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Educação Antirracista: como desenvolver projetos nos Anos Iniciais do Fundamental?

É importante que a construção das propostas tenha participação ativa dos estudantes, envolva toda a comunidade escolar e aconteça de forma consistente ao longo do ano

POR:
Victor Santos
Perla da Silva dos Santos, professora do 5º ano na EMEF Lidovino Fanton, em Porto Alegre (RS), desenvolve o projeto Nobreza Negra, em que traz referências de reis, rainhas, príncipes e princesas africanas. Foto: Daniel Sasso/NOVA ESCOLA.

“A Educação Antirracista inclui alunos negros e brancos e visa fazê-los compreender o racismo como um problema social a ser discutido e combatido por todos”, sintetiza Perla da Silva dos Santos, professora da rede municipal de Porto Alegre (RS) há mais de dez anos. “Afinal, os problemas que ocorrem na sociedade acontecem dentro da escola também – já que ela está inserida nesse mesmo contexto – e, por isso, precisamos todos pensar em práticas antirracistas em busca de um país mais justo.” 

Essa perspectiva da Educação Antirracista não é algo novo. Ela já existe há muito tempo como um projeto coletivo, que tem nas suas origens intelectuais como Abdias do Nascimento, Lélia Gonzalez, Azoilda Loretto da Trindade e Nilma Lino e a atuação de movimentos organizados e não organizados. “Falamos aqui de favelados, operários, artesãos, grupos de mães e mulheres negras, associações quilombolas, grupos indígenas, enfim, pessoas que sempre contribuíram para a educação das crianças”, explica Ricardo Jaheem, professor alfabetizador da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro (RJ) e atual gerente de relações étnico-raciais da pasta. “Todos esses coletivos de resistência foram importantes para as discussões que levaram à aprovação de leis, momento em que a Educação Antirracista se tornou uma garantia de direito.” 

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional foi alterada em 2003 com a Lei 10.639, que tornou mandatório o ensino de cultura e história afro-brasileira e africana nas escolas do país. Em 2008, a Lei 11.645 garantiu o mesmo para os povos indígenas e suas tradições. Ainda assim, quase 20 anos após essa aprovação, a construção e a prática de uma Educação Antirracista no Brasil enfrenta obstáculos para sua plena efetivação. 

Nesse contexto, a NOVA ESCOLA conversou com educadores que possuem experiência no desenvolvimento de projetos com essa temática, especialmente nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental. Em seus relatos, eles destacam a importância de ouvir os estudantes e a própria comunidade escolar para a construção das propostas e a necessidade de envolvimento e engajamento de toda a equipe escolar. 

Gestão Escolar: Avance na Educação Antirracista com a equipe

Este NOVA ESCOLA BOX tem como foco apoiar, por meio de reflexões e instrumentos, o trabalho dos gestores para a valorização da diversidade racial dentro e fora da sala de aula. 

A História dos povos negros como potência

Em 2015, a professora Perla era monitora em uma escola de Porto Alegre (RS) quando uma das alunas sofreu uma situação de racismo. Após o acontecimento, a educadora acolheu a vítima e passou a promover debates no recreio sobre temas como negritude e cabelos crespos. Esse foi o embrião do Movimento Meninas Crespas, um coletivo de mães, pais, crianças, jovens e profissionais da Educação do bairro Restinga, extremo sul da capital gaúcha, em busca de uma educação “afrocentrada”. As iniciativas do grupo já se multiplicam pela cidade e por outros municípios do estado. 

Atualmente, o Meninas Crespas tem na presidência a própria Perla e, na vice-presidência, Karina Ferreira, que ingressou com sua filha no grupo em 2018. Ela diz que o movimento se tornou bastante amplo, com ações envolvendo acolhimento, iniciativas solidárias – “porque parte da população do nosso bairro vive em situação de extrema pobreza” – e relacionadas à música, à dança, à pintura e também à religiosidade. “Não se trata de impor nada, e sim de mostrar a umbanda como parte da nossa História”, salienta Karina. “A proposta é consolidar essa educação ‘afrocentrada’ dentro da escola, mas também saindo dela, vindo para a comunidade e se inserindo no maior número de locais possível, inclusive pautando políticas públicas.” 

No caso de Perla, que é licenciada em Dança e atualmente leciona para o 5º ano na EMEF Lidovino Fanton, no bairro Restinga, o entrelaçamento dos temas abordados no Movimento Meninas Crespas com a sua prática pedagógica é contínuo. “A partir das leis, nós precisamos ter em mente que esse é um trabalho diário, e não apenas no 20 de novembro [Dia Nacional da Consciência Negra]”, enfatiza a professora. “Estamos falando da História de um continente, de pessoas sequestradas que chegaram aqui e criaram várias formas de resistência. É preciso sair do viés da escravidão e trabalhar a história e a cultura do povo negro como potência, resgatando suas descobertas científicas, filosofia, arquitetura e matemática, e falar dos reinos que existiram, entre outras possibilidades.”

