Língua Portuguesa: a importância de ser um professor leitor
Para formar alunos leitores, é preciso que os educadores também mergulhem nesse universo – e não faltam boas opções para impulsionar nossa prática pedagógica
POR: Ana Cláudia SantosUma ideia geral bastante comum é a crença de que o hábito de ler e, por consequência, inserir crianças e adolescentes em universos encantadores, fantásticos ou simplesmente em contextos com personagens fascinantes e complexas surge em casa. Na verdade, o que os estudos nos mostram é que a escola é a principal responsável por apresentar o sujeito ao universo das palavras e da leitura literária e por mediar a criticidade na compreensão dos textos.
Claro que essa não é uma prática unicamente desse espaço, mas a escola é o primeiro lugar que apresenta aos leitores as exigências próprias da literatura e suas muitas possibilidades – dentre elas, a subjetividade, não de forma rasa, como gostar ou não gostar, e sim em um sentido amplo, com provocação e contemplação.
Citando nosso patrono Paulo Freire, “A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele”. Ou seja, o ato de ler extrapola a compreensão das palavras – quando aprendemos por meio da leitura, compreendemos melhor o mundo que nos rodeia. Lendo, é possível estabelecer confluência de conhecimentos, construir impressões sobre as narrativas, externar sentimentos e ideias e mesmo olhar e se aproximar de diferentes realidades.
Assim, um professor que lê funciona como uma abertura de horizontes para seus alunos. Eles também leem o que nós, professores, traduzimos em nosso cotidiano e espelhamos em nossas vivências. Quando lemos, estamos livres das amarras do preconceito e das limitações. Não nos permitimos ser cidadãos presos a convenções sociais; estamos abertos à universalidade e transitamos em tempos e espaços que não são os nossos, mas aqueles que nos permitimos.
Benefícios da experiência leitora para educadores e estudantes
Todos devem conhecer a inusitada história de Sherazade, que, com sensibilidade, aguçou a curiosidade do rei Shariar com os seus contos das Mil e Uma Noites. Ela verdadeiramente mediou a importância da leitura literária e ampliou a visão do seu interlocutor. Essa é uma analogia interessante de como a leitura nos leva a questionar, ampliar, revolucionar e aperfeiçoar o olhar para o mundo. A partir da prática leitora, podemos criar conexões e ser inspiração para os nossos alunos, fazendo-os saborear a relação com o conhecimento e despertando sua curiosidade e seu interesse.
Com a leitura, podemos ver os fenômenos do mundo pelas lentes alheias, além de potencializar o desenvolvimento de valores e crenças. E esse encontro com diferentes temas amplia nosso diálogo. As crianças e os adolescentes precisam de bons professores e boas orientações porque, como diria Guimarães Rosa, “existem os analfabetos para as entrelinhas”.
Dessa forma, a reinvenção do professor leitor deve passar pelo equilíbrio entre o letramento literário e a sua prática docente enquanto reflexo das suas leituras. Isso vai fazer com que o aluno leitor exercite o seu contato com o texto, as suas subjetivações e os seus contextos, e também vai preservar a ideia de que a escrita traz consequências sociais, culturais e políticas, tanto para o grupo social em que é utilizada quanto para o indivíduo que aprenda a usá-la.
Para o professor Ezequiel Theodoro da Silva, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a formação de professores e alunos leitores configura um passo relevante para a construção da cidadania. A leitura não somente é uma estratégia para a tomada de consciência como também um modo de existir socialmente, já que, por meio dela, o sujeito interpreta e compreende as múltiplas expressões.
As leituras que tecem um professor
Enquanto educadores leitores, nós firmamos um verdadeiro pacto com a leitura para além de nós mesmos, consolidando uma partilha com os estudantes e suas famílias. Se você ainda não tem o costume de ler, aceite o convite de Mário Quintana: “E paira no ar o eterno mistério dessa necessidade da recriação das coisas em imagens, para terem mais vida, e da vida em poesia, para ser mais vivida. Esse enigma, eu passo a ti, pobre leitor. E agora?”.
E agora? Comece a revisitar os clássicos e mitologias que fazem parte do senso comum, como as histórias de Eco e Narciso, Pandora, Eros e Psiquê. Se preferir, escolha uma leitura mais atual e descontraída, mas carregada de significações e críticas ao nosso tempo, como as crônicas de Millôr Fernandes e Luís Fernando Veríssimo.
Conheça as regiões e costumes do Brasil, em prosa e verso, com Patativa do Assaré, Ariano Suassuna, Jorge Amado, Cora Coralina e Guimarães Rosa. Aprofunde a leitura no intimismo de Clarice Lispector e Cecília Meireles e aprecie os romances cômico-policiais de Jô Soares e a dramaturgia de Domingos Pellegrini. Então, persevere e escolha autores que refletem sobre os resquícios do período da escravidão, como Torto arado, de Itamar Vieira Junior, Pequeno manual antirracista, de Djamila Ribeiro, e Becos da memória, de Conceição Evaristo.
Tornar-se leitor é entender que os moinhos de vento, tão comuns em Dom Quixote, refletem os gigantes que existem em nós, a vivacidade com que nos reconhecemos nas mais diversas realidades. Desejo a vocês, então, leituras – sim, no plural, pois somos múltiplos, assim como os narradores ávidos para compartilhar conosco novos saberes.
Um abraço e até a próxima,
Ana Cláudia
Ana Cláudia Santos é professora de Língua Portuguesa na educação básica da rede estadual de ensino há 20 anos e mestranda em Educação Profissional e Tecnológica. Foi vencedora do Prêmio Educador Nota 10, promovido pela Fundação Victor Civita, nas edições de 2014 e 2018, com os trabalhos O Povo Conta e O (Ser)tão de Cada Um. Recebeu a medalha Ordem do Mérito Educacional (MEC) – Grau de Cavaleiro e o troféu Capitão-Médico João Guimarães Rosa, da Academia de Letras da PMMG.
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