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Alfabetização em Lagoa Santa (MG): quando a teoria encontra a prática

Em parceria com a especialista Magda Soares, a rede municipal mineira constrói um trabalho de sucesso desde 2007. Os aprendizados do projeto estão consolidados no novo livro da alfabetizadora

POR:
Paula Salas
Em seu novo livro Alfaletrar: toda criança pode aprender a ler e a escrever, a professora Magda Soares compartilha os aprendizados da experiência de Lagoa Santa. Crédito: Tainá Frota/NOVA ESCOLA

"Trabalhávamos muito preocupadas com método, mas não sabíamos o que era", relembra a professora Mirlene Barcellos Teles, que atua como representante da EM Mércia Margarida, no município de Lagoa Santa (MG). Ela ingressou na rede há quase 30 anos, quando o pensamento construtivista chegava ao Brasil e acreditava-se que era a forma mais eficiente de alfabetizar crianças. Embora o embate dos métodos ainda ocupe boa parte do debate quando o assunto é alfabetização, esta não é mais uma preocupação no horizonte das salas de aula que Mirlene passa.

Uma parceria entre a secretaria municipal de Educação de Lagoa Santa e Magda Soares, 88 anos, professora emérita da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), transformou a prática de 24 escolas e quase 500 professores da Educação Infantil e Anos Iniciais do Fundamental. "Eu esperava compreender as escolas públicas e ajudar a esfera pública a ter qualidade na alfabetização. Não tinha um plano pronto para implementar, foi uma coisa construída por todos”, diz. A aproximação entre Magda e a secretaria resultou, em 2007, na criação do Núcleo de Alfabetização e Letramento, que surgiu na busca de aproximar a reflexão teórica da Universidade com a realidade da sala de aula, e do projeto Alfaletrar.

Reconhecida como uma das maiores especialistas de alfabetização do Brasil, Magda foi uma das criadoras da Faculdade de Educação da UFMG, introduziu no país o conceito de letramento e publicou mais de 40 livros, entre títulos acadêmicos e didáticos. Em sua nova obra Alfaletrar: toda criança pode aprender a ler e a escrever, que será lançada em 16 de setembro pela Editora Contexto, ela se debruça sobre as aprendizagens construídas ao longo de 12 anos de experiência do encontro da teoria e prática em Lagoa Santa para inspirar outras redes de ensino. “Pode ser construído em qualquer escola pública do Brasil. É possível dependendo do esforço da disposição e compromisso”, diz a alfabetizadora.

Professora Mirlene Teles compartilha a experiência com o projeto Alfaletrar na rede municipal de Lagoa Santa (MG). Crédito: Tainá Frota/NOVA ESCOLA

Alfabetização em 2020

Neste Nova Escola Box sobre como replanejar as aulas para garantir avanços na alfabetização em ano de pandemia. Acesse também as habilidades prioritárias da BNCC para as aulas de Língua Portuguesa. 

O que acontece em Lagoa Santa
Toda segunda-feira desde 2007, uma professora representante de cada escola e Magda se reúnem para refletir sobre situações e dificuldades levadas pelas representantes. Em grupo, elas usam o embasamento teórico para pensar sobre a prática cotidiana no ciclo de alfabetização. Com a chegada da pandemia, os encontros passaram para o espaço virtual, mas continuam acontecendo com boas trocas. “[Apesar dos encontros chamarem seminários semanais] nunca foram aulas ou um curso. As discussões giram em torno do que elas trazem e o que propomos relaciona as práticas e teorias”, explica Magda.

Dois pilares da experiência de Lagoa Santa estão na mudança do foco da prática do professor – que deixou de ter foco no método e passou a ser centrada na aprendizagem do aluno – e a continuidade e acompanhamento do desenvolvimento cognitivo e linguístico das crianças dos 4 aos 8 anos.

As professoras que participam dos encontros são responsáveis por disseminar os aprendizados com suas escolas para pensar como adequar as propostas com base no acompanhamento do desenvolvimento dos alunos. "Uma vez por semana eu sento com cada professora e vou mostrando para elas como podemos fazer", explica Mirlene, que atua como representante de sua escola há 8 anos. Mensalmente, toda a rede se reúne para compartilhar os estudos coletivos que são realizados no Núcleo. Cada encontro, chamado de repasse, tem uma apresentação de um tema trabalhado naquele mês.

