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Letramento midiático: como a escola pode ajudar no combate a fake news

Professores e especialistas indicam estratégias para desenvolver o senso crítico dos alunos em relação ao consumo de conteúdos digitais e romper ciclos de desinformação – e não só em anos eleitorais

POR:
Rachel Bonino
Foto: Getty Images

No início do ano passado, quando o professor de Língua Portuguesa Glaucio Ramos começou a lecionar para a sua nova turma do 8º ano do Educandário Municipal Cônego Costa Carvalho, em Paulista (PE), ele se deparou com uma realidade desconcertante: parte dos estudantes relatou que não se vacinaria contra a Covid-19. O contexto ainda era de alta disseminação da doença, com muitas mortes ocorrendo diariamente, e de indefinição do calendário para a campanha de vacinação de jovens de 12 a 17 anos. “Fiquei curioso para saber o porquê. Eles contaram que os pais não acreditavam na vacina. Havia aquele descrédito, então eu fui investigar”, conta.

Ainda com o ensino remoto vigente, o professor disparou um questionário à turma para entender o que eles compreendiam sobre fake news, se eles sabiam identificá-las e se achavam que eram nocivas à sociedade, entre outras perguntas. Também pediu que familiares e amigos próximos respondessem se se vacinariam e, caso não, por qual motivo. O resultado foi que 80% dos respondentes – de um universo de 87 pessoas, entre alunos e familiares – disseram que não se imunizariam porque não acreditavam na vacina.

A realidade identificada por Glaucio não é pontual, mas global. Jovens em idade escolar, especialmente na faixa etária dos Anos Finais do Ensino Fundamental, já são vítimas de desinformação e informações fantasiosas. De acordo com um estudo publicado em setembro de 2021 no British Journal of Developmental Psychology, aos 14 anos, os jovens estão suscetíveis a começar a acreditar em ideias conspiratórias e não comprovadas.

O papel estratégico da escola no combate à desinformação

Muitos adolescentes também têm dificuldade em avaliar a credibilidade das informações disponíveis online. O relatório Leitores do século 21: Desenvolvendo habilidades de alfabetização em um mundo digital, elaborado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e também divulgado no ano passado, mostrou que 67% dos estudantes brasileiros de 15 anos não sabem diferenciar fatos de opiniões, ou seja, quase sete em cada dez alunos. Esse índice está acima da média registrada (53%) nos outros 79 países analisados pela organização.

Para essa situação, também conta a falta de compreensão sobre os gêneros textuais trabalhados no Fundamental, que pode persistir até o Ensino Médio. Em estudo de 2016 envolvendo quase oito mil estudantes americanos, pesquisadores da Universidade Stanford, nos Estados Unidos, descobriram que mais de 80% deles, incluídos nessa etapa, acreditavam que um anúncio rotulado como conteúdo patrocinado era na verdade uma notícia.

Segundo Michel Carvalho, doutor em Ciências Humanas e Sociais e integrante do grupo de pesquisa Mediações Educomunicativas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), é importante refletir sobre a reconfiguração da dieta informacional dos estudantes de hoje, que são nativos digitais. “É um grupo populacional que já não consome informação como se consumia no passado. A TV aberta, por exemplo, foi deixada de lado, e o aparelho é apenas plataforma para streamings. Eles consomem mais conteúdos e se informam por canais como YouTube, TikTok e outras redes sociais”, aponta. “Apesar de compreendidos como canais de entretenimento, muita desinformação pode circular por ali e estar camuflada até mesmo de memes”, avalia.

Além dessa nova maneira de se informar, a realidade social do estudante – como mapeou o professor Glaucio – pode determinar posicionamentos questionáveis em relação ao que é verdadeiro ou falso. “Imagine um jovem que está imerso em um contexto familiar em que se propaga muita desinformação. Ele é atingido por aquele, digamos, ecossistema desinformativo. Nesse contexto, a escola acaba tendo a função de ensinar os estudantes a avaliar e pensar criticamente sobre as mensagens que recebem”, analisa Michel. “Ela poderá ser o único lugar em que ele vai aprender a fazer a distinção entre fato e opinião, ou conteúdo amador e conteúdo profissional, ou conteúdo noticioso e conteúdo publicitário.”

Eleições: ponto de partida para uma discussão maior

Em ano eleitoral, como 2022, o debate sobre desinformação e fake news ganha corpo, e o tema também precisa fazer parte de discussões em sala de aula. Mas, antes de propor atividades específicas sobre isso, uma questão anterior se impõe: a importância do letramento digital e midiático – assunto que idealmente deve ser encarado e trabalhado de forma contínua e transversal pela escola.

Para a educadora Julci Rocha, doutoranda em Tecnologias da Inteligência e Design Digital e membro do grupo de pesquisa internacional Competências Digitais Docentes da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o letramento digital engloba várias dimensões da tecnologia. Entre elas, estão a computacional, relacionada ao domínio dos recursos tecnológicos; a informacional, com foco na informação disponível e em saber como criá-la e utilizá-la; e o letramento midiático, com ênfase em como lidar com as diferentes linguagens de forma crítica, bem como produzi-las também de maneira crítica e ética.

