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“Não temos de dar conta de tudo porque algumas coisas não são para se dar conta mesmo”

Em meio à pandemia do novo coronavírus, a psicanalista Vera Iaconelli alerta para o perigo de que os professores estão, sim, em risco de sofrer com depressão, angústia, alcoolismo e uma série de outros males na tentativa de fazer algo impossível: a escola ser normal num período totalmente anormal

POR:
Soraia Yoshida
A psicanalista e diretora do Instituto Gerar, Vera Iaconelli     Crédito: Divulgação

Psicanalista, mestre e doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP), Vera Iaconelli tem dado muitas entrevistas à imprensa falando sobre a importância de não encararmos o ano de 2020 como perdido por conta das mudanças que todos estamos tendo de encarar com o isolamento social provocado pela COVID-19. 

Ela é diretora do Instituto Gerar, que oferece tratamento e desenvolve pesquisas na área de bem-estar mental. Autora de "O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI", ela defende também que não há indícios e que é pouquíssimo provável que as aulas a distância substituam as presenciais - assunto que tem tirado o sono de muitos educadores. Diz ainda que ficou bem claro que o virtual não é desejável para ninguém, ainda que a Educação a Distância (EAD) provavelmente apareça mais e ganhe mais formas. A presença dos professores , de acordo com ela, nunca foi tão valorizada quanto está sendo agora. 

Em relação ao estresse sentido pelos professores, cobrados para dar conta do ensino remoto, Vera concorda que o ensino e a aprendizagem dos conteúdos curriculares ficaram comprometidos nesse novo modelo e que é necessário pensar em formas de recuperá-los lá adiante e usar como meta o possível, não o idealizado.
 

Estamos vivendo um período excepcional com a pandemia, que afeta não apenas o trabalho, como a vida pessoal. Com tanta coisa em jogo, dá para afirmar que vamos voltar a ser felizes? 

É um erro muito grave da nossa cultura supor que existe a felicidade como um platô ao qual você chega e é feliz. A felicidade é episódica, ocasional. Acontecem momentos de felicidade na vida e vivemos momentos de infelicidade também. Se lembrarmos da história da humanidade – e é um bom momento para retomar essas questões com as crianças –, já passamos  por guerras mundiais e grandes tragédias, chegamos até aqui e, nesse processo, voltamos a ser felizes muitas vezes. Depois da gripe espanhola, que matou muito mais gente do que o Covid-19 e gerou uma tremenda comoção, tivemos o maior Carnaval da história [no Rio de Janeiro, em 1919]. Vamos conseguir nos reorganizar. 

O que mais se ouve dizer agora é "nada será como antes". Isso é completamente negativo ou esse sentimento pode se transformar em algo positivo?

Considero um tremendo exagero imaginar que nada será como antes. Talvez isso seja dito como uma esperança para modifiquemos uma série de coisas que não conseguimos fazer no dia a dia. Acredito que teremos novos desafios, novas conquistas com a virtualidade, mas logo, logo, retomaremos nossa vida, que vai se reorganizar de forma um pouco diferente, não totalmente diferente. É um pouco fantasioso acreditar que tudo mudará após a pandemia.

Por causa do isolamento social, os professores estão tendo aprender novas metodologias e lecionar online. Isso pode ter um efeito positivo, ser um desafio para evoluir na maneira de lecionar. Mas o que fazer com o medo e a frustração que aparecem junto com essas novidades? 

Os desafios enfrentados pelos educadores, especialmente os da rede pública, têm sido gigantescos. Eles estão sobrecarregados, fazendo uma tarefa para a qual não se prontificaram num primeiro momento e com resultados muito questionáveis porque o virtual não é para todos os alunos, tampouco para todos os professores. O esforço deles tem de ser valorizado - desde que não se espere que o resultado seja comparável ao que temos na sala de aula presencial. Temos de baixar um pouco as expectativas, respeitar as limitações das crianças e de quem ensina e fazer o que é possível. Quer dizer, fazer aquilo que cada um reconhece como algo que pode ser feito sem adoecer a si próprio e aos demais. Se consigo me comprometer a dar dez aulas por dia e assim não adoeço, não fico deprimida, não trato os outros mal nem não me prejudico, esse então é o meu possível. 

Quais são os maiores riscos para a saúde mental de um educador que tem de cuidar das próprias angústias, das angústias da sua família e, muitas vezes, das angústias dos estudantes? Ele precisa impor limites para se preservar?

Os professores estão, sim, em risco de sofrer com depressão, angústia, alcoolismo e uma série de outros males na tentativa de dar conta do impossível: fazer com que a escola seja normal no período totalmente anormal que vivemos hoje. É preciso haver uma conversa entre educadores, pais, alunos e instituições para redução de danos psíquicos de todos os envolvidos na Educação. Os educadores precisam ter como e com quem conversar sobre o que estão sentindo e passando e usar como meta o possível, não o idealizado. Se você idealiza e fantasia, você desiste. Então, vamos ver o que é possível fazer esse ano. Estamos vivendo um ano atípico. Essa não vai ser a forma de se fazer Educação nos próximos anos, é só por um período: 2020 é um ano que terá de ser recuperado ao longo dos próximos.
  

Como o professor deve lidar com estudantes que desabafam por não ter com quem falar sobre seus problemas? Qual a abordagem usar com eles e com os familiares?

É muito importante abrir espaço para o estudante falar dele mesmo e do que está sentindo. Mas o educador não têm de dar conta de funcionar como um consultório psicológico nem de ocupar o espaço que é dos pais e de outros agentes sociais que fazem parte da vida de uma criança, de um adolescente. Um desabafo pode ser acolhido à medida em que o professor possa encaminhar o aluno para quem for responsável pelas questões que ele revela e também à medida que o profissional possa desabafar com alguém.
 

