12 respostas sobre Educação inclusiva em tempos de pandemia
Com tantos desafios durante a crise que o país enfrenta, especialistas apontam caminhos para não deixar nenhum aluno com deficiência para trás
POR: Camila CecílioVocê já conhece essa história: quando a pandemia do novo coronavírus se agravou em meados de março, as escolas fecharam e os educadores tiveram de se reinventar para garantir o direito de todos à Educação. E você também conhece bem os desdobramentos provocados por essa situação ímpar. Estudantes sem conexão com a internet e desmotivados, dificuldades para apresentar aulas online, dúvidas sobre como engajar e avaliar a turma…
Quem trabalha com turmas que têm alunos com deficiência tem desafios ainda maiores. É preciso pensar em formas eficientes para se comunicar com eles a distância e pensar no que fazer para apresentar conteúdos acessíveis, dentre outros detalhes.
Para contribuir com quem está buscando saídas para não deixar nenhum aluno com deficiência para trás mas ainda tem muitas dúvidas sobre como lidar com o público da Educação Especial neste momento delicado, NOVA ESCOLA convidou Lailla Micas, coordenadora do portal DIVERSA, uma iniciativa do Instituto Rodrigo Mendes (IRM), e Maria da Paz Castro (Gunga), coordenadora pedagógica e consultora da área de inclusão da Escola da Vila, em São Paulo, para responder 12 perguntas sobre o inclusão na Educação. Confira.
1. Se não recebo devolutivas de familiares ou responsáveis por alunos com deficiência sobre as atividades enviadas para casa, devo insistir para que a criança participe ou respeitar o silêncio deles?
“Essa é uma questão importante, que não tem a ver apenas com alunos com deficiência”, ressalta Gunga Castro. Nem todos os pais conseguem acompanhar a vida escolar dos filhos do jeito que os educadores gostariam que fosse, e isso acontece por vários motivos: falta de tempo, de estrutura tecnológica, de espaço etc. “Acredito que a maioria dos familiares gostaria de ver as crianças estudando e acompanhar o processo, mas sabemos que isso pode ser um desafio muito grande para quase todas as famílias”, diz ela. Ainda de acordo com Gunga, outro aspecto que se faz relevante quando pensamos nos familiares e responsáveis é que eles não têm a experiência e a formação de educadores. Por conta disso tudo, neste momento, mais do que insistir com os pais para que os alunos participem das aulas e façam as atividades, é melhor se colocar à disposição para ouvi-los e tentar descobrir quais são as possibilidades e dificuldades deles, fortalecer vínculos. É essencial encontrar maneiras de fazer com que a escola, de alguma forma, se faça presente na vida dos alunos e assegure que o lugar deles está garantido. Sobre os estudantes com deficiência, especificamente, Lailla Micas destaca que diante do silêncio deles e dos responsáveis, sempre é importante pensar no que pode estar fazendo que os estudantes não participarem. Ou seja, quais são as possíveis barreiras à participação deles. “O aluno pode, por exemplo, não estar conseguindo fazer as atividades porque elas não estão acessíveis para ele. Pode ser também que esteja se sentindo desestimulado porque só recebe as propostas da professora do Atendimento Educacional Especializado (AEE) e não da professora da turma. Ou ainda porque é convidado a ficar à parte com a professora de AEE enquanto a turma se reúne virtualmente”, explica.
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2. Sou professor de uma turma regular. Posso contar com a parceria de um professor do AEE para pensar as adaptações necessárias nesse momento para estudantes com deficiência? Como garantir esse profissional?
De acordo com Gunga, o profissional do AEE tem como tarefa contribuir para que todos os alunos possam viver, aprender e conviver na escola, com igualdade de oportunidades e com a segurança necessária. Cada instituição escolar tem sua forma singular de lidar com esta questão, e a equipe gestora é a instância mais apropriada para articular a parceria entre o professor de sala e o profissional do AEE.
