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A festa junina como elemento pedagógico: vencendo estereótipos e trabalhando com elementos culturais

Olhar para as festividades de junho como parte integrante da rica cultura popular brasileira é a chave para desenvolver boas práticas pedagógicas nesse período

POR:
Evandro Tortora
Crédito: Getty Images

Com a chegada do mês de junho, chega também o tempo das famosas festas juninas. Nossas crianças começam a perceber a aproximação desse período festivo dentro do próprio contexto familiar, e esperam ansiosamente pelo momento de comer paçoca, doce de leite, doce de abóbora, milho, pipoca, além de tomar chocolate quente – e em tempos pré-pandemia, aguardavam também a possibilidade de participar de diferentes festas pela cidade.

Todo esse burburinho chega, também, à escola, não é mesmo? Então,iniciam-se as discussões sobre as festividades a serem incorporadas no calendário escolar. Na escola onde trabalho, mesmo agora em tempos de pandemia, as crianças já começam a postar fotos vestidas de ‘caipiras’, a falar sobre as festividades, a comentar sobre os doces típicos dessa época que já provaram, entre outros assuntos relacionados que vão surgindo ao longo das nossas conversas.

No entanto, sabemos que alguns dos tópicos relacionados às festas juninas são um pouco mais complexos de lidar no dia a dia escolar. Um deles diz respeito ao fato dessas comemorações terem um cunho religioso, o que acaba trazendo uma referência quase inevitável à Igreja Católica. Já uma segunda questão está relacionada ao fato de que o hábito de se ‘fantasiar de caipira’ carrega consigo uma referência, muitas vezes, jocosa e estereotipada, que não reflete o real significado por trás dessas vestimentas.

Observados esses dois pontos, fica o desafio: como a escola pode abordar essas questões sem reforçar estereótipos negativos, nem privilegiar uma determinada religião, no momento de se trabalhar com as festividades juninas? A chave para isso está em desenvolver um olhar para essas festas a partir da cultura popular em que os pequenos estão inseridos.

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A festa junina como um elemento cultural

No último ano, lembro-me de um texto que publiquei aqui em que eu ressaltava a importância de se abordar a cultura popular dentro das  instituições de Educação Infantil. Aquele texto foi bastante especial para mim, pois consegui explicar um pouco sobre como acontece essa abordagem dentro da instituição em que eu trabalho. Quero, agora, retomar esse mesmo debate para essa reflexão sobre festas juninas.

Assim como tantas outras celebrações, essas festividades do mês de junho se incorporaram à cultura popular brasileira. Logo, não importa a religião: é comum que todas as nossas crianças frequentem essas festas e participem das comemorações, sem a intenção de fazer celebrações que tenham a ver com determinada religiosidade que um dia originou a comemoração das festas juninas. Por isso, não acredito que, ao discutirmos as festas juninas dentro das instituições de Educação Infantil, estamos privilegiando uma religião. Pelo contrário! 

Explico: sabemos que o trabalho desenvolvido dentro da Educação Infantil deve ser inclusivo, pensando que atendemos crianças de diferentes religiões, com diferentes crenças, ou até mesmo algumas que não possuem nenhuma religião. Porém, ao discutirmos esse tipo de comemoração na escola, podemos abordar a origem histórica das festas juninas, reforçando os elementos culturais que fazem parte dessa prática, como as músicas e danças.

Além disso, ao apresentar essa perspectiva das origens e dos elementos culturais envolvidos nessas comemorações, podemos colocar no mesmo nível a questão da alimentação, por exemplo –  visto que também é cultural a ideia de se alimentar com determinados tipos de doces e bebidas nessa época do ano. Construímos, assim, uma abordagem mais completa e com menos referências a determinada religiosidade.

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Realizada essa primeira reflexão, precisamos avançar para outro ponto importante nesse trabalho com festas juninas: a ideia do ‘caipira’ caricaturado. De forma desrespeitosa, muitas vezes nesse período de festividades, o ‘caipira’ é visto como aquele que não tem dentes, que sempre está com as roupas rasgadas, que possui os cabelos despenteados e que não sabe conversar direito. 

Tudo isso nos remete àquele caipira que aparecia de maneira deturpada no clássico Jeca Tatu, personagem criado pelo autor Monteiro Lobato em seu livro Urupês (1918). Não quero, nesse texto, levantar uma crítica ao Jeca em si, visto que ele é um personagem que carrega consigo a historicidade do seu tempo. 

A questão é que eu, assim como tantos outros brasileiros, sou descendente do povo caipira. Meu pai e minha mãe trabalhavam na roça (ambos eram cortadores de cana), e pude presenciar as inúmeras vezes em que eles chegaram em casa cansados por terem trabalhado na lavoura, mal conseguindo ter tempo para cuidarem de si mesmos ou de mim. Hoje, eu sei que meu pai e minha mãe tiveram sua mão de obra explorada em condições de trabalho exaustivas, além de serem mal remunerados por um trabalho tão desgastante.

É por esse motivo, e por tantos outros, que não me agrada a ideia de deturpar a imagem do povo caipira, como, infelizmente, acontece por tantas vezes nas festas juninas pelo Brasil. Com isso, sabendo que a escola deve colaborar para o desenvolvimento do nosso raciocínio crítico sobre a realidade, e que esse tipo de aprendizado deve acontecer desde a Educação Infantil, acredito que esse momento das celebrações juninas seja o ideal para levantarmos essas discussões com as famílias e as crianças, para assim, todos conseguirem ler a realidade por outra ótica.

Porém, repare na palavra ‘festas’ que usamos nesse contexto do mês de junho. Pois é, estamos falando de celebrações! Ou seja, apesar de tudo o que descrevemos sobre o cotidiano de trabalho do caipira, isso não quer dizer que se trata de um povo que vivia triste. Na verdade, é o oposto disso: muito do que celebramos hoje nas festas juninas é resultado das comemorações que foram sendo  elaboradas por esse povo, junto das comidas típicas, músicas, e de tantos outros elementos que nos enchem de orgulho por serem típicos da cultura popular dos brasileiros. 

Por isso, queridos professores e professoras, não basta que a escola planeje festas juninas para as crianças! Para além desse planejamento, precisamos pensar na nossa função social de educar para um mundo diferente, no qual possamos enxergar as origens de preconceitos que podem, até hoje, estar perpassando as práticas sociais – e que, muitas vezes, não são visíveis sem esse momento de reflexão que parte de nós, educadores.

Ah! Antes de finalizar o texto, é importante frisar que, não esquecendo que estamos em tempos de pandemia e que muitos de nós seguem em trabalho remoto, temos o desafio de manter viva essa prática pedagógica envolvendo festas juninas, ainda que virtualmente. Façam pesquisas, entrevistas, rodas de conversa on-line, e tudo mais que puder agregar esses elementos juninos ao seu trabalho.

Minha recomendação final é: procurem levar todas essas discussões para suas turmas, e envolvam as famílias nesse processo. Tenho certeza que os adultos também têm muito a contribuir!

Um abraço carinhoso e até breve!

Evandro

Evandro Tortora é professor de Educação Infantil há 7 anos na Prefeitura Municipal de Campinas, licenciado em Pedagogia e Matemática e doutor em Educação para Ciência pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) de Bauru. Além da docência na Educação Infantil, tem experiência com pesquisas na área da Educação Infantil e Educação Matemática, bem como desenvolve ações de formação continuada para professoras e professores da Educação Infantil e do Ensino Fundamental.

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