“O período eleitoral é um excelente momento para reflexão e desenvolvimento dessas habilidades, porque gera um volume enorme de informações, em diferentes mídias, com diferentes pontos de vista. Há um corpus de análise poderoso e que geralmente ganha o interesse da população. Mas, para levar esse tema para a sala de aula com a seriedade que ele merece, precisamos nos preparar”, afirma Julci, que também é fundadora da Redesenho Edu, que desenvolve materiais didáticos, formações e projetos centrados em metodologias ativas e integração de tecnologias digitais.

 

“De forma geral, a população tem pouco desse letramento, incluindo os professores. Por isso, é necessário desenvolver essa fluência também nos docentes, dando a devida importância a essa questão em todas as áreas de conhecimento”, completa. “O letramento digital é fundamental no exercício da cidadania.”

 

O professor como guia

Presidente do Instituto Palavra Aberta, entidade sem fins lucrativos que há 12 anos desenvolve projetos de promoção da liberdade de expressão, Patricia Blanco considera que o professor tem hoje um papel muito importante de curadoria e de orientação dos jovens. “Então, ele também precisa mudar essa percepção da própria função e ser um curador de informações, um guia para que o aluno chegue ao conhecimento.”

Em 2019, o instituto lançou o EducaMídia, voltado para a educação midiática de docentes e estudantes. “Quando a gente iniciou as formações, muitos professores diziam que não sabiam nada de tecnologia e que o aluno sabia muito mais. Sim, os estudantes sabem mexer no computador, mas precisam do direcionamento do professor para não serem inocentes digitais e terem uma fluência digital nesse ambiente”, destaca Patricia.

Para acelerar a inclusão da educação midiática como foco do combate à desinformação no período eleitoral, o Palavra Aberta lançou, em março deste ano, o #FakeToFora. Trata-se de um conjunto de planos de aula para que o professor leve ao aluno noções sobre como combater a desinformação, reforçando também as características das estruturas democráticas e do sistema eleitoral brasileiro.

“Desde o início da pandemia, nos preocupamos com as informações que os alunos consumiam nas mídias e tivemos a ideia de montar um projeto sobre o combate a fake news e à desinformação”, conta a professora Rita de Cássia Baccari Pastor Martinez. Ela e a colega Andréa Luna Dourado, também professora da EMEF M’Boi Mirim II, localizada em São Paulo (SP), realizaram a oficina Virada da Checagem, do #FakeToFora, com estudantes de 8º e 9º anos. Juntos, eles formaram um coletivo de verificação de informações envolvendo toda a comunidade escolar.

“Percebemos uma postura mais vigilante dos estudantes de verificar as informações antes de consumi-las e repassá-las. Além disso, alunas e alunos passaram a transmitir a prática de verificar as notícias para seus familiares. Assim, conseguimos transpor os muros da escola e atingir o território com o projeto que desenvolvemos”, comenta Rita.

Combate a fake news na prática

O professor Glaucio Ramos, de Paulista (PE), citado no início desta reportagem, diz que, ao final da sua atividade, batizada de Fuja da Fake, Foco no Fato, recebeu o retorno dos estudantes. “Eles não só gostaram da prática de checagem como também reavaliaram o posicionamento ‘antivax’. Muitos relataram que iriam, sim, se vacinar após realizar o projeto e que os familiares também haviam mudado de ideia.”

O projeto do docente pernambucano teve três fases. Na primeira, ele detalhou estratégias de checagem de notícias. Os estudantes foram estimulados a checar uma mesma notícia em vários sites, verificar a autoria, analisar a linguagem (como a presença de erros ortográficos, mensagem apelativa etc.) e fazer a pesquisa reversa de imagem (para identificar eventuais montagens), entre outros exercícios para reconhecer formas e conteúdos mais frequentemente encontrados em materiais falsos.

Já na segunda fase, Glaucio aprofundou o estudo com a leitura do livro Esquadrão curioso: caçadores de fake news, do jornalista Marcelo Duarte (Panda Books, 2018). O professor conseguiu contato com o autor, que topou o convite para ser entrevistado pela turma sobre o tema. “Com base em tudo isso, a gente desenvolveu a última fase, que foi a produção de uma campanha educativa contra fake news e a favor da vacina. E aí foi o momento de trabalhar a questão de gênero e linguagem, aquilo que é pertinente à Língua Portuguesa também”, explica. O resultado final foi a elaboração de uma campanha em vídeo mostrando justamente como identificar conteúdos falsos.

As camadas da informação digital

Para desenvolver esse tipo de projeto, Glaucio recomenda começar a trabalhar o tema primeiramente de uma maneira mais genérica, mostrando a importância da compreensão das fake news e como combatê-las, para só depois entrar na desinformação atrelada a eleições ou política. Ou seja, criar um repertório mais consistente para que os estudantes absorvam a prática de questionar dados de origem ou procedência duvidosa. “O campo da política hoje está bem minado, mas é fundamental levar esse comportamento crítico via o estudo de fake news também para essa área do conhecimento”, afirma.

