Continuum curricular favorece recomposição e avanço de aprendizagens
O segundo semestre de 2022 é o momento de investir na recomposição, já que os currículos ainda estão flexibilizados
POR: Dimítria Coutinho
Logo no início da pandemia de Covid-19, ficou evidente que seria impossível garantir que os estudantes brasileiros aprendessem todas as habilidades que vinham sendo propostas nos currículos regulares. Desde então, tem-se adotado no país o chamado continuum curricular.
Ele permite que habilidades e competências essenciais da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) sejam priorizadas, flexibilizando os currículos das redes e garantindo um desenvolvimento contínuo das aprendizagens de 2020 a 2022. Do ponto de vista legal, o continuum curricular consta de uma resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE) que foi homologada pelo Ministério da Educação. Isso significa que o currículo contínuo é uma política pública vigente, por enquanto, até o final de 2022.
“O continuum curricular surge da necessidade de enfrentar esse momento extremamente complexo para assegurar, pelo menos, que os estudantes pudessem ter aquelas aprendizagens essenciais. Nesse sentido, a Base é uma grande bússola de articulação entre os anos escolares subsequentes”, afirma o educador Mozart Neves Ramos, membro do CNE e ex-secretário de Educação de Pernambuco.
Neste contexto atípico, o continuum curricular tem sido uma das principais estratégias para as redes de ensino conseguirem estruturar um processo de recomposição das aprendizagens que se perderam ao longo do período de ensino remoto.
Três pilares
João Paulo Cêpa, gerente de articulação e advocacy do Movimento pela Base, que apóia a construção e implementação da BNCC e do Novo Ensino Médio, diz que há três pilares fundamentais para a garantir a construção estruturada do continuum curricular pelas redes de ensino a fim de orientar o trabalho dos professores:
1. Currículo alinhado à BNCC: com base no documento, é preciso identificar as habilidades mais estratégicas para realizar um processo de aceleração das aprendizagens;
2. Avaliação e monitoramento: para que o currículo contínuo funcione bem, avaliações diagnósticas devem ser realizadas com frequência, a fim de reajustar as estratégias;
3. Ação: depois de priorizar habilidades e avaliar os estudantes, as redes de ensino precisam agir, estruturando intervenções pedagógicas com bases nos resultados e criando estratégias personalizadas.
“As redes que estão estruturando seus sistemas pensando nesses três pilares têm obtido resultados mais efetivos”, observa o gerente. Ele aponta que, para que o continuum curricular funcione bem, é necessário que haja uma comunicação direta entre redes de ensino e escolas. Nesse sentido, é papel da Secretaria de Educação tomar decisões estratégicas, realizar avaliações diagnósticas e promover formações de professores que abordem instrumentos, metodologias e materiais que ajudem na recomposição das aprendizagens.
Já dentro da escola, o coordenador pedagógico surge como peça-chave para ajudar os docentes no monitoramento dos resultados dos estudantes e na formação continuada, que permite trocas de experiências entre os pares. Na sala de aula, o professor é o responsável por realizar um planejamento pedagógico pautado no continuum curricular e trabalhar na organização dos estudantes e do tempo.
“O mais importante é que o professor garanta que o tempo que o aluno vai ter seja de qualidade e orientado para a recomposição e que a organização do trabalho pedagógico reflita a necessidade do estudante”, ressalta João Paulo.
Trabalho em equipe
Essa articulação é justamente o que tem acontecido na cidade de Queimadas (PB). Kézia Barbosa de Queiroz, coordenadora-geral de Educação da Prefeitura de Queimadas, conta que, a partir da orientação do CNE, a Secretaria Municipal convidou professores e coordenadores pedagógicos para a construção conjunta do continuum curricular.
Primeiro, o grupo estudou a fundo a BNCC e o currículo do estado. Depois, professores e coordenadores começaram a selecionar as habilidades essenciais de cada ano pensando no contexto local. O currículo contínuo foi, então, apresentado a toda a rede e submetido à avaliação de todos os docentes e até de famílias de alunos que quiseram participar do processo. Por fim, após os feedbacks, o documento foi aperfeiçoado e levado para ser aplicado nas escolas.
Damares Fernandes, da EM Judith Barbosa de Paula Rêgo, que atende alunos dos Anos Finais do Ensino Fundamental, foi uma das coordenadoras que participou desse processo. “Inicialmente, fizemos uma seleção priorizando os objetivos de aprendizagem do ano anterior e os transportando para o ano vigente, que era 2021. E orientamos os professores para que fossem feitas também novas priorizações ao longo desses dois anos, 2021 e 2022”, detalha.
Damares salienta ainda que, como 2021 foi um ano quase completamente de ensino remoto, 2022 está sendo de fato o ano da recomposição de aprendizagens, no qual os resultados do trabalho estão aparecendo. A rede municipal promove frequentemente avaliações diagnósticas e, a partir delas, o trabalho com o continuum curricular está sendo aperfeiçoado. “Na escola, nós estamos fazendo uma seleção dos principais problemas de aprendizagem encontrados a partir dos diagnósticos”, diz a coordenadora.
Resultados positivos e esforço nacional
No município paraibano, já é possível notar progressos nas aprendizagens de toda a rede municipal, segundo Kézia. “Os professores estão conseguindo trabalhar com o continuum curricular, e nós estamos vendo avanços, mas em um ritmo mais lento por conta das dificuldades que surgiram durante a pandemia. No entanto, já temos resultados bem positivos depois do retorno presencial às aulas.”
