Letramento matemático leva alunos para além dos cálculos
Na Base, a Matemática vai além dos cálculos: ela passa pela capacidade de raciocínio e de argumentação
POR: Beatriz Vichessi“Quero que as crianças aprendam a investigar os números e as relações entre eles e não simplesmente que resolvam contas de forma mecânica e decorem a tabuada sem compreendê-la”, diz Mariana de Gouvêa, professora do 1º ano da EE Brasilio Machado, na capital paulista. A maneira com que a educadora expõe a forma como trabalha tem tudo a ver com uma diretriz importante descrita na Base Nacional Comum Curricular (BNCC): o letramento matemático.
De acordo com o documento, o letramento matemático pode ser definido como as competências e habilidades de raciocinar, representar, comunicar e argumentar matematicamente, de modo a favorecer o estabelecimento de conjecturas, a formulação e a resolução de problemas em uma variedade de contextos, utilizando conceitos, procedimentos, fatos e ferramentas matemáticas. “Trabalhar nessa perspectiva pressupõe privilegiar o esforço produtivo da turma, refletir sobre o processo, deixando para trás a ideia de que saber Matemática implica só acertar resultados e sempre com rapidez”, diz Cristiane Chica, gestora pedagógica do Mathema. O sujeito matematicamente letrado usa ideias matemáticas como forma de leitura de mundo.
“Ele sabe fazer cálculos aproximados para descobrir o quanto de juros está embutido em um pagamento a prazo e tem segurança para dizer se o resultado de uma conta é razoável ou não”, explica Luciana Tenuta, formadora de professores e assessora da rede municipal de Educação de Belo Horizonte. Claudia Siqueira, diretora do Instituto Sidarta, em São Paulo, completa: pessoas letradas em Matemática fazem uso da função utilitária da disciplina e também sabem lidar com reflexões puramente matemáticas.
Esse jeito de enxergar e ensinar a disciplina, com todos esses objetivos, soa familiar? De fato, o letramento matemático não é uma novidade e tem tudo a ver com o que Constance Kamii, Guy Brousseau, Susana Wolman e outros estudiosos da didática da área defendem há tempos: o saber matemático vai muito além do cálculo e está diretamente relacionado à construção do raciocínio e à argumentação. A ideia de letramento, porém, não aparecia com esse nome em documentos oficiais, como os Parâmetros Nacionais Curriculares (PCNs). Antes, eram usados termos como numeramento, numeracia ou alfabetização matemática. Cristiane explica: “Na Base, o letramento é claramente declarado uma aprendizagem essencial que deve nortear currículos e propostas pedagógicas. Na prática, a escola deve proporcionar condições didáticas para a turma raciocinar, usar conceitos e ferramentas para dizer, explicar e predizer matematicamente dentro e fora da sala de aula”.
COMO ABRIR ESPAÇO PARA A APRENDIZAGEM MATEMÁTICA?
As tarefas aumentam a possibilidade de os alunos aprenderem quando:
1. São possíveis de serem trabalhadas por meio de diversas representações.
2. Dão oportunidade de investigação aos alunos.
3. São apresentadas antes de o professor expor o método de resolução.
4. Têm componentes visuais.
5. São desafiadoras e ao mesmo tempo acessíveis - têm “piso mais baixo e teto mais alto”.
6. Desafiam os alunos a argumentar com razões cada vez mais completas para convencer os colegas e ter uma postura cética.
Fonte: Livro Mentalidades Matemáticas, Jo Boaler (Editora Penso)
Mais do que resolver, é preciso refletir
Formar alunos letrados em Matemática tem a ver com incentivá-los a estar em ação durante a aula, a interagir com colegas e elaborar conjecturas e hipóteses, além de usar os números para alcançar respostas significativas para formular conceitos e participar de correções coletivas em que se discutem os resultados. “A força de trabalho fica nas mãos das crianças”, defende Luciana. Segundo ela, ao professor cabe perguntar, ouvir respostas e provocar, intervindo de modo construtivo. E mais: ele precisa, de acordo com Claudia, acolher as diferentes formas de se chegar a um resultado e também proporcionar aulas em que diferentes resoluções sejam compartilhadas e gerem discussões entre os estudantes a fim de a gerar inputs para outras crianças.
“Nem sempre a Matemática na escola é pauta de reflexão, está mais só para constatação. E isso precisa mudar”, diz. Jo Boaler, no livro Mentalidades Matemáticas (Editora Penso), escreve: “Quando meus alunos me pedem ajuda, tenho todo o cuidado para não fazer o raciocínio matemático para eles”. Na obra, Jo explica a importância de não decompor os problemas para a turma, de modo a facilitá-los, subtraindo a demanda cognitiva. Defende que não ajudar os estudantes é, com frequência, o melhor que pode ser feito por eles. Prefere incentivar a turma a desenhar o problema, buscar outros recursos para tentar visualizar a questão e, então, solucioná-la. Ela também recomenda o uso em sala de aula de tarefas matemáticas de mentalidade de crescimento para abrir espaço para o aprendizado (confira suas características abaixo), em vez das atividades estreitas e procedimentais, que simplesmente exigem a realização de um cálculo.
