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Como Sobral (CE), cidade destaque em alfabetização, está organizando o trabalho no pós-pandemia

Conhecido pela qualidade de sua educação, o município desenvolve uma série de ações que podem inspirar escolas de outras regiões na gestão do processo de recomposição de aprendizagens

POR:
Nairim Bernardo
O atendimento individual dos alunos é uma das iniciativas da Escola Mocinha Rodrigues, em Sobral (CE), para a recomposição de aprendizagens. Crédito:  Gustavo Furtado

Apoio pedagógico, atendimento individualizado para alunos com mais dificuldade, formação continuada, avaliações constantes, acompanhamento de psicólogos. Essas são algumas das estratégias que a rede do município cearense de Sobral (CE) tem adotado neste momento atípico e de muitos desafios, como o da retomada das aulas presenciais após o biênio pandêmico, que exige a recomposição das aprendizagens. Mas por que pode ser interessante olhar para as iniciativas desta rede em particular?  

Localizado a 232 quilômetros da capital Fortaleza, Sobral é referência nas avaliações externas que medem a qualidade da Educação no Brasil. Esse reconhecimento nacional pode ser facilmente compreendido ao observar os resultados do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), calculado a partir dos dados de aprovação escolar, obtidos do Censo Escolar, e das médias de desempenho no Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb). Entre 2005 e 2017, a nota de Sobral no Ideb dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental passou de 4,9 para 9,1 – a média nacional é 5,6.

Outros indicadores também chamam a atenção. Em 2000, 49% dos alunos da rede aprendiam a ler na idade certa, proporção que chegou a 92% em 2004. Mais recentemente, em 2021, pela quarta vez consecutiva, Sobral conquistou o 1º lugar no Índice de Oportunidades da Educação Brasileira (Ioeb), com nota 6,7, superior à média nacional (5). O Ioeb é um índice bienal que compara como cada rede do país está contribuindo para o sucesso educacional de seus alunos. 

Por trás desses números, há uma série de iniciativas que o município realiza. Sobral é destaque na formação continuada de professores, no acompanhamento constante das aprendizagens e na atenção voltada à saúde emocional dos alunos e profissionais da Educação. Além disso, faz parte da cultura do município o compartilhamento interno (entre as escolas da cidade) e externo (para outras redes) de boas práticas pedagógicas e políticas públicas.

O retorno ao modelo presencial e o trabalho com agrupamentos produtivos

Assim como outras redes do país, Sobral enfrentou uma série de dificuldades para adaptar o ensino para o modelo remoto e aplicou soluções parecidas com as de muitos lugares. Nara Elen Alves Laurindo, coordenadora pedagógica na Escola José da Matta e Silva, localizada no município, lembra que no início a ideia não era oferecer aulas online, mas manter o contato das crianças com a escola.

Com o passar do tempo, foi criado um cronograma para enviar atividades uma ou duas vezes por semana pelo WhatsApp, e os encontros virtuais começaram. Como alguns estudantes não davam retorno online, a escola passou a enviar atividades impressas, que eram entregues junto com os kits de alimentação. “Nos esforçamos muito, e a maioria dos alunos e familiares dava devolutivas, mas foi impossível passar por esse período sem danos.”

Na volta às aulas presenciais, uma das estratégias de Sobral foi aumentar o tempo de permanência dos alunos na escola. A coordenadora Nara dá um exemplo de como está funcionando a recomposição de aprendizagens nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental em sua escola e em outras da cidade. De acordo com ela, como muitos alunos chegaram ao 5º ano com fragilidades na leitura, há momentos das aulas focados no desenvolvimento da fluência leitora. Nessas ocasiões, a turma é dividida: na sala regular, a professora trabalha habilidades mais avançadas, e, na sala de apoio pedagógico, outro professor consolida habilidades com pequenos grupos de crianças que estão com aproveitamento entre 60% e 70%. Já quem está com mais dificuldade recebe atendimento individual e personalizado, também com um professor de apoio.

Mesmo as escolas que não são de tempo integral adotaram programas que oferecem encontros no contraturno, principalmente para alunos que não contam com o acompanhamento dos pais em casa. A contratação de professores de apoio viabiliza os agrupamentos produtivos, ou seja, a organização dos estudantes em grupos com níveis próximos de aprendizagem, para que suas necessidades sejam focalizadas. Esses alunos não precisam estar exatamente no mesmo nível, pois as diferenças favorecem que aprendam uns com os outros.

“Para fazer a recomposição, o docente precisa de alternativas muito eficazes. Ele tem de saber, por exemplo, quem são os alunos que conseguem ler as letras, os que leem palavras e os que já leem textos. Na hora de fazer essa divisão, um professor de apoio ajuda a tornar o trabalho mais dinâmico e eficaz”, afirma Carolina Campos, diretora executiva da consultoria Vozes da Educação, que coordenou os levantamentos internacionais Recomposição das aprendizagens em contextos de crise e Boas práticas de saúde mental nas escolas

Segundo Patrícia Barreto, professora, formadora e assessora pedagógica na Educativa Consultoria Pedagógica, é de extrema importância que os professores identifiquem o que os alunos já sabem sobre a linguagem escrita. “Esse conhecimento não se baseia somente em saber nomear as letras ou saber contar de um a 100, mas principalmente na compreensão do que letras e números representam. Por isso, a formação de professores também deve contemplar esses conceitos”, salienta.