Apesar desse esforço conjunto de redes e escolas, Mozart aponta que muitas localidades do Brasil ainda não conseguiram aplicar o continuum curricular efetivamente. De acordo com ele, as secretarias de Educação de municípios pequenos, que muitas vezes não têm corpo técnico para lidar com uma questão tão complexa, precisam da ajuda das secretarias estaduais. Ele defende um esforço nacional para a aplicação do currículo contínuo em todo o Brasil.
“O Brasil precisa contratar técnicos que sejam bem treinados nessa questão do continuum curricular, de maneira que eles possam ajudar estados e municípios a construir os currículos contínuos. Eu vejo que deveria ser muito mais nesse campo, porque, se a gente esperar que as escolas consigam fazer isso, principalmente de pequenos municípios, de baixíssimo PIB, não vai acontecer”, opina Mozart. O especialista diz que, se não houver esse esforço nacional, “a conta vai chegar” com taxas de aprendizagem cada vez mais baixas e aumento da desigualdade.
Transição para um cenário de quase normalidade
É justamente por isso que Mozart considera que o continuum curricular deve ser ampliado para 2023, o que ainda está em discussão no CNE. Por enquanto, essa flexibilização está legalmente prevista somente até o final deste ano. Na prática, as escolas passarão por um processo de transição entre o currículo flexibilizado e a volta do currículo completo.
João Paulo orienta que este segundo semestre de 2022 deve ser o momento de acelerar a recomposição das aprendizagens. “Eu acredito que 2022 deveria ser o ano da recomposição, já que a gente tem essa prerrogativa do CNE. É imperativo que os sistemas foquem em aceleração de aprendizagem, para que em 2023, 2024 e, eventualmente, em 2025 sejam feitos ajustes para uma volta ao percurso normal.”
Mesmo que haja o fim do continuum curricular, João Paulo acredita ser essencial que a recomposição das aprendizagens continue acontecendo com as mais diversas estratégias. Para isso, é necessária a realização de avaliações diagnósticas frequentes. “Já existe um consenso de que essas perdas de aprendizagem são de médio e longo prazo”, comenta. “Vamos ter que entender que vai levar um tempo até que isso se regularize novamente no ambiente escolar”, concorda Mozart.
Neste final de ano, portanto, redes e escolas precisam avaliar seus estudantes de modo a diagnosticar quais habilidades o continuum curricular conseguiu garantir e quais ainda precisam ser recompostas. É o que tem sido feito em Queimadas, que continua avaliando os alunos para tomar melhores decisões para o ano que vem.
Para João Paulo, é importante que haja um continuum curricular legalizado. Mas, na ausência dele, há outros esforços que redes e escolas podem fazer para garantir a recomposição das aprendizagens. “O continuum curricular não é eterno. Se o processo de recomposição é bem organizado, isso vai diluir essa preocupação de ter um currículo contínuo legalizado.”
Segundo ele, ficou um aprendizado de que os processos de recomposição e aceleração das aprendizagens deveriam acontecer sempre, porque as defasagens já existiam antes da pandemia e vão continuar existindo. “Alunos aprendem de formas diferentes em velocidades diferentes, então é super importante que os sistemas e as secretarias sempre tenham currículos emergenciais para trabalhar eventuais necessidades de recomposição.”
Como recompor aprendizagens mesmo sem o continuum curricular?
Por enquanto, o continuum curricular é uma política pública prevista para terminar no final de 2022. Mas isso não significa que os processos de recomposição e aceleração das aprendizagens não possam continuar acontecendo dentro das escolas posteriormente. Mesmo sem a premissa legal de suprimir habilidades do currículo, redes e escolas podem pensar em conteúdos prioritários e estratégias para garantir o direito dos estudantes à aprendizagem. Confira dicas de recomposição de aprendizagens mesmo sem um continuum curricular vigente.
Priorizar habilidades. Mesmo sem o continuum curricular, redes e escolas não podem deixar de trabalhar habilidades, já que todas elas são direitos dos estudantes. Mas a BNCC permite que os planos didáticos sejam reorganizados para que haja a priorização de determinadas habilidades, dedicando mais tempo pedagógico para elas.
Ampliar a carga horária. Para que determinadas habilidades prioritárias recebam mais atenção, mas sem suprimir outras, é necessário ampliar a carga horária dos estudantes. Para isso, é possível estender o ano letivo ou aumentar o tempo diário na escola – por exemplo, trabalhando o reforço escolar nos contraturnos.
Manter avaliações diagnósticas. Fazer com que as avaliações sejam formativas e diagnósticas garante que professores, coordenadores pedagógicos e rede tenham sempre um panorama das aprendizagens dos estudantes, o que serve para pautar a continuidade do trabalho. Para isso, estratégias podem ser realizadas tanto em cada unidade escolar quanto em parceria com as secretarias.
Agrupar os estudantes. Outra estratégia que tem funcionado bem para recompor e acelerar aprendizagens é o agrupamento de estudantes. Uma forma eficaz de fazer isso é separar os alunos por grupos segundo o nível de aprendizagem, permitindo que o professor faça intervenções personalizadas. Outra possibilidade é fazer agrupamentos produtivos, nos quais os próprios alunos, com diferentes níveis de aprendizagem, podem se ajudar. O importante é conhecer bem os estudantes para que os grupos sejam efetivos.
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