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Por que ler Paulo Freire é um "ato de resistência"

Especialistas que trabalharam e estudaram com o educador explicam a importância de seu legado para a Educação

POR:
Douglas Lisboa
Foto em preto e branco de Paulo Freire
Foto: Reprodução/Instituto Paulo Freire

"Ler Paulo Freire é um ato de resistência", resume a professora da PUC-SP Emília Cipriano. "Para quem é educador, ele ensina um caminho de valorização da fala do aluno e da importância da escuta, por parte do professor", diz a pedagoga, que conviveu com ele por cerca de quatro anos, quando foi sua aluna de doutorado. "Na época, o que mais me chamava a atenção era a sua coerência. Ele aplicava conosco o que discursava em seus livros, era um mestre da escuta, que tentava discutir a educação pelo nosso olhar." 

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Considerado um dos mais importantes pensadores da pedagogia mundial, o pernambucano, morto em 1997, é patrono da educação brasileira e influenciou a chamada pedagogia crítica, vertente que estimula a formação da autoconsciência do aluno e percebe na educação um instrumento de transformação social.  

Emília, que também foi secretária adjunta de Educação na Prefeitura de São Paulo, diz que é possível compreender o quanto Freire era reflexivo sobre os desafios e caminhos para a educação por meio de suas obras mais conhecidas: "Pedagogia do Oprimido", publicada em 1968, "Pedagogia da Esperança", de 1992, e "Pedagogia da autonomia", de 1996.  "Ele começa com uma denúncia da busca por inclusão e aceitação dos mais vulneráveis, faz uma reflexão sobre as experiências pedagógicas que teve em diferentes países e termina apontando caminhos para a emancipação."  

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Apesar de referência na educação brasileira, o legado de Paulo Freire tem sido criticado por correntes políticas conservadoras. O presidente Jair Bolsonaro disse, durante sua campanha eleitoral, que iria promover uma reforma das diretrizes escolares do país e abolir o legado de Paulo Freire do Ministério da Educação (MEC) "com um lança-chamas". A obra do educador também é questionada pelo Escola sem Partido, um programa que está em discussão no Congresso e que se opõe ao que classifica de "doutrinação ideológica" nas escolas. 

Para o jornalista Paulo Blinkenstein, em sua coluna no jornal Folha de S. Paulo, a fixação no "expurgo" de Paulo Freire é "ótima para o WhatsApp, mas nada tem a ver com nossa má performance educacional". "Que fácil seria se expurgar Freire nos levasse para uma educação de primeira linha", escreveu. A "doutrinação freireana", diz, "é uma fantasia fabricada para propaganda eleitoral e promoção pessoal". "Em vez de focar no expurgo, a equipe de Bolsonaro deveria ter pensado se a educação a distância é boa no ensino fundamental ou quantas escolas militares (cujo aluno custa três vezes mais) cabem no orçamento do MEC". E diz: "Claro: é mais popular achar um inimigo comum e culpá-lo por todos os problemas".   

Também professor da PUC-SP, Alípio Casali, discorda de um viés partidário na obra de Freie, que conheceu ainda no exílio, em 1977. "Eu era estudante e estava fazendo uma especialização em Genebra, na Suíça. Ele dava aulas lá. Desde o primeiro encontro e também mais tarde, quando fomos colegas na PUC, a imagem que Freire passava era a de um ser humano extraordinário e de pensamento crítico rigoroso. Alguém que não tinha militância partidária, mas que militava pela formação das pessoas."

Ele diz que, antes de ler sua obra — "fundamental para qualquer educador" —, é importante "ler" a vida de Freire. "Ele sempre buscou posicionar-se no momento histórico e no lugar cultural em que se encontrava e de modo que a sua obra fosse uma resposta inteligente e politicamente comprometida com os desafios do nosso tempo histórico." Casali avalia que esse compromisso ajuda a compreender as razões que fazem com que a obra freiriana continue viva.

Mediação  

No modelo de educação tradicional, o professor era o centro do processo de aprendizagem, a fonte incontestável de conhecimento. Mas Freire não pensava assim. Ele acreditava que o aluno já trazia consigo um conhecimento internalizado antes mesmo de entrar na sala de aula, e que a prática pedagógica deveria somar ambas as experiências, para estimular o senso crítico — substituindo o que ele chamava de "educação bancária" por uma "educação libertadora".

Em lugar de subestimá-lo, Freire tinha uma visão positiva do saber do analfabeto, diz Casali. "Ele reconhecia que o aluno sem educação formal detinha um saber de vida, cultural, oralizado. Por isso, o professor tem um papel de mediação, não de 'bancário' de conteúdo." Desta forma, o aluno se torna o centro do processo. "O professor processa os saberes e, nesse diálogo, o aluno pode também desenvolver seu senso crítico. Mas para isso, o professor não pode apenas despejar conhecimento, tem de ser um mediador."

Empoderamento do aluno

Na obra "A Importância do Ato de Ler", o educador, que completaria 97 anos em 2018, afirmou que a leitura do mundo precede a leitura da palavra. Com isso, reforçava que, antes que uma pessoa fosse alfabetizada, ela já detinha conhecimento, sabia ler sinais e gestos ao seu redor, mesmo sem conhecer a palavra escrita.

Para o educador, antropólogo e folclorista Tião Rocha, do Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento (CPCD), o legado de Freire, pela sensibilidade e compreensão da importância do conhecimento que o aluno traz consigo, se torna extemporâneo. "É uma forma de ver o mundo que vai além do tempo de vida dele." A herança de Freire, explica, se insere na categoria daqueles clássicos, que influenciam seu campo de conhecimento por muitos anos, ainda que, muitas vezes, de forma menos perceptível. "É como uma obra de Mozart, que continua viva até hoje."

Lugar de fala

Em uma rua na periferia de Belo Horizonte, carente de oportunidades e vulnerável à violência, um muro colorido contrasta com as casas simples do entorno. Ao longo dos anos, a escola municipal de Ensino Fundamental do bairro Ribeiro de Abreu tornou-se um foco de resistência, onde a participação da comunidade é presente no cotidiano da escola desde a sua fundação, há 17 anos. Foram os próprios moradores, por exemplo, que votaram para que a unidade se chamasse Professor Paulo Freire. 

"O resultado disso", conta a diretora, Adriana Viana de Souza, "é que a comunidade se sente parte da nossa escola. As crianças trazem consigo um conhecimento valioso". No espaço, aberto à comunidade, as crianças são acolhidas e incentivadas a ajudar a criar um ambiente democrático, em que as oficinas de artes e esportes ajudam na construção coletiva do conhecimento. 

O educador tinha um compromisso com a emancipação das classes populares e com a resistência aos desmontes que se dão na educação, na saúde básica e na assistência social, avaliou a deputada federal e ex-prefeita de São Paulo, Luiza Erundina, ao participar de uma homenagem ao educador. 

Freire comandou a pasta da Educação do município durante o mandato de Erundina e foi o primeiro secretário a ser convidado por ela, ao ganhar as eleições de 1988. Em um manifesto na Câmara, contra o movimento Escola sem Partido, a parlamentar afirmou que, assim como Freire pensava, "é preciso que todos aprendam a desenvolver o senso crítico, a autonomia intelectual e a solidariedade".

 

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