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De Malasartes a Chico Rei: explore a cultura popular brasileira nas aulas de Língua Portuguesa

A literatura popular traz marcas da oralidade, é dinâmica e provoca inquietações sobre a realidade; veja sugestões de práticas e ferramentas para utilizá-la na sala de aula

POR:
Ana Cláudia Santos
Foto: Getty Images

“Ao lado da literatura, do pensamento intelectual letrado, correm as águas paralelas, solitárias e poderosas da memória e da imaginação popular.” Não poderíamos começar nossa conversa sem citar Câmara Cascudo, afinal, já desaguaram em nosso imaginário poderosas memórias convertidas pela tradição popular.

Essas memórias caminham em paralelo à erudição, aos formalismos, mas também tocam nossa essência, materializam o mundo do outro, suas vivências, suas crenças e seus valores. É a captura de uma geração inteira, seja pela vivacidade de um pícaro como João Grilo, pelos versos de sorte e trovas, ou pelas famosas histórias da carochinha.

Observar a vida pela janela e poetizar sincronias de tempos e espaços é dar a devida importância ao processo de formação cultural. Mesmo sem ter uma autoria definida, a literatura popular, em sua essência, traz marcas da oralidade, é dinâmica, permite fazer e refazer o cotidiano, provoca inquietações sobre a dura realidade e dá o leve tom aos fatos históricos.

Assim, ao incorporar traços coletivos, a espontaneidade garante a visibilidade necessária de uma história que persiste na crença popular. As figuras mitológicas são, simbolicamente, mediadoras entre o fato, as vivências e a permanência. Afinal, uma narrativa que procura dar sentido ao mundo e às relações entre os seres encontra na constância e na aceitação popular o significado para permanecer e construir tantos ensinamentos.

E por que não abrir as portas da sala de aula para as artimanhas do Pedro Malasartes, para a fé do congadeiro, para as fórmulas de adivinha, para os lemas de para-choques, para as lições dos provérbios, e também dos improvérbios, e para as cirandas? Enfim, um espaço plural por onde circulam saberes do povo e para o povo.

O ressoar popular na sala de aula 

Em nosso trabalho com a literatura de origem popular, podemos desmistificar a ideia de que o falar popular é um erro, fruto da ignorância e da incapacidade de bem pensar. O sincretismo, linguístico ou cultural, é o que estrutura a nossa história. Buscamos na tradição elementos que revelam a nossa identidade.

“Do tal Pedro Malasartes, você já ouviu falar?/ Pois prepare sua risada que estou pronto pra contar.” Se não ouviu ainda, uma sugestão é o trabalho com o livro Malasaventuras: Safadezas do Malasartes, de Pedro Bandeira, episódios hilários que apresentam as aventuras de Malasartes e que nos permitem recapitular os conceitos de narrativa e o reconhecimento das variantes linguísticas.

Professora e professor, vocês podem propor um estudo sobre o caráter narrativo, presente mesmo nos textos em verso, identificando as etapas de organização do enredo, de forma a distinguir enunciado (história) e enunciação (narrador). Discuta sobre as diferenças entre a conversação face a face e o texto escrito considerando a linguagem empregada, a relação título-texto, o conteúdo e os perfis do protagonista e do narrador.

Provoque sua turma e peça que eles conversem com os familiares, ouçam histórias curiosas e as registrem para compartilhar com os colegas. Oriente que expliquem em que situação a história foi contada – a exemplo de encontros familiares em sítios e fazendas, em noites enluaradas, com direito à luz da chapada e tantos outros fantasmas pertinentes ao imaginário popular.

Depois de analisar as curiosidades trazidas de casa, sugiro que apresente aos alunos trechos do audiolivro Patativa do Assaré, o poeta e o jornalista, que registra conversas entre o cearense Patativa do Assaré e o paraibano Assis Ângelo. Apresente esse recurso aos alunos; já que pode ser desconhecido pela maioria deles, é uma estratégia para que possam reconhecer a expressão oral de quem canta o sofrimento, a dor e a peleja do sertão, além de apontar o caráter narrativo de suas histórias.