3. Qual é o papel do profissional do AEE no planejamento e dia a dia do ensino remoto?
Lailla explica que, durante a pandemia, é importante considerar dois pontos sobre o trabalho do AEE. O primeiro é a importância da interlocução, do alinhamento e do trabalho colaborativo dos professores deste atendimento com os professores da sala comum e com a coordenação pedagógica. A relação entre o trio deve ser mantida e fortalecida para que os profissionais de AEE apoiem os de sala comum no que diz respeito à criação de recursos pedagógicos acessíveis e ao planejamento de atividades inclusivas para toda a turma. “Mas o professor de AEE não deve ficar inteiramente responsável pelo trabalho pedagógico com os alunos com deficiência”, explica. Ou seja, esse estudante, tal como os demais, é responsabilidade do professor de sala. Existem muitos benefícios quando o trabalho conjunto entre esses dois profissionais é feito, pois a parceria agrega qualidade à proposta pedagógica não só para os estudantes com deficiência como para toda a classe. O segundo ponto de atenção tem a ver com a permanência das aulas do AEE durante o período de aulas remotas. “Elas devem ser mantidas para que um estudante que se comunica por meio da Língua Brasileira de Sinais, por exemplo, continue tendo acesso à aprendizagem de Libras, porque é algo que, às vezes, ele não tem contato em casa”, diz Lailla. Além disso, outra questão importante é que a escola disponibilize por meio de empréstimo, se for o caso, as tecnologias assistivas essenciais para o estudo e a realização das atividades pelo aluno em casa.
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4. O que preciso levar em conta no planejamento das atividades para os estudantes com deficiência no ensino remoto?Primeiramente, Gunga Castro explica que é preciso considerar que os alunos são diferentes entre si, ainda que tenham a mesma deficiência, por exemplo. Faz-se necessário, então, levar em conta as potencialidades e as necessidades de cada um para traçar um plano de trabalho individual, ainda que breve e que possa ser revisado sempre. Nenhum estudante aprende com uma intervenção feita para todos. “Se tivermos que pensar em aspectos a serem considerados, é importante que se leve em conta, além das potencialidades e das aprendizagens que ele já construiu, o tipo de ajuda e apoio que cada um pode necessitar”, explica. Ele precisa da presença de um adulto para realizar as atividades ou participar dos encontros remotos? Será necessária uma preparação anterior, para que ele conheça minimamente o que vai ser proposto? Algum material específico? Alguma conversa com os pais ou adulto responsável? Com que grau de autonomia podemos contar? Será necessário algum tipo de acesso comunicativo, como linguagem de sinais, descritor etc.? “Vale salientar ainda que, por mais que a interlocução com a família ou a presença de profissionais de apoio sejam importantes, não podemos deixar de ouvir o próprio aluno e dar a ele a oportunidade de mostrar a melhor forma de atendê-lo, e de que maneira ele se sente mais confortável”, diz Gunga.
5. O que preciso considerar se a aula é digital? É importante garantir, por exemplo, que materiais em vídeos tenham legendas impressas, audiodescrição e janela de tradução de Libras, ou que textos sejam legíveis por meio de softwares?
“Sim, tudo isso é fundamental”, fala Gunga. Se estes recursos não estão sendo disponibilizados pelas escolas ou pelo poder público, é muito importante não perder de vista a necessidade de lutar e cobrar das instâncias responsáveis. “Enquanto o ensino, seja remoto ou presencial, não for acessível a todos, estaremos oferecendo uma Educação pela metade e fabricando, por assim dizer, alunos com deficiência”, ressalta.
6. Devo estabelecer metas de aprendizagem para as estudantes com deficiência nesse período?
Sim, tal como é feito para todos os alunos. Certamente é preciso considerar que cada estudante é único e que, o fato de estabelecer metas de aprendizagem para eles, não significa que, necessariamente, terão de atingi-las no tempo e da forma como foi determinado. “Mais do que resultados imediatos, buscamos pela melhor forma de fazer com que aprendam”, fala Gunga. Voltar às metas estabelecidas, revê-las e buscar outros caminhos e outras estratégias, muitas vezes, é o que vai nos mostrar o que de fato nosso aluno precisa e consegue aprender, e de que maneira.