Na sala de aula de Mariana, na EE Brasilio Machado, esse jeito de explorar Matemática está nos detalhes. Está, por exemplo, no calendário exposto no quadro e usado pelos alunos para contar quantos dias faltam para determinado evento. Está também na sequência numérica que serve de apoio até que eles se apropriem dela por completo e na priorização da via de resolução de problemas - uma das formas privilegiadas, de acordo com a BNCC, para desenvolver o letramento (saiba mais no quadro abaixo). Sem reduzir a Matemática à memorização, Mariana reforça a essência da disciplina e do aprimoramento do raciocínio lógico.
LETRAMENTO MATEMÁTICO EM FOCO
Confira três estratégias para desenvolver a habilidade em sala de aula
Resolução de problemas
É a atividade central na Matemática, com destaque para o desenvolvimento de processos pessoais de resolução, usando diferentes recursos. O aluno aprende enquanto resolve o desafio e na discussão com os colegas.
Investigação
O aluno é estimulado a buscar padrões na Matemática e organizar textos sobre isso. Para tal, usa-se especulação. Por exemplo: o que acontece com um número quando é multiplicado por 10 ou 100? E se for um número decimal?
Projetos e modelagem
Ao estudar um tema significativo com a turma, uma grande pergunta norteia o projeto, cujo produto final é feito com base nos conteúdos explorados. Na modelagem, aprende-se a construir modelos para resolver uma situação matemática apoiando-se em exemplos já conhecidos.
Embora possa parecer que lançar mão de contextos da vida real seja imperativo para tornar os alunos letrados em Matemática, alto lá! Situações cotidianas, que façam sentido para os alunos são bem-vindas, mas não podem ser as únicas. “Existem contextos intrínsecos à Matemática e eles devem aparecer nas aulas desde o primeiro ano do Ensino Fundamental”, explica Luciana. A tabela de Pitágoras, por exemplo, coloca em cena contextos puramente matemáticos. “Como saber o resultado de 7 vezes 8 investigando outras colunas que não a desses números? Posso usar a do 5 e do 2, por exemplo: 5 vezes 8 (40) mais 2 vezes 8 (16)”, explica.
Na Educação Infantil, as crianças da pré-escola também já devem trabalhar com problemas matemáticos. Mesmo ainda sem saber a sequência numérica de cor ou escrever os algarismos de modo convencional. Brincadeiras, jogos e questões cotidianas podem ser usados para fazer os pequenos se envolverem com a Matemática. Como dividir os blocos de montar da sala, de modo que todos recebam a mesma quantidade? Esse é um exemplo de uma das situações que podem ser propostas a eles. O objetivo não é que o grupo chegue à resposta certa, mas que se envolva com modos de resolver o desafio. As crianças costumam ir distribuindo item por item entre si, até que não reste mais nenhum. Ao final, têm de ser estimuladas a analisar se essa saída funcionou: todos receberam a mesma quantidade de blocos? Incentivar o registro do procedimento e do resultado é importante para que o grupo vá avançando no que diz respeito à elaboração do conhecimento no nível da representação, fundamental para a aprendizagem de cálculos e do recurso da antecipação.
É trabalhando com a linguagem e o jeito de fazer matemática que as crianças aprendem a trabalhar tal como os matemáticos, indo além da repetição de conteúdos (leia o quadro abaixo sobre a Teoria das Situações Didáticas formulada por Guy Brousseau). Com isso, têm chance de conquistar, de verdade, o letramento matemático para fazer uso dele pelo resto da vida, dando utilidade ao que é aprendido na escola.
TEORIA DAS SITUAÇÕES DIDÁTICAS
A proposta de Guy Brousseau é de que, na escola, o professor ensine dando condições aos estudantes para construírem o conhecimento
- Desafiar os alunos a tomar decisões, de modo que formulem ideias
- Fazer com que eles coloquem essas decisões em jogo, de modo a prová-las
- Organizar debates para que o grupo discuta estratégias de resolução: quais são mais adequadas?
Fonte: Introdução ao Estudo das Situações Didáticas - Conteúdos e Métodos de Ensino, Guy Brousseau. Editora Ática
Fonte: BNCC Consultoria: Cristiane Chica, gestora pedagógica do Mathema
Fotos: Patrícia Monteiro/NOVA ESCOLA