As professoraas representantes compartilham as aprendizagens com suas colegas. Crédito: Tainá Frota/NOVA ESCOLA

Alfabetização e letramento
O projeto não trata de moldar a prática do educador, mas de orientar e apoiar essa prática no base nos princípios que orientam o Alfaletrar (e inclusive a origem do nome): a indissociabilidade dos processos de alfabetização – domínio do sistema de escrita alfabética, isto é, a correspondência entre som e letra (fonema/grafema) – e do letramento – conhecer as práticas e usos sociais da língua escrita. Assim, a proposta parte da perspectiva de que as crianças aprendem a ler e escrever com textos reais, ao mesmo tempo que compreendem os usos culturais e sociais da língua escrita. Ou seja: o professor alfabetiza letrando. Cada um dos processos é distinto, mas devem ser simultâneos e ter a centralidade no texto. Parte do entendimento que as crianças se insere no mundo escrito desde antes da escola e elas aprendem a ler e interpretar.

Alfabetização usando diferentes gêneros textuais e metodologias ativas

Neste curso, a professora Mara Mansani explica como alfabetizar usando as metodologias ativas com gêneros textuais é mais do que decodificar letras e sons, é também compreender o que se está tentando ler, atribuindo significado ao conteúdo.

No site Alfaletrar cada um dos processos é explicado com maiores detalhes, e no seu novo livro, Magda se debruça na base teórica em cada um deles com exemplos de situações reais. Todos os pontos são fundamentados em conhecimentos multidisciplinar das áreas da psicologia, fonologia e linguística. Isto é, pesquisas que buscam responder a responder à pergunta: como a criança se desenvolve e constrói o conhecimento sobre a língua? Esse é o ponto de virada essencial no olhar do professor.

“Eu me transformei aprendi muito com o projeto porque ele traz uma alfabetização que não é mecânica”, diz Mirlene. Ela percebe que com os encontros com Magda e a experiência construída nos últimos anos, práticas que antes pareciam muito consolidadas para ela perderam o sentido. "Com o Alfaletrar não existe um método ou formas de trabalhar com a criança. A gente vai criando com os alunos a maneira de trabalhar. Sugerimos e eles respondem”. Mudar a forma de pensar sobre a prática e focar na aprendizagem do aluno é mais difícil e trabalhoso do que pode parecer – em especial no início. "Mas, depois que você pega o jeito, consegue tirar uma imensidão de atividades com base em um texto", incentiva Mirlene.

O apoio de uma biblioteca

Outra ação inicial importante foi montar uma biblioteca infantil em todas as escolas. “É impossível letrar sem uma biblioteca disponível", afirma Magda. Atualmente, uma das prioridades da rede é enriquecer e manter o acervo atualizado com bons títulos. Esses espaços devem ser acolhedores e ter opções variadas de gêneros textuais - no tópico "Biblioteca: o coração da escola", explica-se como ela pode ser organizada.

O desenvolvimento do projeto também permitiu que os docentes trabalhassem com mais segurança. “Mudou tudo, porque eu comecei a entender como os alunos aprendem. Sabíamos o que fazer e víamos os resultados”, diz Janair Cândida Cassiano, coordenadora do Núcleo de Alfabetização e Letramento. "Antes, eu me sentia perdida, mesmo com um currículo, cada professora partia de onde achava e tentava atirar para todos os lados". É essa mudança na prática do educador que Magda explica ser ensinar com método – que é diferente de adotar uma metodologia única. Mas, ter uma ação pedagógica bem fundamentada para a construção das aprendizagens. Em seu livro, Alfaletrar: toda criança pode aprender a ler e a escrever, Magda define que o processo de alfabetizar e letrar é: “compreender como a criança aprende a língua escrita, o sistema alfabético e seus usos, e com base nessa compreensão, estimular e acompanhar as aprendizagens com motivação, propostas, intervenções, sugestões e orientações, o que supõe um olhar reflexivo e propositivo sobre o desenvolvimento e aprendizagem da criança” (p. 290)

O projeto Alfaletrar surgiu com a chegada da professora Magda Soares na rede municipal de Lagoa Santa (MG). Crédito: Tainá Frota/NOVA ESCOLA

Para esta ação pedagógica, o acompanhamento é fundamental. Por isso, a primeira missão do Núcleo, ainda em 2007 (antes da Base Nacional Comum Curricular), foi organizar e formular metas de aprendizagem de Língua Portuguesa para cada ano da Educação Infantil ao 5º ano. Esse documento foi construído no Núcleo como uma base curricular do município e com a participação dos professores representantes de cada escola, posteriormente discutidas com as equipes até a consolidação das diretrizes, que são revistas regularmente. “É um movimento permanente. Replicar não vai dar certo, é uma construção coletiva”, afirma Magda.