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7. Como posso fazer uma boa avaliação formativa dos alunos com deficiência durante o período de aulas remotas? O que devo considerar como parâmetros?
“A principal característica da avaliação formativa a ser considerada, seja o fato de que ela deve estar, necessariamente, a favor da aprendizagem do aluno”, explica Gunga. Neste momento em que estamos lidando com uma situação inusitada, que nos leva a fazer um trabalho ainda mais inusitado, isso merece destaque. Como parâmetros, é necessário avaliar as crianças a partir desta situação, considerando as perdas, as diferenças e as dificuldades que enfrentaram para estudar neste período. Mais que isso, de acordo com a especialista, é preciso compreender que não é possível avaliar os alunos se não nos debruçarmos também sobre a prática docente, as condições de trabalho e as tomadas de decisão em caráter de urgência.
8. Uma das principais questões sobre inclusão em escolas regulares é a interação com outros estudantes. Qual a importância disso durante a pandemia? Quais ações podem ser boas práticas para garantir que os alunos com deficiência sigam tendo esses momentos com os colegas?
“O convívio com a diversidade humana beneficia a todos”, explica Lailla. Ou seja, a Educação inclusiva tem efeitos benéficos para todos os estudantes, não apenas para os que têm alguma deficiência, pois promove ganhos em competências sociais e emocionais de todos, favorecendo o desenvolvimento integral de cada um. Então, de acordo com Lailla, uma primeira ação que professores podem ter como boa prática para garantir que o estudante com deficiência participe das atividades com os demais estudantes é realizar o planejamento colaborativo das estratégias pedagógicas com o profissional do AEE. “Assim, uma atividade pensada para a turma pode ser planejada e desenvolvida considerando as potencialidades de cada estudante e contemplando recursos pedagógicos acessíveis a todos”, explica. Gunga ainda ressalta que, mais do que a simples interação com os colegas, é crucial que os alunos com deficiência sejam tratados como alunos - não como crianças diferentes. “Talvez a escola seja o único espaço onde têm a oportunidade de serem tratados, tanto quanto possível, como os outros”, explica. Isso não significa desconsiderar as singularidades e necessidades de cada um, evidentemente. Quanto mais puderem viver entre todos, junto aos outros, mais adaptados e incluídos eles de fato estarão e assim vão se sentir.
9. Os alunos com deficiência devem voltar para a escola quando as aulas presenciais voltarem durante a pandemia?
De acordo com Lailla, sim. “Todos podem voltar às aulas presenciais desde que não tenham nenhuma comorbidade que os configure como grupo de risco”, explica. A maior parte dos protocolos internacionais e os especialistas estrangeiros consultados pelo IRM no estudo Protocolos sobre educação inclusiva durante a pandemia da covid-19 - Um sobrevoo por 23 países e organismos internacionais consideram que o laudo médico de deficiência não pode ser aceito como justificativa para que estudantes sejam impedidos de voltarem a frequentar as aulas presencialmente, pois nem todas as crianças e adolescentes com deficiência pertencem a grupos de risco da covid-19. Ou seja, somente crianças e adolescentes com eventuais comorbidades, independentemente de ter deficiência ou não, podem ser mais vulneráveis à covid-19. A análise deve ser feita caso a caso, e a decisão, envolver as escolas, as famílias, profissionais da saúde e os próprios estudantes.
10. Quais são as dicas para garantir a adaptação dos alunos com deficiência no retorno presencial considerando o tempo distante da escola e dos colegas?