Tomamos, assim, a língua falada como ponto de partida para reflexões que integram produções orais e escritas, leitura e compreensão, pensando sempre que a literatura popular traduz o imaginário coletivo, caracteriza-se pela simplicidade e apresenta traços que se repetem em diferentes histórias de diferentes épocas e lugares.

Desdobramentos literários

O trabalho com a literatura popular propõe um diálogo entre a realidade de nossos alunos e suas histórias – imbuídas da cultura local, de pessoas, de tradições e de valores, destacando o fato de sermos seres sociais e de nossa identidade formar-se na relação com nossos semelhantes.

Infinitas são as possibilidades de reconhecer os recursos de linguagem empregados para manter a curiosidade do leitor, como ocorre na narrativa de Graciliano Ramos, quando o contador de casos Alexandre confirma a veracidade de suas histórias com sua esposa, Cesária.

Reunidas no livro Histórias de Alexandre, narrativas como O olho torto de Alexandre e as aventuras de como ele conseguiu comprar um papagaio advogado permitem o aprimoramento das aulas e a utilização de mídias digitais como prática mediadora para o incentivo à leitura.

A exemplo do audiolivro, um recurso que pode ser explorado é a leitura das aventuras de Alexandre em um e-book. As narrativas podem ser lidas, relidas, questionadas e transformadas em cordel. Desperte a curiosidade, assim como faz Graciliano Ramos, e peça aos alunos que registrem as ocorrências de verossimilhança e de ações que perpassam a esfera do maravilhoso, do sobrenatural, dos costumes e modos de convivência.

Faça de sua aula um laboratório de criação, reúna as histórias reescritas por eles em um formato online. Com este software, é possível criar uma estante virtual e interativa que pode ser facilmente manuseada e compartilhada, e ele ainda apresenta um efeito de virada de página. Um espaço ideal para explorar a criatividade dos alunos.

Para além das historietas, também é possível reinventar as figuras lendárias da história do Brasil Colônia. De congo a congada, o mito é sempre renovado. Entre senhor e escravo, a astúcia de Chico Rei está na obra A história de Chico Rei, de Béatrice Tanaka. O livro dialoga com a letra de um samba-enredo do Salgueiro e um trecho do poema Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles.

De fácil leitura, conta a história de um rei africano que esconde em seus cabelos pó de ouro para comprar sua liberdade e, depois de sua alforria, constrói a Igreja de Santa Efigênia do Alto da Cruz, símbolo da liberdade e relacionada à religiosidade e às festas populares, como o congado. O xique-xique dos chocalhos já anunciava um pedido de misericórdia à santa pelos negros que louvavam e cantavam. Com os guizos amarrados nos calcanhares, dançavam e rezavam, um pedido de perdão para aqueles que escravizaram o povo negro. O mito foi passado, e não importa a versão, todos viram canção.

Quer seja pelo batuque do tamborim, quer seja pelo fole da sanfona, reescreva a tradição. É no saber popular que coroamos nossa história, quem somos e quem podemos ser.

Seguimos confiantes. Um abraço e até breve! 

Ana Cláudia 

Ana Cláudia Santos é professora de Língua Portuguesa na educação básica da rede estadual de ensino há 20 anos e mestranda em Educação Profissional e Tecnológica. Foi vencedora do Prêmio Educador Nota 10, promovido pela Fundação Victor Civita, nas edições de 2014 e 2018, com os trabalhos O Povo Conta e O (Ser)tão de Cada Um. Recebeu a medalha Ordem do Mérito Educacional (MEC) – Grau de Cavaleiro e o troféu Capitão-Médico João Guimarães Rosa, da Academia de Letras da PMMG.

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