A professora também é presidenta do Movimento Meninas Crespas, coletivo que busca valorizar do protagonismo de pessoas negras, a história e a cultura negra e fazer um resgate da ancenstralidade como forma de ter uma educação “afrocentrada”. Essas vivências e princípios se entrelaçam com a prática de sala de aula de Perla. Foto: Daniel Sasso/NOVA ESCOLA.

Reis, rainhas, príncipes e princesas

O conhecimento sobre os reinos, aliás, faz parte do projeto Nobreza Negra, desenvolvido atualmente pela educadora. “O foco é trabalhar com a ideia de que somos descendentes de reis, rainhas, príncipes e princesas africanos. Tudo porque, principalmente com as meninas, existe uma relação estética complicada com as princesas Disney: elas não se parecem com a gente.” 

A professora relata que suas atividades sempre partem de uma troca – os alunos dizem o que sabem sobre o tema, e, em seguida, ela acrescenta mais alguns tópicos para a discussão. “Nesse caso, perguntei quais princesas eles conheciam, e surgiram nomes como Branca de Neve e Cinderela. Depois, analisamos alguns vídeos e livros desses contos de fadas tradicionais, observando detalhes como a fisionomia das personagens na capa, as paisagens e os cenários, como os castelos. Pedi que todos escrevessem como eram as princesas, e os não plenamente alfabetizados desenharam”, lembra. 

Em seguida, a turma consolidou em um quadro como era a aparência dessas personagens: brancas, loiras, de olhos claros e cabelos lisos. “Então, lancei o questionamento: ‘Será que só existem príncipes e princesas assim?’. Foi aí que coloquei um som de barulho do mar e falei: ‘Trouxe para vocês uma princesa que atravessou todo o oceano; não é a Branca de Neve nem a Cinderela. É a princesa angolana Zacimba Gaba, que era rainha e veio escravizada para o Brasil’.” 

A educadora então contou toda a história de Zacimba que, ao se libertar, fundou um quilombo, o qual os estudantes prontamente desenharam. Outras figuras históricas de reinos africanos, como Dandara e Aqualtune, também foram apresentadas. “É interessante que eles começam a ter consciência de que nossas princesas existiram de fato, se parecem com a gente e não esperam o príncipe – pelo contrário, pegam em armas e cuidam da sua comunidade.” 

Perla ainda conduziu pesquisas sobre roupas, pinturas étnicas e figurinos relacionados a essas figuras e, em um sábado letivo, teve a oportunidade de comandar um desfile com todas as meninas devidamente caracterizadas. “A ideia era que eu fizesse uma fala curta e, no fim, acabou sendo uma fala longa, com mães chorando, pessoas se identificando, todo mundo querendo tirar foto com as meninas que desfilaram. E fiquei pensando: em que outro momento essas meninas teriam essa oportunidade de estar nesse lugar de princesa? Porque, naquele momento, elas eram princesas, com suas roupas, seu turbante e seus cabelos crespos.” 

As atividades do projeto, que acontecem em sala de aula e também no contraturno escolar para as turmas de 4º e 5º anos, seguem em andamento, e seus desdobramentos mais recentes incluem um olhar para reis e príncipes. “Levei o filme Um Príncipe em Nova York e depois questionei: ‘Gente, já pensaram se tivesse um príncipe negro em Porto Alegre?’”, conta Perla. “Aí um aluno mais ‘pessimista’ até me respondeu: ‘Professora, é filme, acorda!’ [risos]. Mas, aos poucos, fui mesclando fotos do ator Eddie Murphy com imagens do Custódio Joaquim de Almeida, príncipe africano que viveu aqui em Porto Alegre no século 19. Então, lá em Nova York podia ser filme, mas aqui foi realidade.”

Trilha de cursos: Intensivo de Alfabetização

A NOVA ESCOLA preparou um intensivo com 60h de formação, dividido em dois cursos, para você incluir definitivamente as metodologias ativas em suas aulas para alfabetizar seus alunos. 

Pedagogia de favelas e escuta atenta

A Educação antirracista também está no centro do trabalho do professor Ricardo Jaheem. Mestre em Educação, ele é pesquisador há bastante tempo da temática dos quilombos, foi pedagogo no Grupo Cultural AfroReggae e também é poeta e escritor, autor de dois livros infantojuvenis: Adebumi (2021) e Dindo! (2022), ambos pela Editora Conexão 7. Todas essas experiências o fizeram compreender que muitas das práticas de Educação Antirracista partem da bagagem dos próprios estudantes.  

“Quando eu passei no concurso da prefeitura do Rio de Janeiro, fui atuar na EM Estados Unidos, no bairro Catumbi, lecionando para alunos com dificuldade de aprendizagem, que aos 12 e 13 anos não sabiam ler e escrever nenhuma palavra.” Nesse contexto, ele criou uma metodologia denominada Pedagogia de Favelas, em que os alunos começaram a se alfabetizar em conjunto, por meio dos seus temas de interesse, afrocentrados e pautados nas temáticas do local onde viviam. 