Muitas pessoas, inclusive educadores, têm dito que "nunca trabalharam tanto como agora, em casa". Antes da pandemia, as estatísticas já mostravam que muitos se afastavam do trabalho com de síndrome de Burnout e com depressão. Estamos diante de um novo cenário de esgotamento profissional?

O trabalho em casa responde a uma fantasia neoliberal de produtividade, que a gente sabe que é um risco para todas as profissões. Não tem hora para começar, não tem hora para acabar, não tem hora do almoço, não tem fim de semana, não tem feriado... É aquele pensamento, “já que você está em casa mesmo...”. É importante, então respeitar ao máximo possível os horários de trabalho porque o que a gente não cortar agora, vamos ter de cortar quando adoecermos. Tudo o que não podemos parar para resolver, que não podemos parar de jeito nenhum, vamos parar ao adoecer.

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A profissão docente é marcada (ou era, até o impacto do novo coronavírus) pelo contato cara a cara diário. Isso não está ocorrendo e existe a probabilidade de que demore para voltar. Alguns docentes temem o esvaziamento da função, dizem se sentir despersonalizados, deslocados do mundo já que não podem fazer o que sabem fazer. Como lidar com isso? 

A presença dos educadores nunca foi tão valorizada como agora e cabe a nós resistir a tudo o que for contrário a isso. Eles têm de exigir a valorização de seu trabalho como sempre precisaram exigir, e a sociedade como um todo tem de apoiá-los. Nem os pais querem aulas virtuais para sempre e tampouco as crianças. Alguns cursos serão virtuais com vantagens, outros não. No mais, não há indícios e é pouquíssimo provável que a Educação a distância substitua a modalidade presencial. Ela vai substituir pontualmente, mas nunca em absoluto. Para as crianças pequenas e para as que estão em fase de desenvolvimento até a adolescência, é imprescindível o contato presencial entre pares e com o professor. O fato de estarmos fazendo esse contato virtualmente dia e noite prova isso. Até temos a competência para o virtual, mas ficou bem claro que não é desejável para ninguém. É claro que a Educação nesses moldes teve um upgrade, vai aparecer mais e ganhar mais formas. Mas nunca irá substituir o modelo presencial pelo próprio aspecto do desenvolvimento subjetivo psíquico humano, que contempla questões como afetos, emoções, ideias sobre si, a autoimagem, as ideias sobre os outros. 
 

A ansiedade de não dar conta das coisas é algo de que muitos educadores têm se queixado nas redes sociais e nas conversas com NOVA ESCOLA. O que tem a dizer para ajudá-los? 

Vamos pensar no que é exequível. Esses profissionais estão em casa com seus próprios filhos, que também têm aulas, enfrentando um estresse tremendo, têm que cuidar do serviço doméstico e das demandas profissionais. E tudo isso às vezes não tem hora para acabar, nunca toca o sinal na casa de quem está dando aulas a distância. Não temos de dar conta tudo porque algumas coisas não são para se dar conta mesmo. A gente tem que parar e pensar no que pode fazer e no que não dá, e negociar com a escola, com os pais, com a criança e com a nossa própria família.
 

Como a ausência de abraços e de contato físico, coisas rotineiras no espaço escolar impacta educadores e estudantes?

A falta de contato físico impacta todos nós. Principalmente as crianças menores, que têm muita dificuldade de aproveitar uma Educação totalmente virtual porque a questão corporal é muito premente. Mas vamos sair disso logo. Não podemos imaginar que serão danos irreparáveis ou processos que levarão uma vida inteira. É um período – e a gente tem bastante competência para superar períodos de crise.
 

A resiliência talvez seja a característica mais exigida agora, durante o isolamento. É algo que se pode aprender? Como ensinar uma criança a ser resiliente?

Os professores podem aproveitar esse momento para ensinar a elas lidar com frustração, espera, indeterminação e com seus próprios limites ao mesmo tempo que ensinam o conteúdo escolar, que deve ser passado na medida do possível, porque, de novo, repito, esse não é um ano normal. Os educadores têm que ajudar os alunos, gradualmente, a estabelecer a competência da resiliência, a lidar com o sofrimento e com privações sem ter de fazer coisas. Quando digo fazer coisas, tem a ver com ficar violento, comer demais, beber, fazer algo para não pensar no que está acontecendo. Esse é um momento de reflexão.
 

A sensação de 2020 ser um ano letivo perdido e a ansiedade gerada pelo desejo de volta às aulas também devem mexer com professores e com os estudantes que já estão bem fragilizados com o isolamento social e com as aulas remotas. Como o  conduzir o retorno da melhor forma?

Não diria “ano perdido” porque essa é uma fase em que muita coisa se apresentou e quando aprendemos muita coisa. Aliás, ainda podemos aprender bastante. O ensino e a aprendizagem dos conteúdos curriculares ficaram comprometidos - não podemos negar isso - e temos de pensar em formas de recuperá-los lá na frente. Mas não podemos deixar esse ano passar como algo irrefletido. Temos muita lição para tirar desse momento e podemos incluir as crianças nessa reflexão. A pandemia nos obrigou a exercitar uma série de competências sociais e reflexões sobre cidadania e sociedade que não podem ser desperdiçadas.
 

Pais, educadores, alunos… As pessoas só querem que tudo volte ao normal. Mas esse normal de antes acabou, não é mesmo? 

A gente não volta para lugar nenhum. Temos de ir rumo a coisas melhores e coisas piores. As mudanças estão postas. Fazemos parte de uma sociedade que preza o novo e está sempre procurando por novidades. Se não fosse a pandemia, seria outra coisa que nos confrontaria com o novo. Então, não temos para onde voltar. É para frente que se vai – em direção a uma nova realidade.