Com a criação dessas diretrizes a pergunta “o que ensinar” foi resolvida, a pergunta principal passou a ser: como vou trabalhar para que o aluno desenvolva aquelas habilidades? “As professoras começaram a perceber que tinham um amparo. Se não sabe como trabalhar, levam as dúvidas para os seminários e as professoras do Núcleo dão esse apoio”, explica Janair. Isso resulta em três ações: as metas de progressão, troca entre os educadores e revisão das metas constantemente para manter uma régua assertiva. Os princípios da integração e continuidade resultam em uma mudança no processo: o educador não planeja aula a aula, mas uma sequência de atividades que permitam que as crianças desenvolvam as habilidades previstas para um ciclo de aprendizagem.

São realizados diagnósticos permanentes, isto é, um olhar atento para o dia a dia do aluno, e periódicos, processos mais sistemáticos que acontecem três vezes ao ano e que buscam verificar a aprendizagem de habilidades específicas. Os resultados são analisados nas escolas e por toda a equipe do projeto para pensar nas próximas atividades e fazer ajustes no planejamento. “Nesses 12 anos em Lagoa Santa eu aprendi muito mais do que aprendi fazendo meus cursos de graduação e pesquisas, porque aprendi do real”, afirma Magda.

Lagoa Santa nas avaliações externas

 Apesar do projeto não ter como foco as avaliações externas, a mudança é perceptível. Os alunos que estavam no 1º ano em 2007, quando o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) do município estava abaixo da meta, chegaram ao 5º ano em 2011. Após terem passado por todo o Fundamental 1 dentro das iniciativas do projeto, o índice deu um pulo e superou a meta - passando de 4.8, em 2009, para 5.7, em 2011. Desde então, a rede continua acima da média.

Para Magda, o sucesso da experiência de Lagoa Santa se deve à cultura de rede que foi construída no município. Não há uma diferenciação entre as escolas. Todas, independente dos níveis socioeconômicos da região, têm um desempenho semelhante. Segundo as educadoras, há uma sintonia e integração entre toda a rede. Foi um projeto que foi construído e abraçado por toma a comunidade. “Qualquer mudança de gestão, os projetos mudam, mas ali eu tenho segurança que o Alfaletrar continua independente das mudanças porque a própria cidade está muito envolvida na realização”, diz Magda.  

Ensinar a ler e escrever a distância é possível, sim!

Entenda como organizar atividades remotas de escrita, leitura e oralidade para avançar na aprendizagem mesmo a distância. 

Frutos de um trabalho consolidado: sucesso no ensino remoto
Na quarentena, a estratégia escolhida pela rede não é inédita ou fora do que tem sido visto pelo país, no entanto, com o trabalho consolidado e uma equipe bem articulada, os resultados têm sido positivos. “É claro que isso não vai funcionar maravilhosamente como no presencial, porque processo de escolarização se faz na interação direta, mas [as atividades remotas] vão garantir que as crianças continuem trabalhando naquilo que vinha sendo ensinado”, explica Magda. Foram 17 dias parados até o início do envio das atividades. “As famílias abraçaram, tiram dúvidas. Temos um grande número de alunos atendidos”, conta Janair.

As sequências didáticas são pensadas para manter o vínculo e garantir a aprendizagem dos alunos, mas sem serem cansativas. Os princípios do trabalho com alfabetização, como a centralidade no texto, se mantém, mas têm sido utilizadas estratégias multimídias para desenvolver as mesmas habilidades trabalhadas em sala de aula. Uma estratégia adotada, conta Mirlene, é explorar um tema para a quinzena oferecendo mais de um texto com gêneros textuais diferentes e preparar, com base neles, atividades variadas.

Durante o ensino remoto, as professoras representantes do projeto continuam apoiando a prática e planejamento das professoras. Crédito: Tainá Frota/NOVA ESCOLA

O planejamento e preparação das atividades é responsabilidade do professor de cada turma. "A gente faz todo o processo para manter a qualidade do nosso projeto", explica Mirlene. As propostas são disponibilizadas on-line (ou entregues impressas na escola) a cada 15 dias. Os professores recebem as atividades realizadas da quinzena anterior. Elas são corrigidas e devolvidas para as famílias. Dessa forma, tem sido possível fazer um acompanhamento da aprendizagem dos alunos e, com base no que está sendo observado, os educadores preparam as próximas atividades para dar continuidade no desenvolvimento das turmas.

O papel e apoio das professoras representantes de cada escola no projeto mantém-se essencialmente o mesmo. Elas apoiam a prática e planejamento de cada turma – com a adaptações necessárias do cenário atual. Mirlene conta que recebe as atividades no início da semana, faz uma revisão e recomenda alterações, quando necessário. Nesse retorno inclui comentários explicando o porquê por trás das sugestões de forma a colaborar para a formação das educadoras. “Na volta às aulas, vamos ter que planejar e fazer um diagnóstico. Isso é um problema que estamos todos enfrentando, mas eu tenho confiança de que em Lagoa Santa esteja sendo garantida com um mínimo de continuidade”, afirma Magda Soares.