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Violência e indisciplina: por que não devemos entendê-las como sinônimos

Pesquisas indicam que confusão entre os dois conceitos pode estar ligada à percepção de que todas as escolas brasileiras são violentas

POR:
Anna Rachel Ferreira
Cadeira branca caída em meio à fileira com outras cadeiras, em uma sala com piso de madeira e parede de concreto
Foto: Getty Images

É provável que você já tenha escutado ou você mesmo tenha a ideia de que as escolas brasileiras, em geral, são violentas. Apesar dessa sensação estar presente no discurso dos cidadãos, a análise dos questionários respondidos nas aplicações da Prova Brasil de 2007 e 2011, mostra uma queda nos números. Nos dados mais recentes, 1,9% dos docentes afirmou ter sido agredido fisicamente por estudantes dentro de colégios, enquanto o índice anterior era de 2,3%. Porcentagem parecida foi encontrada entre os professores que relataram casos de agressão física contra estudantes cometida por docentes na escola em que atuavam (1,5% em 2011 e 1,62% em 2007).

Revelou-se ainda que, em 2011, 0,85% dos professores disse ter visto alunos frequentarem as instituições escolares portando armas de fogo, sendo 1,14% em 2007. E, também, 4,04% relataram casos de alunos portando facas e canivetes na escola em 2011, contra 5,17% em 2007.  Ou seja, não há indícios de um aumento da violência no ambiente escolar.

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Mas, por que então temos a sensação contrária? Uma explicação possível é o entendimento do que seja violência.  Uma pesquisa realizada pelo Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp) e o Instituto Data Popular, em 2015, mostrou que os docentes consideram violência escolar xingamentos; violência física; falta de educação; problemas familiares; violência/agressão em geral; bullying; mau comportamento entre alunos. Também aparecem indisciplina, drogas e álcool, falta de valorização do professor e vandalismos. O levantamento contou com a participação de 1.400 professores de escolas estaduais paulistanas. Logo, podemos ver que há situações de naturezas muito distintas sendo colocadas em uma mesma definição.

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“Quando você defende que a escola é violenta, você vai precisar de poder público e acaba tirando da escola uma função que seria dela do ensino da convivência”, explica a professora especialista em clima escolar Telma Vinha. Ela completa explicando que esse entendimento faz com que os profissionais apliquem indistintamente os mesmos procedimentos disciplinares, geralmente de contenção ou para evitar, não vendo tais situações como pedagógicas, as quais necessitariam de intervenções distintas que resultassem em aprendizagem.

O que é violência escolar

Logo, é importante definir o que é cada coisa para decidir também qual é a intervenção mais adequada. O conceito de violência interpessoal inclui assassinatos, agressão, brigas, bullying, violência entre parceiros sexuais, feminicídio e abuso emocional. “Em geral, são ações que causam efetivo dano a outra pessoa e que ferem o código penal. Em sua maioria, são situações causadas por algo externo à escola”, explica Telma.  Nesses casos, a escola atua mais como ator de prevenção e deve convocar os órgãos competentes para tomar as atitudes coercitivas e controladoras adequadas, quando necessário.

O que é indisciplina

A indisciplina, ainda que muitos a considerem sinônimo, figura entre os problemas de convivência que são sim função da escola abordar com toda a comunidade de maneira efetiva. Pois é seu papel formar para a cidadania e promover a aprendizagem da convivência democrática entre os estudantes. Pesquisa da Fundação Lemman aponta que para 32% dos professores, a indisciplina é um dos três principais fatores de preocupação no ambiente escolar. Levantamento da Teaching and Learning Internacional Survey, também mostra que o Brasil é um dos países que apresentam maior frequência de problemas disciplinares em sala de aula, sendo que os docentes utilizam por volta de 18% do tempo com os alunos para manter a ordem na classe.

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Mas, entre os problemas de convivência também há diferenças e distintos modos de intervenção. Conheça as definições apresentadas no livro “Da escola para a vida em sociedade: o valor da convivência democrática” (Telma Vinha, César Augusto Amaral Nunes, Lívia Maria Ferreira da Silva, Flávia Maria de Campos Vivaldi e Adriana Moro; ed. Adonis, 248 págs.).

  • Incivilidades: atentados cotidianos e recorrentes ao direito de cada um ser respeitado, ou por pequenas infrações à ordem estabelecida, como, por exemplo: provocações, comportamentos irritantes, entreter-se com objetos impróprios para a atividade e o momento, insultos, zombarias, falta de polidez, conversar à margem do que se está tratando em classe, faltar com a pontualidade, indelicadeza, colocar apelidos, demonstrar indiferença, interromper. Refere-se a condutas que se contrapõem às regras da boa convivência, do que se espera de um bom comportamento social. São consideradas como condutas “perturbadoras”, mas não violentas.

Telma alerta que é importante que os professores intervenham ainda que a conduta não esteja perturbando diretamente o andamento da aula. “É necessário realizar intervenções construtivas que os auxiliem a compreender a necessidade do respeito a qualquer pessoa, da coordenação de perspectiva e sentimentos e do ‘tratar bem’ nas relações entre os pares”, defende. 

  • Indisciplina: ações e situações variadas que compartilham alguma forma de desordem nas relações pedagógicas, capazes de interferir nas condições de aprendizagem como, por exemplo, alunos jogarem jogo da velha durante a apresentação de um seminário.

