Como trabalhar a recomposição de aprendizagens nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental?
Entenda como o acolhimento, o diagnóstico e o planejamento podem ajudar a enfrentar os desafios educacionais agravados pela pandemia
POR: Nairim BernardoA sessão fotográfica foi realizada em Bertioga (SP) após os decretos estadual e municipal de março de 2022, que determinaram o fim do uso obrigatório de máscara
Reportagem atualizada em 06/06/2022
Após dois anos de ensino remoto e híbrido, devido à pandemia, as escolas iniciaram o ano letivo de 2022 com a esperança de que ele aconteça totalmente de forma presencial. Mesmo com as restrições e os cuidados sanitários que ainda precisam ser adotados, poder trabalhar diretamente com os alunos representa um alívio para os professores, principalmente para aqueles que atuam com comunidades nas quais o acesso à internet é precário e o contato online, muito difícil.
Entretanto, a possibilidade do reencontro presencial não significa a retomada da educação escolar nos mesmos moldes do período pré-pandêmico. Entre o início de 2020 e o de 2022, a crise da Covid-19 impactou a vida, a aprendizagem e o percurso escolar dos estudantes, o que não pode ser descartado.
No que diz respeito aos alunos dos Anos Iniciais, é preciso considerar também que eles viveram essa fase enquanto passavam por outra importante etapa de mudança e adaptação, a transição da Educação Infantil para o Ensino Fundamental.
“Muitos estudantes não tiveram acesso real ao ensino remoto. Crianças que ingressaram no 1º ano em 2020 praticamente não entraram na escola e estão começando a vida escolar já no 3º ano, em 2022”, comenta Patrícia Barreto, assessora da Educativa Consultoria Pedagógica e consultora da NOVA ESCOLA. Segundo ela, agora, a pergunta que deve nortear o trabalho docente é: como as escolas vão se organizar para dar conta das aprendizagens que já deveriam ter sido desenvolvidas?
Nesse contexto, um termo vem ganhando força e importância: a recomposição de aprendizagens. O conceito traz a ideia de que a aprendizagem não ocorreu de forma adequada – no caso, em função da pandemia – e, por isso, deve ser reorganizada com foco no desenvolvimento dos alunos, indo além da mera “recuperação de aprendizagem”. Para isso, são necessárias diferentes estratégias, como acolhimento aos estudantes, avaliação diagnóstica, flexibilização curricular, tutoria, acompanhamento pedagógico e formação dos professores.
A consultora alerta, no entanto, que em muitos casos não existe aprendizagem para recompor, mas sim para reiniciar. “Os alunos dos Anos Iniciais passaram dois anos acostumados a estudar em casa, e agora é necessário desenvolver até mesmo a forma de aprender. A escola precisa ajudar as crianças a construírem conhecimento por meio de orientação e mediação didática.”
Acolhimento socioemocional e diagnóstico
Para Patrícia Rossi Torralba, consultora pedagógica e professora do Instituto Singularidades, o primeiro passo para a recomposição das aprendizagens é o acolhimento que, quando bem feito, reflete positivamente no processo de ensino e aprendizagem. “As crianças precisam de um tempo para desenvolver um vínculo e conseguir mostrar o que não sabem para o professor”, explica a especialista. “Para aprender, eu preciso primeiro confiar no grupo, saber que o professor vai me ouvir e que ninguém vai me ‘zoar’. Às vezes, o educador fica tão apreensivo com o que precisa ensinar que pula essa etapa.”
Além dos alunos, também é muito importante que a escola acolha as famílias. No caso dos Aos Iniciais, é preciso considerar que os estudantes dependem bastante dos pais para organizar os estudos, e alguns responsáveis ainda têm muitas dúvidas e receios por não conhecerem a rotina escolar.
