Desigualdade de gênero: a mácula do século 21
Sem adotar medidas para acelerar a igualdade, levaremos no mínimo cem anos para alcançá-la
POR: Alessandra Gotti"Tal como a escravatura e o colonialismo foram manchas dos séculos anteriores, a desigualdade de gênero devia envergonhar-nos a todos no século 21", afirmou o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, em 27 de fevereiro deste ano na Universidade New School, ao receber o título de “doutor honoris causa”.
A desigualdade de gênero é, infelizmente, um fenômeno global. Segundo o Relatório divulgado em dezembro de 2019, no Fórum Econômico Mundial, houve singela melhora no último ano: dos 153 países pesquisados, 101 apresentaram melhores indicadores.
O tempo para alcançar a efetiva paridade de gênero no mundo diminuiu de 108 para 99,5 anos. No mercado de trabalho, porém, se mantido o ritmo atual, a igualdade entre os sexos levará 202 anos.
Em 2018, o Brasil ocupava o 79º lugar em 189 países no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). No quesito igualdade de gênero despencava quase 20 posições, ocupando o 95º lugar. Em 2019 avançou 3 casas e está agora no 92º lugar.
Estereótipos e a escolha da profissão
Para avançar e romper a assimetria entre homens e mulheres é necessária uma mudança cultural e a Educação possui papel central nesse processo.
Há a percepção social de que o cuidado com as pessoas é uma atribuição feminina e isso impacta desde o estímulo das meninas e meninos na primeira infância à escolha da carreira na juventude.
É curioso notar que em pleno século 21 brinquedos como blocos de montar, bolas, jogos de raciocínio e games são mais direcionados aos meninos, enquanto as meninas ficam com as bonecas e as panelinhas.
Esse mesmo modelo se reproduz na escolha de carreiras. A maioria das mulheres está em cursos superiores nas áreas de Educação, Saúde e bem-estar social, relacionados ao cuidado com o próximo, e são minoria nos cursos de exatas e tecnologias, conforme pode ser observado no Censo da Educação Superior de 2017.
É preciso romper com estereótipos de gênero no ambiente educacional e combater visões de que há profissões “ditas femininas” e que as mulheres não são boas nas carreiras relacionadas a exatas e tecnologias.
Ao analisar como aumentar a presença de mulheres nessas carreiras, o Instituto Unibanco, no Boletim Aprendizagem em Foco, destacou o relatório “O ABC da Igualdade de Gênero na Educação”, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Nesse relatório foram analisados comportamentos de pais e professores que afetavam o resultado de meninos e meninas no Programa Internacional de Avaliação de Alunos - PISA, que avalia o nível educacional de jovens de 15 anos por meio de provas de leitura, matemática e ciências.
As meninas relataram ter menos autoconfiança em sua habilidade para resolver problemas de matemática e eram mais propensas a expressar fortes sentimentos de ansiedade em relação a essa disciplina, fatores que têm impacto negativo no aprendizado. O interessante é que, comparados estudantes com iguais níveis de autoconfiança e ansiedade, a desigualdade de resultados entre meninos e meninas desaparece.
Renata Cafardo e Luiz Fernando Toledo, jornalistas especializados em Educação, chegaram a conclusão semelhante ao analisar os resultados do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) em 2019. Constataram que mais de 70% dos estudantes que tiraram as 1.000 maiores notas são meninos, embora as meninas sejam a maioria entre os candidatos. As meninas pretas e pardas representam apenas 6% das notas mais altas. A maior diferença está justamente nos exames de matemática e ciências.
A existência de referências femininas em exatas no corpo docente e programas de orientação vocacional são estratégias importantes para combater estereótipos de gênero na escolha das carreiras.
Além disso, na outra ponta, é urgente a adoção de medidas para evitar a assimetria de salários entre homens e mulheres para as mesmas funções. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgados em 2019, essa diferença é, em média, de 20,5%. Maior equidade representa mais recursos circulando na economia do país, já que as mulheres são 51% da população brasileira. É, portanto, no mínimo, um diferencial competitivo.
Tolerância à discriminação de gênero
A discriminação de gênero não pode ser mais tolerada. Da Presidência da República ao ambiente escolar é preciso dar o exemplo e romper com o machismo e a misoginia.
Segundo a pesquisa “Preconceito e Discriminação no Ambiente Escolar”, o maior índice de atitudes discriminatórias é o relativo à discriminação de gênero (38,2%), seguido da relativa à discriminação geracional (37,9%), à deficiência (32,4%), à identidade de gênero (26,1%), à socioeconômica (25,1%), à étnico-racial (22,9%) e à territorial (20,6%).
O percentual de concordância com frases que expressam o preconceito de gênero revela a importância do enfrentamento do tema para garantia da igualdade de gênero no ambiente escolar.
Tal circunstância revela a necessidade da adoção de estratégias de sensibilização vocacionadas a combater a naturalização da discriminação e violência contra a mulher na sociedade. A escola tem um papel preponderante nesse processo, a educação é o primeiro passo.
Em pleno século 21, a paridade entre os sexos é não apenas um diferencial competitivo mas, sobretudo, um imperativo legal e ético. Esse ideal deve ser perseguido pelas instituições brasileiras com afinco. Como mencionou Guterres, “a igualdade de gênero é o pré-requisito para um mundo melhor”. Resta esperar que possamos vivenciar esse novo mundo, sem a mácula da desigualdade entre homens e mulheres, ainda neste século.
Alessandra Gotti é fundadora e presidente-executiva do Instituto Articule. Advogada e Doutora em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Consultora da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e do Conselho Nacional de Educação (CNE).
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