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Alessandra Gotti

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Vacinação infantil: a exigência da obrigatoriedade esbarra nos direitos à Educação e à saúde?

Entenda o que a Lei diz sobre a imunização obrigatória de crianças e adolescentes e como as redes de ensino se inserem nesta discussão

POR:
Alessandra Gotti
Crédito: Getty Images

No Brasil, e assim deveria ser em todo o mundo, os direitos à saúde e à Educação são universais. Quando falamos de crianças e adolescentes, no entanto, essas garantias não são diretas. Por ainda não terem 18 anos, essa população está sujeita à ação dos seus pais ou responsáveis legais. O que significa que uma criança de 7 anos, por mais que queira, não pode se matricular por conta própria em uma escola, tampouco ir sozinha ao posto de saúde para se vacinar.

Por isso, ao prevermos o acesso a esses direitos, estabelecemos deveres não apenas do Estado em prover a oferta e condições de acesso, mas também dos responsáveis em assegurar sua efetivação. Caso estes não atuem nesse sentido, a sociedade e os agentes públicos podem (e devem) agir.

Essa é uma explicação bem resumida do que significam, na prática, os artigos 196 (direito à saúde), 205 (direito à educação) e 227 (direitos da criança, adolescente e jovem) da Constituição Federal. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de assegurar essas garantias previstas na legislação.

Conheça como esses direitos aparecem na Constituição 

Art. 196: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” 

Art. 205: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.” 

Art. 227: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”


Com a inclusão das crianças e adolescentes no Plano Nacional de Imunização contra a covid-19 surgiu na sociedade o debate em torno da recusa de algumas famílias em efetivar a vacinação dessa faixa etária. A discussão tem ganhado espaço no campo da Educação uma vez que as escolas estão retornando integralmente às atividades presenciais e há diversas redes públicas e privadas que têm exigido a comprovação da vacinação das crianças com mais de 5 anos.

Diante desse cenário, o Instituto Articule fez um levantamento de decisões no campo jurídico que tratam dos limites do Estado na determinação da obrigatoriedade da vacinação e dos deveres individuais para com a saúde pública e desenvolvimento integral de cada criança e adolescente. Mas, antes de falar sobre esses pontos, trago algumas ponderações para apoiar a compreensão desse debate.

Primeiramente, é preciso reconhecer que a preocupação dos familiares é legítima diante da carga emocional imposta pelo cenário. Aliado a isso temos um excesso de notícias e novidades que correm sobre o tema das vacinas, além de um grande volume de desinformação e fake news. Temos vivido tempos de muita instabilidade e é natural que tenhamos maior apreensão e insegurança, principalmente em relação ao bem-estar dos nossos filhos.

Do ponto de vista científico, a vacinação ao redor do mundo tem mostrado dois pontos fundamentais: (1) que ela é segura e protege as crianças e adolescentes de um sofrimento muito mais grave, caso contraiam a doença; (2) que a imunização coletiva é fundamental para vencermos o vírus, portanto, vacinar-se e vacinar as crianças é um dever de cidadania.

Desvendando o método científico por trás das vacinas

A temática pode, inclusive, ser utilizada em sala de aula. Conheça materiais de referência e sugestões de atividade sobre como as vacinas são descobertas e produzidas e ajudar o professor a relacionar a busca pela imunização contra a covid-19 às bases do método científico

O que diz a Lei sobre vacinação infantil?

No levantamento feito pelo Instituto Articule sobre o repertório jurídico já construído nessa temática, destacam-se alguns documentos importantes para a construção da interpretação sobre a imunização infantil: a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) nessa temática.

O entendimento do STF no âmbito das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) 6586 e 6587 é de que a vacinação, embora não possa ser forçada (fisicamente), pode ser compulsória com a adoção de ações indiretas – como a exigência de comprovação da vacina para acesso a determinados estabelecimentos. Além disso, na ADI 6341 e na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 756 (ADPF 756), o Supremo também determinou a autonomia dos entes federativos para adotarem medidas complementares ou diferentes àquelas tomadas pela União em relação à pandemia da covid-19 desde que sejam mais protetivas ao direito à saúde.