Na EMEB Professor André Ferreira, em São Bernardo do Campo (SP), a diretora Ana Paula Villas Boas Caetano diz que o acolhimento é uma das premissas mais importantes do planejamento pedagógico. “A palavra de ordem é ‘ninguém segue carreira solo’, devemos caminhar sempre juntos. Precisamos escutar a necessidade do outro professor, do nosso aluno e da família para podermos criar coletivamente. Somos cinco pessoas na gestão, então, os pais não têm de agendar para falar conosco. Se ele chega na escola é porque está com alguma angústia, e será atendido.”
Ana Paula relata que o 1º ano teve atenção especial por receber crianças vindas de uma Educação Infantil que aconteceu remotamente. As famílias foram divididas em dois grupos para que os professores realizassem uma escuta e um acolhimento mais individualizado. Durante os horários de formação dos professores, os responsáveis também podem conversar com eles. A escola conta ainda com a ajuda de uma ONG parceira no atendimento psicológico dos alunos em situação de maior vulnerabilidade.
Segundo Patrícia Barreto, é nesse momento de acolhimento que o professor deve começar a fazer avaliações diagnósticas para planejar o ensino e a aprendizagem durante o ano letivo. Elas não devem se restringir a uma avaliação escrita nem exclusivamente aos aspectos cognitivos.
“É preciso fazer diagnósticos ou sondagens e ajustar o planejamento de acordo com as necessidades de cada criança. Antes da pandemia já era essa a orientação, mas o que muda agora é a flexibilização necessária do planejamento devido às perdas ou ausências causadas pela pandemia. Como hoje falamos em currículo por competência, focado nas necessidades dos alunos, essa flexibilização fica mais fácil do que seria com um currículo conteudista, que requer pré-requisitos.”
Flexibilização e continuum curricular
O estudo “Cenário da Exclusão Escolar no Brasil – Um Alerta sobre os Impactos da Pandemia da Covid-19 na Educação”, do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), em parceria com o Cenpec Educação, apontou que, em novembro de 2020, mais de 5 milhões de crianças não tinham acesso à Educação no Brasil. A pesquisa indicou que as mais afetadas foram as de 6 a 10 anos de idade, faixa que compreende os Anos Iniciais do Ensino Fundamental. E, mesmo considerando os estudantes que tiveram acesso pleno às atividades remotas, as pesquisas mostram que as pessoas aprendem de um modo específico quando estão em pares. Ou seja, é inegável que muitas habilidades idealmente previstas não foram desenvolvidas ao longo de 2020 e 2021, o que afeta a todos.
Nesse sentido, um aspecto importante da recomposição de aprendizagens é a possibilidade do continuum curricular, que permite que as escolas ofereçam, em um único ano, as habilidades previstas para serem desenvolvidas em dois anos, além de evitar a reprovação em massa. O Conselho Nacional de Educação (CNE) publicou uma resolução que possibilita o continuum curricular até o ano de 2022. Na prática, isso significa que um professor do 2º ano, por exemplo, também pode e deve trabalhar com os alunos as habilidades previstas para o 1º ano.
Os educadores devem verificar se a Secretaria de seu estado ou município elencou um currículo prioritário para cada ano escolar. E, para que isso aconteça de modo coerente com as necessidades dos alunos, é essencial considerar as características específicas da escola e das turmas.
Avaliação para um bom planejamento
Em Conceição do Coité (BA), a cerca de 220 quilômetros de Salvador, Erika Souza Silva Vilanova, chefe do setor pedagógico do município, conta que a maior preocupação da Secretaria de Educação para o planejamento de 2022 com vistas à recomposição de aprendizagens foi elencar as habilidades prioritárias. “Fizemos um estudo de quais seriam as prioridades em cada ano e, de modo geral, como isso poderia ser feito em toda a rede”, destaca. “Conforme resoluções estaduais e do CNE, percebemos a importância do diagnóstico. Em cima desse levantamento, os professores farão um planejamento para a realidade de suas turmas. As demandas de uma escola não são iguais às de outra, e o professor tem de desenvolver, com a orientação de seu gestor, o próprio planejamento.”
