar é a premissa praticamente consensual no campo educacional de que a escola tem uma ampla função social. A Lei de Diretrizes Básicas da Educação Brasileira, a LDB, define que a educação tem por finalidade 'o pleno desenvolvimento do educando', o que envolve o desenvolvimento cognitivo, social, físico, emocional, etc. Privar crianças e adolescentes de escolas presenciais é privá-las dessas formas de desenvolvimento obtidas pela convivência com colegas e com a equipe escolar.

O argumento de que grandes distâncias dificultam aulas presenciais não pode ser usado para negar o direito à escola a crianças e adolescentes das zonas rurais. Já há, no Brasil, muitas experiências conhecidas e bem-sucedidas na promoção do acesso e permanência na escola e conclusão dos estudos por alunos de zonas rurais e também de outros grupos igualmente vulneráveis à exclusão escolar no país, como os negros e os indígenas, os com deficiência, os que vivem no Semiárido, na Amazônia e na periferia dos grandes centros urbanos. Essas experiências sim devem ser analisadas e aproveitadas pelas diferentes esferas de governo. No site da Unicef, há um diagnóstico acerca da exclusão escolar e experiências propostas para o seu enfrentamento.

Outra característica comum dos melhores sistemas educacionais do mundo é o foco em desenvolver uma profissão docente forte, com um compromisso de investir em profissionais bem formados para tomar decisões adequadas sobre como promover a aprendizagem de cada grupo específico de alunos (as políticas adotadas por esses sistemas são descritas aqui). Foi o caso da Coréia do Sul, que investiu e regulou fortemente a profissão docente no país, transformando-a em uma das mais atrativas do mercado de trabalho. Um professor na Coréia do Sul ganha o equivalente a um engenheiro, e a oferta de cursos de licenciatura é extremamente restrita, com programas tão intensos e exigentes como os de medicina. Este grande investimento no professor se baseia nas pesquisas sobre a centralidade deste profissional para o desenvolvimento cognitivo, social e emocional dos alunos. Portanto, caso o candidato queira seguir a estratégia deste país, deveria colocar a educação no centro do plano de desenvolvimento nacional e fazer um forte investimento neste setor e em seus professores. Acesse aqui mais informações sobre o sistema educacional coreano.  

Não é uma inovação brasileira propor educação a distância desde o ensino fundamental. A educação a distância é um fenômeno crescente nos Estados Unidos em todos os níveis educacionais. Em 2016, já havia em torno de 280 mil alunos da educação básica recebendo ensino totalmente virtual nesse país, sendo 70% deles em escolas que recebem recursos públicos, mas são gerenciadas por empresas com fins lucrativos. Essas empresas têm obtido altos lucros ao diminuir fortemente os custos, em especial com os professores, que chegam a acompanhar 60 alunos por turma – resultando, obviamente, em uma redução da qualidade do ensino oferecido. Não é de se estranhar que, para as escolas para as quais já há medidas de desempenho em testes cognitivos, os resultados sejam piores do que os das escolas presenciais (acesse aqui um relatório técnico sobre as escolas virtuais nos Estados Unidos e aqui uma reportagem do The New York Times sobre o assunto). Isso sem falar no desenvolvimento nos demais aspectos.

Para o desenvolvimento pleno de crianças e adolescentes é preciso acesso ao conhecimento, mas também muita socialização. Sem a convivência constante com outros estudantes e com profissionais especializados, reduzir-se-ão consideravelmente as chances de que as crianças e adolescentes desenvolvam a capacidade de cooperar, respeitar as diferenças, ter empatia, trabalhar em equipe, resolver conflitos, dentre tantas outras tão necessárias para a vida em sociedade."

Gabriela Moriconi é doutora em Administração Pública e Governo pela EAESP-FGV e atualmente pesquisadora da Fundação Carlos Chagas.  Paula Louzano é doutora em Política Educacional pela Universidade de Harvard e atualmente diretora da faculdade de educação da Universidad Diego Portales, no Chile.

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