Gestão escolar: a urgência do debate por uma Educação Antirracista
Refletir sobre o currículo e os objetivos pedagógicos da escola é uma das mais importantes funções de um diretor – só assim é possível fomentar um ensino antirracista que busque romper com esse problema histórico e estrutural
POR: José Marcos Couto Júnior, Ygor LioiGostaria de começar a coluna do mês relembrando a vida e a obra de Carolina Maria de Jesus (1914-1977). Como detalhou essa reportagem do site de NOVA ESCOLA, a mineira que havia estudado somente até a segunda série do Ensino Fundamental ganhou notoriedade nos anos 1960, com a publicação de seu primeiro livro, Quarto de Despejo: Diário de Uma Favelada, um relato (traduzido para 14 idiomas e publicado em mais de 40 países) do cotidiano de uma mãe solo que ganhava a vida como catadora de lixo.
Seria de imaginar que, com uma história e obra tão potentes, a autora teria lugar de destaque nos currículos educacionais básicos do país. No entanto, ao longo da minha trajetória de estudante (e acredito que na de muitos de vocês também) sequer ouvi a menção ao nome Carolina, ou ao Quarto de Despejo, contato que só veio a acontecer na graduação.
Falei da escritora, mas poderia falar também em Dandara, Antonieta de Barros, Luiz Gama e em tantas outras pessoas pretas que marcaram a História, mas que passaram ao largo da minha formação escolar básica, já que foram invisibilizados pelo programa de ensino vigente na época.
Por isso, diante de apagamentos de figuras como essas, é pertinente questionarmos: qual é o tipo de currículo que realmente caberia ou teria significância em nossas instituições de ensino? E que tipo de Educação queremos praticar em nossas escolas?
Precisamos falar sobre racismo estrutural
Esse Nova Escola Box busca fazer cumprir o artigo 26-A da LDB que foi alterado pelas lei 10.639 e 11.645, visibilizando aspectos raciais em geral deixados de lado na educação escolar, deixando evidente que esse assunto é para o ano todo - e não apenas em novembro.
Por um ensino antirracista
Particularmente, abri a coluna falando de Carolina Maria de Jesus porque observo que ela traz uma série de similaridades com o cotidiano dos meus estudantes.
Aprender que uma mulher preta e pobre foi reconhecida internacionalmente tem uma relevância absurda, especialmente quando os alunos que recebo em minha escola – como acontece em diversas áreas periféricas do país – são, majoritariamente, pretos e pobres.
Apagamentos de figuras como a autora, além de serem sinais claros do racismo estrutural que perpassa a sociedade brasileira, me fazem insistir no questionamento: “o que credencia um fato, um indivíduo, uma história, a figurar em um conteúdo programático?”. É por isso que a reflexão constante sobre os currículos oficiais é um processo trabalhoso e necessário para qualquer educador, mas acima de tudo é uma obrigação para gestores da Educação, especialmente aos que atuam em nível macro.
Nessa busca por um ensino antirracista, vale trazer uma reflexão de Paulo Freire (1921-1997) “se a Educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”. Desse modo, torna-se urgente que gestores escolares fomentem junto à sua equipe e também à comunidade, ações e planejamentos que tenham pautas antirracistas como base, a despeito dos entraves e limites que possam ser impostos pelos currículos.
Neste ponto, faço um mea-culpa. Embora na minha carreira, que começou como professor de História, eu tenha realizado vários projetos voltados para a visibilização da cultura negra (como o próprio Caravanas, premiado no Educador do Ano de 2018), confesso que em dois anos e meio como diretor da Escola Municipal Professora Ivone Nunes, ainda não consegui fomentar bases sólidas para que se consolide um ensino antirracista.
Por isso, convidei um colega gestor que atua na mesma rede que eu, para dar um depoimento sobre as diversas ações que já conseguiu realizar dentro dessa perspectiva.
Educação Antirracista na prática
Eu me chamo Ygor Lioi e sou professor da secretaria municipal de Educação do Rio de Janeiro (RJ) desde 2016, quando comecei a atuar na Escola Municipal Adalgisa Nery, em Santa Cruz, bairro que apresenta um dos 10 piores Índices de Desenvolvimento Humano (IDHs) da cidade.
Logo de cara, um grande incômodo: meus alunos, majoritariamente negros e negras, não conseguiam se reconhecer enquanto tais. Eu já havia trabalhado no Museu do Samba e no Departamento Cultural da Portela, locais onde sistematicamente se trabalha a valorização de nossa ancestralidade.