Assim como a Secretaria precisa fazer o diagnóstico da rede para propor ações, materiais e infraestrutura básica para todas as unidades de ensino, professores e gestores também têm de realizar avaliações diagnósticas para verificar quais habilidades estão mais defasadas e devem ser priorizadas. A avaliação processual ou formativa – que acompanha a aprendizagem dos alunos por meio de diferentes instrumentos – também é muito importante, pois mostra se o planejamento está dando certo e em que medida. Caso seja preciso, é possível replanejar e mudar a rota rumo à superação dos desafios.
Cabe ao gestor orientar essas avaliações, ajudar os professores a interpretarem seus resultados e compilar dados para analisar a situação geral por turma, ano e etapa de ensino. Poliana Carneiro das Neves, coordenadora pedagógica dos Anos Iniciais na Escola Nossa Senhora da Conceição, em Conceição do Coité (BA), diz que, além do planejamento geral, também há um que acontece semanalmente na escola. “Não adianta só fazer um planejamento a longo prazo, pois é um constante ir e vir. Planejamos e vemos o que foi alcançado, onde estamos e para onde vamos.”
Demandas locais e outras questões
Poliana conta que a rede do município baiano tem uma preocupação específica: a evasão escolar associada ao trabalho infantil. Segundo ela, os alunos dos Anos Iniciais são menos afetados por essa situação, mas os educadores permanecem atentos a faltas constantes e sem justificativa para sempre que necessário entrar em contato com a família e com redes de proteção à criança, como o Conselho Tutelar.
“Eu também penso: o que tem de atrativo para os alunos permanecerem na escola? Meu maior interesse é que o aluno avance não só no letramento e na Matemática, mas emocionalmente também”, comenta. “Aqui no município temos uma equipe multidisciplinar para atender a crianças e adolescentes desinteressados no retorno escolar ou com questões de saúde mental. Essa equipe também dá suporte para que saibamos ouvir alunos e professores.”
Segundo Patrícia Barreto, outro cuidado dos coordenadores em relação à recomposição de aprendizagens deve ser o de observar se os professores estão fazendo escolhas pedagógicas adequadas. “Existe um negacionismo científico na Educação também. Educadores podem passar por cima de coisas já discutidas e cair na mão de oportunistas. Já li coisas como ‘saiba como alfabetizar em 30 dias’. Existe ainda uma prática negacionista acerca dos estudos e pesquisas na área que se perpetua na escola.”
Conteúdos que podem ajudar no planejamento da recomposição de aprendizagens
Confira dois materiais que podem ser úteis nesse processo
Mapas de Foco da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (Instituto Reúna): Disponíveis em PDF e Excel, esses documentos apresentam uma seleção de habilidades focais para cada ano do Ensino Fundamental. O objetivo é ajudar na escolha de conteúdos para flexibilização curricular. No link, há também uma plataforma que oferece atividades diagnósticas, um curso sobre combate à defasagem e um guia para equipes técnicas das Secretarias e gestores escolares com dicas sobre o continuum curricular.
Tabelas de habilidades prioritárias (NOVA ESCOLA): Em 2020, com a ajuda de especialistas, a NOVA ESCOLA organizou uma série de tabelas com possibilidades de priorização de habilidades da BNCC para serem trabalhadas no ensino remoto e no presencial. Trata-se de sugestões que devem ser adaptadas à realidade do planejamento de cada escola e turma de alunos. As tabelas trazem uma sequência de planos de aula da NOVA ESCOLA para cada habilidade.
• Tabela com habilidades da BNCC e planos de aula do 3º ao 5º ano
• Habilidades prioritárias de Matemática - 1º ao 3º ano
• Habilidades prioritárias de Língua Portuguesa - 1º e 2º anos
• E-book: O que ensinar em 2021 (pode ser adaptado para 2022)
Alfabetização como prioridade
Desde a interrupção das aulas presenciais, uma das principais preocupações e dificuldades de pais e professores foi a alfabetização das crianças. Afinal, como desenvolver habilidades tão essenciais como leitura, escrita e interpretação a distância? Apesar dos esforços e casos de sucesso, infelizmente o receio inicial se transformou em um fato: muitas crianças não foram alfabetizadas.