Para Patricia, do Palavra Aberta, o momento histórico atual também pede que o docente estude, entenda e traga para a sala de aula a complexidade das várias camadas da informação digital: “O professor precisa propor ao aluno que questione a informação, que faça perguntas que vão além do primeiro resultado de busca, que nem sempre é o ideal, já que pesam sobre ele questões ligadas à publicidade ou questões algorítmicas”, ressalta. “A sociedade não vai retroceder na conectividade, no uso das ferramentas digitais; muito pelo contrário, isso só vai ser intensificado. Então, quanto antes a gente começar a trabalhar e incluir essa camada de educação digital e midiática para crianças e jovens, melhor será o entendimento deles em relação ao universo informacional e, com isso, ao universo digital também.”

Julci avalia que é preciso ir além das fake news para ser letrado digitalmente. “Entender nuances, ênfases, omissões, vieses, tudo isso é essencial e apresenta uma camada muito importante para que sejamos leitores e produtores críticos de informação na internet. Não basta ficarmos na camada do ‘verdadeiro ou falso’, que normalmente é o que ocorre nas fake news.”

Complexidade e evolução do tema

Embora o estudo sobre as características de informações falsas pareça “batido”, na medida em que é tema recorrente na mídia, nas redes sociais e até nas escolas, as informações básicas sobre identificação e características da desinformação precisam permear projetos de forma constante, até para a escola não deixar de acompanhar as evoluções desse tema.

“As deep fakes, por exemplo, que usam inteligência artificial para alterar rostos, sincronizar movimentos labiais e expressões faciais etc., apresentam uma outra gama de complexidade que possivelmente nós, usuários, não vamos saber identificar sozinhos. Por isso, conhecer fontes de checagem especializadas nessa função é de suma importância para tornar essa ação viável para nós”, aponta Julci.

Há ainda a discussão sobre a relação entre desinformação e sistema de crenças e paixões – objeto de estudo de áreas variadas, como Psicologia, Antropologia e Sociologia. “As pessoas sabem que aquele conteúdo é desinformativo, mentiroso, enganoso, e mesmo assim o compartilham. Isso acontece porque acreditam que é por um bem maior. ‘Sei que é mentira, mas, se vai atingir esse candidato de quem eu não gosto, então, por um bem maior, eu compartilho’”, analisa Michel. Os estudos sobre desinformação já avançam para entender as motivações de parte da população mundial que deliberada e racionalmente compartilha dados falsos. 

Escola como espaço de debate público e cidadão

Em tempos de acirramento político e polarização, discutir desinformação com a temática eleitoral tem suas nuances. Mas é preciso lembrar que a escola deve ser sempre um espaço de construção de diálogos saudáveis e democráticos.

“Precisamos discutir esse conjunto de práticas e conhecimentos para pensar como podemos aprimorar valores democráticos de tolerância, de respeito mútuo, de debates baseados em fatos, e não em desinformação”, salienta Michel. “Quando falamos de cultura democrática e cidadã, estamos falando de experiência. É preciso que os nossos alunos tenham vivências democráticas em sala de aula, de escuta radical, de empatia com os colegas. A escola tem de ter a primazia de propiciar essas experiências democráticas.”

Patricia diz que hoje há uma carência muito grande de discussões sobre democracia nas escolas. “Muitas se sentem inibidas de tratar do assunto por conta de todo esse processo de polarização política, de serem acusadas de estarem partidarizando, doutrinando os estudantes. Essa carência de educação democrática acaba se refletindo na apatia em relação ao interesse político dos jovens ou na possibilidade de você não ter o mesmo entendimento sobre os processos democráticos”, finaliza.

Métodos de identificação de fake news para inspirar atividades em sala de aula

Julci Rocha, da Redesenho Edu, lista projetos que usam a checagem de informação como premissa

“Whoa! Wait. What?”
Algumas dicas simples podem nos ajudar, como as que foram criadas pela metodologia apresentada no TEDxEvansville por Erin Gibson, jornalista americana especialista em Educação. Ela nos provoca a sermos sempre céticos com relação às informações que recebemos, em especial àquelas sem fontes ou de fontes desconhecidas, sem precisão de data e localização ou com manchetes sensacionalistas. Para isso, propõe a análise em três etapas:

 

  • - Epa! (Whoa!) A informação causou em você choque, surpresa ou raiva?
  • - Peraí (Wait). Pause! Não passe adiante ainda.
  • - O quê? (What?) Dedique um momento para investigar a informação.

Metodologia SIFT
Criada por Mike Caulfield,
pesquisador de desinformação da Universidade de Washington, nos Estados Unidos. Os passos da metodologia são complementares aos de Erin Gibson:

 

  • Pause: olhe um pouco para a mensagem.
  • Investigue a fonte: quem está por trás da informação? O que você sabe sobre quem a escreveu ou publicou?
  • Busque informações mais completas: há evidências no texto? Onde mais essa informação pode ser encontrada?
  • Conheça o contexto: qual é a história completa?