Uma das medidas adotadas pela rede, na volta das aulas presenciais, foi aumentar o tempo de permanência dos estudantes nas escolas. Crédito:  Gustavo Furtado

A importância dos professores de apoio

Barbara Panseri, coordenadora de projetos da Fundação Lemann, diz que, apesar das particularidades de cada rede, a contratação de profissionais é um desafio comum. “As escolas vêm enfrentando uma grande dificuldade em relação a isso e à contratação de outros profissionais, como os auxiliares para alunos com deficiência e os de reforço para a limpeza.”

Para Herbert Lima, secretário de Educação de Sobral, o município consegue contratar e enviar professores de apoio para as escolas “porque há planejamento, um cuidadoso processo de contratação e boa gestão dos recursos”. “Isso não é uma novidade, mas, com a pandemia, houve a necessidade de fazer um reforço e ampliar a oferta de atividades no contraturno”, explica. De acordo com ele, o pagamento e a contratação de professores efetivos e temporários são feitos exclusivamente com o percentual estabelecido pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb).

Avaliações internas e externas

Outro ponto crucial para a recomposição de aprendizagens e o continuum curricular – a possibilidade de as escolas oferecerem em um único ano as habilidades previstas para serem desenvolvidas em dois anos – é a realização de avaliações para orientar o planejamento pedagógico. Esses diagnósticos devem ser feitos sempre, mas ganharam ainda mais importância no contexto do retorno ao modelo presencial após a fase pandêmica. Passado o período da aplicação das avaliações iniciais, é preciso continuar investindo nas avaliações formativas durante todo o ano, e não apenas em provas no final dos bimestres ou trimestres.

Além dessas avaliações diagnósticas e formativas, é muito importante aplicar avaliações censitárias e amostrais de fluência do nível de aprendizagem. “Isso deve ser feito em toda a rede para verificar a aprendizagem dos alunos e identificar as dificuldades com mais agilidade. Pode ser uma avaliação externa, geralmente feita pelo Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação (CAEd), mas isso tem um custo. Então, ela pode ser desenvolvida pelos professores e profissionais de Educação da Secretaria”, sugere Bárbara.

O cronograma avaliativo de Sobral é extenso e contempla uma série de avaliações internas e externas. Semanal ou quinzenalmente, os professores e gestores produzem e aplicam testes para acompanhar a aprendizagem das habilidades desenvolvidas no período. Mensalmente, a Secretaria de Educação disponibiliza uma avaliação para todas as escolas, cujos resultados são discutidos em reuniões com a equipe técnica da Secretaria e os diretores escolares. Depois da pandemia, um olhar ainda mais específico foi lançado para os resultados individuais, não apenas por turma.

Duas grandes avaliações aplicadas pela Casa da Avaliação Externa, setor da Secretaria de Educação de Sobral, acontecem no meio e no final do ano e contemplam desde crianças do Infantil 5 até alunos dos Anos Finais do Ensino Fundamental. Essas avaliações funcionam como um grande diagnóstico da rede, permitem a comparação entre escolas e oferecem gratificações financeiras para os professores que se destacam. As escolas também participam das provas do Sistema Permanente de Avaliação da Educação Básica do Ceará (Spaece), do Saeb e do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa).  

Acompanhamento constante para avançar na aprendizagem

Fabiana Torquato Braga, diretora da Escola Mocinha Rodrigues, também em Sobral, conta que, todos os meses, a equipe gestora e os professores estudam os resultados das avaliações e discutem estratégias. “O pós-pandemia nos trouxe essa exigência de estabelecer metas precisas e acompanhar o desenvolvimento do trabalho para que elas sejam atingidas. Delego tarefas, mas também acompanho. Observo o trabalho dos professores não para fiscalizar, mas para poder ajudar e orientar.”

Assim como em outras cidades do país, uma dificuldade observada foi em relação à leitura. Luzinete Chagas Nascimento, professora do 4º ano na Mocinha Rodrigues, comenta que em Matemática os alunos se saem melhor na resolução de cálculos, mas, nas situações-problemas que exigem interpretação, fica evidente a dificuldade na leitura e na compreensão de texto. Portanto, neste momento, as escolas estão focadas em projetos de incentivo à leitura de diferentes gêneros textuais no ambiente escolar e também em casa, por meio do estímulo do grupo de pais, que continua ativo no WhatsApp. 

“Percebemos perdas na leitura e no vocabulário. Os resultados das avaliações não são aqueles que estávamos acostumados a ter. Há mais oscilação, mas estamos trabalhando para diminuir o impacto desse tempo de parada”, ressalta Luzinete.

O mesmo acontece na Escola José da Matta e Silva. Um levantamento realizado na instituição, no entanto, já mostra os bons resultados do trabalho realizado em 2022. Em fevereiro, 80% das crianças do 5º ano não eram fluentes na leitura, porcentagem que caiu para 36% em meados de abril.