Na Escola Municipal Genésio Sebastião dos Santos, em Bertioga (SP), as avaliações diagnósticas revelaram que as turmas do 3º ano são as que apresentam maior defasagem. Agora, cada uma das três professoras do 3º ano, que atendem aos turnos matutino e vespertino, vai tratar de um conteúdo específico – base alfabética, alfabetização matemática e competência leitora – em textos de diferentes gêneros, incluindo os expositivos, que abordam assuntos dos componentes de História, Geografia e Ciências. “Elas se revezam em cada turma e, assim, podem se dedicar mais ao planejamento específico do seu conteúdo”, diz Renata Graziela de Chechi Pereira Lanza, professora-coordenadora da instituição.
Durante uma ou duas vezes por semana, as turmas do 3º ano também são reagrupadas de acordo com as suas necessidades imediatas. Nesses momentos, têm aulas com a professora do conteúdo específico que melhor atende a essa demanda. “Participar da recuperação não significa que ficarão lá o ano todo, pois haverá uma rotatividade conforme as necessidades. As reorganizações acontecem a partir de avaliações diagnósticas frequentes, a cada semana ou quinzena”, explica Renata Graziela. Ainda em 2022, a escola quer instituir turmas de alfabetização, aos sábados, para os alunos do 3º ano.
Parcerias para avançar
Para manter a relação de proximidade entre escola, famílias e estudantes, uma estratégia de organização foi, na medida do possível, manter as turmas com os mesmos professores titulares do ano anterior. Como a relação entre escola e família se estreitou muito em 2020 e 2021, mesmo que de forma online, Renata acredita que essa atitude pode ajudar na superação de novos desafios.
Para que a recomposição das aprendizagens das crianças ocorra, a professora-coordenadora diz contar com o apoio da Secretaria de Educação. “Precisamos ter uma base consistente e caminhos a serem seguidos enquanto rede, e a Secretaria proporciona isso por meio da formação continuada, com cursos, palestras e orientação.” Um dos reflexos desse trabalho conjunto está no fato das ações citadas por Renata também estarem sendo desenvolvidas, com adaptações, em outras escolas da rede.
Em relação ao apoio ao docente, ela comenta que as reuniões pedagógicas gerais estão acontecendo online e já abordaram o Projeto Político-Pedagógico (PPP) e as avaliações diagnósticas. Fora desse espaço, a coordenação continua apoiando os docentes. “Agora eu estou vendo a sondagem individualmente, junto com cada professor, para orientá-los sobre atividades que ajudem os alunos a avançar. Depois, vamos fazer reuniões por turma para, em conjunto, encontrarmos mais formas de trazer esses alunos para junto de nós. Não existe melhor cenário para o estudante se desenvolver do que a parceria entre todos.”
Para além do professor
A especialista Patrícia Barreto aponta o papel das Secretarias de Educação e dos gestores na organização da recomposição de aprendizagens
Propostas para as escolas: “A função das Secretarias de Educação é central. Elas são o comando das escolas e gerenciam uma rede única, apesar de heterogênea. As ações não precisam ser padronizadas, mas o que é sugerido tem de ser bom para todo mundo e dar conta de ajudar a todos. É papel da Secretaria fazer o diagnóstico da sua realidade e trazer propostas para que as escolas tenham condições de fazer um bom trabalho”, diz Patrícia Barreto.
Organização de momentos formativos: “A carga horária dos professores é muito apertada para que priorizem a formação. São os gestores pedagógicos da rede que vão conquistar tempo e espaço remunerados para pensarem coletivamente, em situações formativas. O planejamento tem de ser coletivo. A gestão pedagógica deve definir o conteúdo das discussões a partir de avaliações diagnósticas das demandas dos professores”, orienta a consultora.
Consultoria pedagógica: Patrícia Barreto, professora, formadora e assessora pedagógica na Educativa Consultoria Pedagógica.
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