Então, era um caminho “natural” a minha busca por viabilizar, na escola, ações e projetos pautados nas Leis 10.639 e 11.645, que regulamentam o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena.
Assim, em sala de aula, pude executar diversas ações visando construir uma cultura antirracista, como as duas visitas ao Cais do Valongo, e o Projeto CinEscola, que teve seus três curta-metragens figurando em mais de setenta festivais no Brasil e no mundo.
No entanto, eu sentia que essas práticas encontravam um limite – faltava um projeto que considerasse toda a comunidade escolar.
Este fato, aliado a outras situações, me levou a aceitar um cargo na gestão da Escola Municipal Francisco Jobim, como diretor-adjunto, em 2020 – e pouco tempo depois, veio a pandemia. Ainda assim, apesar da convivência presencial ter sido tão breve com os alunos, percebi uma semelhança com o cenário da Adalgisa: a falta de valorização da própria identidade. A diferença é que já havia ao menos quatro professores, Maria Priscila, Márcia Rosário, Priscila Eiras e Rui Cruz, que trabalhavam o empoderamento dos alunos em suas atividades. Nesse contexto, surgia o Ygor gestor, e a pergunta: “como explorar estas potencialidades?”
Com isso, mesmo sob o contexto adverso da covid-19, surgiu o “Africanidades: um ensino antirracista”. Nossa meta? Criarmos interlocução e troca entre academia, cultura popular e a Educação de base, em um verdadeiro projeto de aquilombamento.
Planejávamos, assim, encampar ações antirracistas, propondo um projeto que se consolidasse não apenas como uma boa prática, mas sim como um caminho para a implementação pela base de uma Educação antirracista em toda a nossa rede, impulsionando políticas públicas. O foco era alcançar diversas comunidades escolares, e atingir todos os membros delas – docentes e discentes, pais, o corpo administrativo, limpeza, moradores do entorno, entre outros, estabelecendo verdadeiros territórios educativos.
O processo agregou instituições como o Laboratório de História Oral da Universidade Federal Fluminense, o Museu do Samba e o Departamento Cultural de Vila Isabel. De 10 a 19 de maio de 2021, organizamos um evento de forma híbrida, com a transmissão simultânea de 15 páginas do Facebook, que totalizavam cerca de 21 mil seguidores.
Os convidados trataram de temas como culinária, musicalidade, religiosidade, e cultura popular do povo preto.
Nesse contexto, criamos ainda o podcast do Atlântico Negro, realizamos ciclos de debates, propusemos visitas guiadas a lugares de memória que remetem ao legado de África no Brasil, criamos uma comenda e por fim, realizamos uma pintura do muro de nossa escola em homenagem à Antonieta de Barros.
Superando os limites do currículo
Com o Africanidades, a Escola Francisco Jobim do Ygor se tornou referência para o o ensino antirracista na nossa rede municipal do Rio de Janeiro (RJ).
Sabemos, é claro, que sem alterações significativas nos currículos (fazendo com que tragam em sua essência a luta antirracista), haverá limites para essas ações – mas cabe a nós gestores, em nossas comunidades escolares, sempre incentivar este debate.
Citando novamente Paulo Freire, sabemos que se a Educação não muda o mundo, ela transforma pessoas, que mudam o mundo. Dessa reflexão, podemos extrair um caminho para a mitigação do racismo, hoje estrutural. Assim, quando elaborarmos nossos planos de ação anuais, revisitarmos nossos PPPs, pensarmos em ações pedagógicas, tenhamos o ensino antirracista em nosso horizonte. As próximas gerações, com certeza, agradecerão por este trabalho.
Um abraço, e até a próxima.
José Couto Jr
José Couto Júnior é licenciado em História, tem Mestrado em Educação pela Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e é doutorando em Educação pela Universidade Federal Fluminense. Em 2018, foi eleito Educador do Ano no Prêmio Educador Nota 10. Servidor da Prefeitura do Rio de Janeiro há 10 anos, atua desde 2019 como diretor na Escola Municipal Professora Ivone Nunes Ferreira, no Rio de Janeiro.
Ygor Lioi
Pai do Samuel, homem preto, suburbano, mestrando em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e graduado pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Foi diretor cultural do GRES Rosa de Ouro e membro dos departamentos cultural e de cidadania da Portela. Atua na rede municipal de ensino do Rio de Janeiro (RJ) desde 2016, e no conselho deliberativo do Museu do Samba. Seus trabalhos já renderam moção na Câmara dos vereadores, e os prêmios Paulo Freire (pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro), e Professor Transformador (pela Bett Educar).
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