Na Escola Mocinha Rodrigues, os educadores costumam se reunir para analisar os resultados das avaliações dos alunos e discutir estratégias para avançar nas aprendizagens. Crédito:  Gustavo Furtado

Valorização do trabalho com as competências socioemocionais

A Lei nº 13.935/19 dispõe sobre a prestação de serviços de psicologia e de serviço social nas redes públicas de Educação Básica. Ela determina que as redes contem com esses serviços para atender as necessidades e prioridades definidas pelas políticas de Educação, por meio de equipes multiprofissionais. Entretanto, muitas redes ainda têm dificuldade para efetuar essas contratações, principalmente em número que atenda a demanda.

Herbert Lima, secretário de Educação de Sobral, diz que foi realizado um concurso público para psicólogos efetivos, e agora há um profissional em cada escola de Ensino Fundamental, tanto nas urbanas quanto nas rurais. “Eles fazem parte de uma política de implementação das competências socioemocionais para alunos, professores e funcionários. Neste momento do pós-pandemia, eles estão administrando uma série de instrumentos e dinâmicas para melhorar o acolhimento e o convívio.” 

Para Carolina Campos, da Vozes da Educação, para ser um espaço de aprendizagem, a escola deve ser também um espaço de cura. “Estamos saindo de um evento altamente traumático. Perdemos mais de 600 mil pessoas e temos crianças e adolescentes que perderam seus cuidadores para a Covid. Logo na sequência, tivemos eventos muito sérios no Brasil, como inundações no sul da Bahia, em Minas, em Petrópolis [RJ] e em outras regiões. Foi muito tempo longe da escola, mas não estamos voltando de férias com todo mundo relaxado e descansado”, observa. “Evidências mostram que, em eventos pós-traumáticos, a escola é responsável pela regulação da comunidade, porque ela estabelece uma rotina. Os educadores precisam trabalhar o ambiente escolar como descompressor, promovendo o reconhecimento afetivo do espaço e das pessoas.”

Além do acompanhamento constante dos psicólogos, os professores também precisam desenvolver as competências socioemocionais atreladas ao currículo. Em Sobral, esse trabalho é chamado de duplo foco. “Nas aulas de Português, por exemplo, trabalhamos com as habilidades de leitura e interpretação de texto e com os temas transversais. Na minha turma, lemos um texto sobre como distinguir fatos e opiniões e, a partir dele, conversamos sobre bullying e fizemos algumas dinâmicas”, conta Andreia Gomes Santana, professora polivalente do 5º ano na José da Matta e Silva. Ela também propõe aulas que incentivam a participação dos alunos. Segundo Andreia, apesar de não haver evasão, a frequência está oscilando mais do que no período anterior à pandemia por uma dificuldade de readaptação das famílias à rotina.  

Formação de professores

A formação continuada de educadores é outro pilar da experiência exitosa de Sobral que pode ajudar na recomposição das aprendizagens. Lá, os professores e gestores contam com a Escola de Formação Permanente do Magistério e Gestão Educacional (Esfapege), que oferece programas de capacitação profissional desde 2005. Nos encontros, que acontecem uma vez por mês – e que foram mantidos durante a pandemia –, professores da Educação Infantil e do Ensino Fundamental recebem formações sobre a rotina em sala de aula, tecnologias inovadoras, avaliação e competências socioemocionais, entre outros temas.

Além disso, durante as formações, há muitos momentos de troca entre as escolas. “Mesmo sendo uma rede única, cada gestor tem sua estratégia de trabalho, que é compartilhada com os colegas nas reuniões gerais, o que abre um leque de possibilidades para pensarmos em soluções”, destaca Fabiana, diretora da Mocinha Rodrigues. “Aí pensei em fazer isso na minha escola também. Nos encontros que temos toda semana com os professores de cada ano, eles apresentam experiências que fizeram em suas aulas, o que tem trazido um resultado muito positivo para todos.”

Os resultados das avaliações dos estudantes também são utilizados nos momentos formativos, ocasião em que os professores analisam o que precisam aprimorar em sua prática para que ela reflita positivamente na aprendizagem dos alunos. Durante as reuniões com a equipe, os gestores são orientados a conversar sobre as metas individuais, desafios do ano, dificuldades encontradas, resultados e comparativos das avaliações.

“O que eu conto sobre nosso trabalho na escola é o mesmo que uma professora, uma coordenadora, o secretário e os pais de alunos vão falar. Trabalhamos de mãos dadas. Nos apoiamos como rede, e o acompanhamento da Secretaria faz toda a diferença”, afirma Fabiana sobre a importância do trabalho coletivo para que os resultados não sejam atribuídos exclusivamente a uma escola ou à atuação de um professor. “É importante o envolvimento de todos para o crescimento conjunto.” 

Consultoria pedagógica: Patrícia Barreto, professora, formadora e assessora pedagógica na Educativa Consultoria Pedagógica.

Esta reportagem faz parte do projeto Recomposição de Aprendizagens nos Anos Iniciais do Fundamental. Confira os demais conteúdos realizados em parceria com a Fundação Lemann e o Instituto CSHG.

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