“A gente discutia, desenhava e escrevia sobre o impacto da violência sobre os corpos pretos, por exemplo. E esses alunos tinham um ‘clique’ quando trabalhávamos com hipóteses de escrita em cima de palavras da sua realidade, como as regiões ‘Morro da Mineira’ e ‘Fallet’”, descreve o professor. Segundo ele, outro ponto que chamava a atenção é que nenhum dos alfabetários da sala de aula possuía figuras pretas ou palavras como favela e morro. “Isso nos fez conduzir uma pesquisa e construir um alfabetário mais representativo.” 

Foto: Daniel Sasso/NOVA ESCOLA

Além da escuta sempre atenta, ouvir os estudantes exige, como narra o educador, uma boa dose de replanejamento – o que pode gerar oportunidades de aprendizagem muito ricas. “Teve uma vez que cheguei para falar sobre quilombos em uma aula, e uma aluna levantou a mão e contou que era quilombola – aí acabou meu planejamento na hora, né?”, diverte-se ao recordar. “Ela explicou que vivia entre o Maranhão e o Rio de Janeiro e foi nos relatando como eram as lideranças nos quilombos, como eles coletavam água, enfim, e tudo isso para crianças do 3º ano. Depois, ainda fizemos um registro coletivo.” 

Já em outra situação, o “desvio de rota” foi até maior. “Uma turma de 2º ano disse: ‘Ah, você só fala sobre quilombo, vamos falar sobre outra coisa [risos]. Então, abrimos um debate sobre o que abordaríamos, e Educação Antirracista é isso: a criança ter voz e poder opinar, escolher e participar da construção”, ressalta. “Eles decidiram que o tópico seria ‘universo’ e, em um primeiro momento, pensei: ‘Caramba, como abordar o universo na perspectiva antirracista?’. E acabou sendo uma grande oportunidade para lermos poesias negras, desconstruir a ideia de buraco negro, tudo misturado com física quântica, cosmologias africanas e indígenas, youtubers de ciência que eles trouxeram… Projetos assim envolvem diálogo e um caminho que é todo percorrido pelos estudantes.”

100 anos de Paulo Freire

Os conteúdos deste NOVA ESCOLA BOX buscam apresentar, no centenário de Paulo Freire, o potencial do legado do educador para inspirar e apoiar a prática de professores.

Como incorporar as propostas no planejamento

Um ponto realçado pelos professores entrevistados é que projetos como esses são responsabilidade de todos os educadores da escola, brancos, negros e indígenas. “Um primeiro movimento é esses professores entenderem o impacto do racismo nas nossas vidas e captarem que estudantes e seus familiares são atravessados por ele também”, comenta Ricardo. “Em seguida, vale buscar referências, como livros de autores como Sonia Rosa, Otávio Junior e Djamila Ribeiro. Mas é importante que tenham respaldo da gestão e das redes, que precisam fornecer formação continuada em Educação Antirracista, apoiando os professores a repensar a prática pedagógica.” 

Outro fator diz respeito a ter cuidado com o nível de letramento racial dos estudantes, que nem sempre está consolidado. A professora Perla compartilha uma ação que realiza para esse diagnóstico. “Por exemplo, eu trabalho com nobreza negra, mas trago escritores também, como Carolina Maria de Jesus. Preparo uma avaliação no início do ano e peço que desenhem e pintem uma princesa, um príncipe, um rei, uma rainha, um escritor, uma escritora, uma empregada doméstica, um ladrão, um escravo e um herói.” 

Ela conta que não corrige nem dá notas para essas atividades, pois tratam-se apenas de pistas para o seu trabalho. “Mas ali já dá para visualizar coisas como príncipe e princesa brancos, coroa, capa vermelha… Então, começo a trazer outros elementos ao longo do ano, como as referências de reis e rainhas africanos.” O resultado desses projetos surge quando ela retoma essa atividade no encerramento do período letivo. “Eles desenham novamente todas aquelas figuras e demonstram muito mais referências afrocentradas. Aproveito sempre para mostrar os primeiros desenhos lá de março, e eles mesmos percebem o seu aprendizado, comentando: ‘Olha só o que eu sabia sobre nobreza, heróis e escritores, e olha o que eu sei agora’.” 

É crucial ainda entender que a temática perpassa todos os componentes curriculares. “É fundamental pegar o currículo, olhar as habilidades presentes e planejar como todos esses tópicos podem ser ensinados de maneira antirracista”, orienta Ricardo. Ele aponta também que os momentos de planejamento coletivo dos docentes podem render trocas muito interessantes de referências e mesmo de materiais e propostas. 

Por fim, a professora Perla frisa que não adianta fazer um projeto lindo, se ele não respeitar o contexto da comunidade. “Não adianta pegar uma habilidade e um conteúdo e não dialogar com os interesses, com os níveis de aprendizagem e mesmo com as histórias dos alunos e de seu entorno”, reforça Ricardo. “Não existem modelos para a Educação Antirracista. Ela é, na verdade, como uma canção – cuja letra, a melodia e as palavras são diferentes em cada sala de aula e em cada território.”