Já no julgamento de um caso concreto envolvendo uma criança, cujo recurso extraordinário (Recurso Extraordinário 1.267.849/SP) chegou ao STF, a Corte determinou que a obrigatoriedade de imunização de crianças e adolescentes com as vacinas regularmente aprovadas pelos órgãos de vigilância sanitária é constitucional. A vacina, para ser obrigatória, precisam atender um dos seguintes requisitos: (1) ter sido incluída no Programa Nacional de Imunizações; ou (2) ter sua aplicação obrigatória determinada em lei; (3) ou ser determinada pela União, Estado, Distrito Federal ou Município com base em consenso médico-científico. Nessas condições, o STF entendeu que a vacinação obrigatória não viola a liberdade de consciência dos pais ou responsáveis, nem representa uma intervenção indevida do Estado no poder da família. Houve, portanto, defesa do posicionamento de que os direitos da criança devem preponderar sobre o poder familiar.

O Supremo proferiu, ainda, uma recente decisão na Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 754, movida pela Rede Sustentabilidade, na qual afirma que cabe ao Governo Federal, além de disponibilizar o imunizante, incentivar a vacinação em massa. Nesta decisão, o ministro do STF Ricardo Lewandowski, determinou, dentre outras coisas, que o governo federal se abstenha de utilizar o canal de denúncias “Disque 100” fora de suas finalidades institucionais, deixando de estimular, por meio de atos oficiais, o envio de queixas relacionadas à exigência regular de comprovante de vacinas contra a covid-19.

Na decisão também houve determinação para que o Ministério Público dos Estados e do Distrito Federal adotassem medidas necessárias para assegurar a vacinação infantil contra a covid-19 para efetivar o direito à saúde e à integridade física das crianças e dos adolescentes.

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As redes de ensino podem exigir comprovante de vacinação?

Mais recentemente, o Partido Verde provocou novamente o STF neste tema com a ADPF 947. Dentre as demandas, os autores pedem ao Supremo que afirme expressamente que o Distrito Federal, os Estados e os Municípios podem e devem impor a vacinação obrigatória ao público infantil, inclusive nos ambientes escolares, e exigir o passaporte vacinal para os alunos regularmente matriculados. O relator da ação também será o ministro Ricardo Lewandowski.

Vale destacar que, além do direito à saúde, o ECA define como direito igualmente básico o acesso à Educação, “visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho”, assegurando às crianças e adolescentes igualdade de condições para acesso e permanência na escola.

Em resumo, as escolas possuem legitimidade para exigir o comprovante de vacinação, na qualidade de integrantes da rede de proteção da criança e adolescente, como um importante mecanismo de proteção à saúde coletiva e individual de cada estudante. Por outro lado, é primordial que tal medida não esbarre no direito à Educação.

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Uma nota técnica emitida pela Comissão Permanente de Educação (COPEDUC), que congrega membros dos Ministérios Públicos de todos os Estados bem como da União, ressaltou que não apresentar a carteira de vacinação completa não pode significar a negativa da matrícula ou a proibição de frequência à escola – devido ao caráter fundamental do direito à Educação. Da mesma forma, responsáveis não imunizados não podem ser impedidos de fazer a matrícula de seus filhos.     

A orientação dessa nota técnica tem sido que de as escolas solicitem a apresentação da carteira de vacinação das crianças e adolescentes e, ao lidar      com a recusa dos pais, encaminhem o assunto ao Conselho Tutelar, para que este entre em contato com a família e com ela dialogue, como previsto no ECA. Essa conduta tem sido adotada por várias redes de ensino no país.

O ideal é que houvesse um esforço coordenado e alinhado de mobilização e conscientização da população sobre a importância da imunização e os benefícios da vacina. É preciso dialogar para encontrar soluções que deem, de um lado, segurança às famílias e, de outro, coloquem a infância e a adolescência como prioridade. Crianças precisam da escola. O País precisa delas nas instituições de ensino.

Em momentos como este cabe às autoridades do Executivo, Legislativo, órgãos do Sistema de Justiça, como Ministério Público e o Conselho Tutelar, elaborar e implementar soluções articuladas capazes de resguardar os direitos à saúde e à Educação, tendo como foco ações a conscientização das famílias e a garantia dos direitos das crianças e adolescentes.

Mais do que falar em obrigatoriedade ou não, em restrições e penalidades, é importante jogar luzes sobre os benefícios da imunização. O caminho da informação e do diálogo é fundamental e, certamente, as redes de ensino e suas escolas, podem contribuir nesta missão.
 

Alessandra Gotti é fundadora e presidente executiva do Instituto Articule. Doutora em Direito Constitucional pela PUC/SP. Foi Consultora da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e do Conselho Nacional de Educação (CNE). 

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