Nesses casos, é interessante buscar a melhoria da relação professor-aluno, o estabelecimento ou revisão do contrato e das expectativas compartilhadas e a revisão das ações pedagógicas que levem os estudantes à conectarem-se novamente com as situações de aprendizagem. “Metodologias mais ativas podem colaborar na diminuição das conversas paralelas, por exemplo”, comenta Telma. 

  • Transgressão: comportamento contrário ao regulamento interno da escola ou das regras estipuladas para a sala de aula, como por exemplo, cabular aula ou usar o boné em sala quando existe uma regra que proíbe o uso.

Para que os estudantes cumpram as regras é essencial que eles a compreendam como legítimas. Isso acontece quando a autoridade de quem a criou é reconhecida, há um entendimento de sua necessidade ou ainda houve a participação democrática em sua elaboração. “Por essas razões, considero mais efetivo um esforço no sentido de legitimar as regras junto aos alunos do que medidas de punição no seu descumprimento”, explica Telma.

Como eu fiz

NOVA ESCOLA conversou com um docente da rede pública e um da rede particular paulistas que contam como lidaram com problemas de convivência em suas turmas.

“Recém-formado, iniciei como professor de Matemática do 8º ano de uma escola de elite, em São Paulo, no ano passado. Logo de início, senti que os alunos de uma turma específica eram muito agitados. Mas, minha queixa era semelhante à de outros docentes. Então, fui seguindo minha aula da mesma maneira. Conceituava primeiro os conteúdos para depois propor exercícios e discussões. Com o passar do tempo, notei que além da agitação, caracterizada por conversas paralelas muito altas, os estudantes me ‘peitavam’ e tratavam com uma certa ‘arrogância’, como se quisessem competir comigo, provando que sabiam mais do que eu ou que eu não tinha autoridade com a turma.

No ano seguinte, peguei aulas com o mesmo grupo e a situação se agravou. Por exemplo, um dos estudantes descumpriu a regra de uso do celular e quando disse que ele deveria se retirar da sala, conforme o previsto na regra, ele simplesmente se recusou gerando uma certa ‘queda de braço’. O ápice para mim foi quando notei que estava perdendo até mesmo os alunos que queriam aprender. Nesse momento, chorei sozinho me sentindo completamente incompetente para exercer minha função como educador.

Então, busquei ajuda com a coordenação e orientação pedagógica da escola e procurei uma mudança no meu método de aulas. A equipe escolar se uniu e juntos listamos quais eram as situações em que os alunos mais tinham ações de incivilidades, indisciplinas e transgressões, pensamos em modos de legitimar regras que as diminuíssem e levamos para as aulas cada docente a sua maneira. Ao mesmo tempo, eu propus aulas invertidas, pois analisei que a turma tinha uma aprendizagem rápida e uma necessidade grande de participação.  As duas medidas juntas foram cruciais na mudança que aconteceu na convivência com essa turma. Hoje, posso dizer que as aulas fluem e que me sinto capaz de cumprir minha função como docente.”

Lucas Alvarez Theodoro, professor de Matemática, do Colégio Bandeirantes, em São Paulo/SP

“Sou professor de Filosofia desde 2012. Neste ano, assumi uma turma de 3º ano do Ensino Médio já no início do segundo bimestre. Assim que cheguei, senti uma resistência da parte dos estudantes, talvez pela troca de professor, e um desinteresse pela minha disciplina. Enquanto eu falava, a maioria dos alunos conversavam entre si ou dormiam ou ainda tiravam sarro uns dos outros ou faziam qualquer outra coisa, menos escutar o que eu dizia. Isso também se refletia na desimportância dada aos trabalhos propostos. Muitos dos adolescentes, simplesmente, não entregavam os trabalhos e só se lembravam dos mesmos quando percebiam que estariam prejudicados em sua média bimestral.

Conforme as aulas iam acontecendo, me dediquei a entender quem eram os meus alunos e a me aproximar deles de maneira individualizada. Isso fez com que eu mudasse tanto a minha abordagem pedagógica quanto as minhas intervenções no momento em que alguma ação perturbadora acontecia em sala. Um exemplo foi o tema sobre o qual nos debruçamos no terceiro semestre.

Como três dos jovens fazem curso técnico na área de tecnologia, comecei a conversar sobre o assunto. A turma ficou muito interessada, o que resultou em um trabalho gratificante e com muita participação dos meninos e meninas sobre o uso da internet e como ela influencia nossas vidas atualmente. Outro exemplo, foi o fortalecimento da relação professor-aluno. Percebi que quando eu precisava chamar a atenção de algum estudante e o fazia em uma conversa olho no olho ou o chamava pelo nome, a resposta era mais positiva, do que quando eu dava uma simples bronca ou falava de maneira genérica.

Minha busca é para que os alunos entendam que estou ali para contribuir com o desenvolvimento deles e não para ser um carrasco, sempre respeitando suas opiniões e incentivando suas produções. Percebi que a minha atitude criou uma abertura e uma disposição para que a turma me tratasse da mesma maneira e me sinto satisfeito com o trabalho que estamos desenvolvendo atualmente.”

Rafael Botaro, professor de Filosofia, da EE Isidoro Daun, em Lupércio, no interior de São Paulo

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