“Primeiramente, eles precisam se sentir seguros em relação aos protocolos sanitários adotados por toda a escola”, diz Lailla. Isso significa que não podem ficar à margem nem serem superprotegidos. Todos os estudantes, professores e funcionários devem ser treinados sobre a implementação das medidas de higiene. Além disso, no que diz respeito ao ensino e à aprendizagem, a pesquisa do IRM destaca a necessidade de monitoramento da presença e da assiduidade dos estudantes com deficiência, a fim de evitar o aumento da evasão escolar por parte desse público. Lailla fala que o estudo também aponta que é importante fazer uma avaliação diagnóstica de como foi a aprendizagem dos alunos com deficiência durante o isolamento e, a partir dos resultados, criar diferentes estratégias para reduzir eventuais defasagens. Dentre elas, estão aulas de reforço no contraturno, medidas de aprendizagem a distância, aulas extras em períodos de férias escolares e acompanhamento individualizado dos estudantes com deficiência. Aulas de revisão e recuperação de conteúdo são especialmente relevantes para os estudantes com deficiência intelectual. Outra boa prática tem a ver com todas as atividades diretamente voltadas à inclusão escolar, o planejamento, a oferta de material didático acessível, a disponibilização de cuidadores, intérpretes de língua de sinais e outros profissionais de apoio - elas devem ser retomadas e fortalecidas na volta às aulas presenciais. “Por fim, deixar um canal de comunicação aberto entre estudante, família e escola é essencial. Evidências apontam que envolver as famílias nas decisões e os próprios estudantes com deficiência pode ser útil para desenvolver maneiras mais inclusivas de trabalhar”, explica Lailla.
11. Há mitos ou ideias equivocadas sobre a inclusão dos estudantes com deficiência que precisam ser derrubadas nesse momento de pandemia?
A Educação Inclusiva é um tema constantemente permeado por muitas ideias e concepções diferentes e que precisam ser sempre discutidas, sobretudo pelos professores e pelos próprios alunos com deficiência e seus familiares. Algumas ideias, porém, têm dentro delas mesmas a discriminação e até a violação da dignidade de alguns sujeitos, e precisamos ficar atentos a elas, inclusive agora, durante a pandemia. Podemos tomar como exemplo a ideia de que muitos alunos com deficiência não têm condições de prosseguir os estudos para além do Ensino Fundamental ou a ideia de que cursar uma universidade parece impossível para eles - e mesmo que o façam, não serão capazes de trabalhar na área em que se formaram. “Vale a pena refletir também acerca da concepção de limites para a inclusão. Ou seja, sobre a ideia de que, para alguns alunos, o melhor é não ir à escola ou frequentar apenas os espaços de tratamento ou grupos de convivência”, diz Gunga. Isso subtrai deles o direito de viver entre seus verdadeiros iguais (crianças da mesma idade, submetidas às leis e regras comuns), e principalmente de escolher, junto aos familiares, onde querem estudar. Outro mito presente em alguns discursos é de que crianças com deficiência atrapalham o desenvolvimento dos colegas de turma e que a homogeneidade nas salas de aula garante, de certa forma, a qualidade da aprendizagem oferecida aos estudantes. “É muito comum também ainda encontrar uma descrença muito grande das possibilidades de viver e aprender de alguns sujeitos, colocando sempre a necessidade de serem tutelados o tempo todo e em qualquer situação’, afirma Gunfa. Isso só perpetua e cristaliza não somente as dificuldades que possam ter, mas também as barreiras a que são submetidos. Ainda de acordo com a especialista em inclusão, esses e outros são mitos que vêm sendo derrubados aos poucos (e isso se deve, principalmente, à entrada de alunos com deficiência na escola), com o ingresso, por exemplo, de estudantes com síndrome de Down e até autistas nas universidades. “No entanto, em tempos suspensão de atendimento escolar presencial, eles correm o risco de ganhar força novamente, devido a algumas dificuldades de acesso que muitos alunos estão enfrentando”, explica Gunga.
12. Quais lições podemos tirar do período de isolamento social e de suspensão das aulas presenciais?
Na opinião de Gunga, talvez a mais importante lição diga respeito à própria ideia de inclusão e de deficiência. Segundo a Convenção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, que em nosso país tem força de lei, a deficiência é definida única exclusivamente pelas barreiras a que os sujeitos enfrentam para bem viver na sociedade: “Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas.” De acordo com Gunga, a pandemia que vivemos nos impôs uma série de barreiras muito grandes e levou a todos a experimentar, em muitos momentos, a vida em situação de inclusão.
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