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Alimentação e higiene: rotinas que despertam aprendizagens

Lanchar, lavar as mãos e calçar os tênis, dentre outros momentos, são oportunidades para estimular a autonomia das crianças e conversar sobre o cuidado de si e com o outro

POR:
Beatriz Vichessi
Foto: Daniel Sasso/NOVA ESCOLA

No Brasil, o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil, de 1998, já explicitava que cuidar e educar são indissociáveis, deixando para trás a concepção de que as creches eram lugares para cuidar e as escolas, para aprender – muito forte na década de 1960. Outra contribuição relevante para essa mudança de perspectiva veio com a Lei de Diretrizes e Bases (LDB), de 1996, que estabeleceu a Educação Infantil como a primeira etapa da Educação Básica, tirando de uma vez por todas a creche da área da assistência social.

Com a aprovação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), em 2018, consolidou-se esse entendimento. “A BNCC frisa os cuidados como direitos da criança e deveres dos adultos e pontua que não se trata de simplesmente fazer, e sim de organizar oportunidades para que elas façam junto”, explica Thais Ciardella, coordenadora pedagógica da Comunidade Educativa CEDAC.

No documento, os cuidados com as crianças estão presentes em todos os campos de experiência da Educação Infantil – ora mais explicitamente, ora menos. A máxima “quem cuida, educa. Quem educa, cuida. Quando a criança aprende a cuidar de si está aprendendo sobre si e, ao aprender sobre si, está cuidando de si” aparece de forma explícita no campo “O eu, o outro e o nós” e fala sobre a importância de cuidar do próprio corpo e desenvolver autonomia para cuidar de si. Já em “Corpo, gestos e movimentos” também nota-se essa relação, ainda que mais sutil, quando o texto faz referência ao reconhecimento das sensações e das funções do corpo.

Vale ressaltar, no entanto, que outras situações da Educação Infantil, como atividades de pintura, leitura, brincadeiras, experimentações, vivências corporais, escuta de música e situações comunicativas também envolvem o cuidar: dos pertences, da arrumação da bagunça feita ao fim de uma atividade, de respeitar o tempo de uso de algum objeto pelo colega etc. Isso porque cuidar e educar estão entrelaçados, sempre.

No início do século 20, já se questionava o cuidar dissociado do aprender na infância. O biólogo suíço Jean Piaget (1896-1980) e o psicólogo bielorusso Lev Vygotsky (1896-1934) já tratavam dessas questões com apreço, produzindo pesquisas sobre interações dessa natureza. A pediatra austríaca Emmi Pikler (1902-1984) é outra pioneira na defesa dos momentos de cuidado como tempos de experiência, e não algo mecânico, desprovido de significado. Mais adiante, a abordagem italiana de Reggio Emilia, que se torna uma referência mundial em Educação Infantil na década de 1990, se fundamentaria nessa concepção.

Foco nas atividades rotineiras

Quando a escola passa a compreender que o desenvolvimento da autonomia infantil deve ser uma prioridade e que cuidar e educar são indissociáveis, transforma também seu jeito de planejar as rotinas para turmas de creche e de pré-escola. Não se pensa mais em atividades isoladas, sobre alimentação saudável ou sobre a importância da escovação dental. No lugar disso, as experiências cotidianas é que pautam as propostas, de modo que as tarefas em si – fazer o próprio prato, escolhendo o que quer comer, e lavar as mãos depois de fazer xixi, por exemplo – já são ótimos pontos de partida e oportunidades para conversar e aprender.

“Atividades rotineiras são atividades de valor, um tempo privilegiado de interação entre o adulto e as crianças. Mesmo que ainda tenham somente quatro ou cinco meses de vida, os pequenos têm plenas condições de desfrutar desses tempos quando falamos com eles e valorizamos o olho a olho, o toque, as expressões faciais”, diz Karina Rizek, consultora associada da Avante Educação e Mobilização Social e coordenadora geral da Escola Global Me, em São Paulo (SP).

Thais reforça que as crianças têm condições de entender o cotidiano tal como ele se expressa e que o interessante é criar contextos que provoquem os pequenos a formular perguntas. Ou seja, não é necessário inventar atividades pontuais, isoladas da rotina, muito menos “fantasiar” e criar situações estereotipadas para explorar a temática (leia abaixo sugestões de práticas relacionadas à rotina).

Foto: Daniel Sasso/NOVA ESCOLA

A chance de tentar

No dia a dia, o número de demandas, a quantidade de crianças na mesma turma, o pouco tempo na escola e as exigências do fazer docente parecem atropelar as possibilidades de conexão entre cuidar e educar. Somado a isso, existe a tendência dos adultos de separar as coisas por funções. “Para as crianças, tudo acontece o tempo todo, elas fazem conexões entre assuntos de forma tão interessante. Não podemos simplesmente ir separando tudo, como se colocássemos em gavetas”, alerta Vera Mendes Lima, professora da EM Carolina Moraes Silva, em Ilhabela, no litoral paulista.

Na escola, Vera é responsável pelas turmas de cinco anos e conta com a auxiliar Brisa Fernandes e com as professoras Thais Sousa e Alessandra de Souza, que apoiam o trabalho com as crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA). A horta da escola é um dos espaços que promove diversas aprendizagens: todas as turmas são responsáveis pela rega das verduras e sabem que a salada do almoço vem de lá. E alguns dos sucos que são consumidos nas refeições já foram feitos pelos próprios pequenos em sala, com misturas como laranja, beterraba e cenoura.

Vera explica que, muitas vezes, o que o adulto enxerga como simples é tema apetitoso e enriquecedor para a criançada. Então, mais do que se alimentar do que cultivam e preparam, os grupos pesquisam e conversam sobre sabores, cores, texturas e benefícios para a saúde e para o crescimento saudável. “O que é comum para o mundo adulto desperta o interesse das crianças e abre espaço para conversas e aprendizagens importantes. Não podemos fechar os olhos para isso na Educação Infantil”, diz a educadora.

Além de experimentar itens que nem sempre têm à disposição em casa ou que dizem não gostar mesmo sem nunca terem provado, as crianças são desafiadas e encorajadas a se servirem sozinhas e manusearem os talheres à mesa. “Criança que come sozinha, sem fazer sujeira, é porque teve oportunidade de fazer isso desde cedo. Não tem mistério: vivenciar o processo sozinha para aprender é tão importante quanto ser encorajada pelos adultos a fazê-lo e ter situações que permitam isso acontecer”, explica Vera.

Foto: Daniel Sasso/NOVA ESCOLA

Eu sei fazer sozinho!

As especialistas defendem que permitir aos pequenos vivenciar, tentar, errar e fazer de novo é fundamental. Isso dá a eles o direito de ter a camiseta com respingos de caldo de feijão, a cueca ou a calcinha molhadas de xixi, o tênis esquerdo calçado no pé direito e a blusa vestida do avesso. Quando isso acontece, é só ajudá-los a se limpar ou se trocar. Nada de broncas, reclamações e muito menos de tornar essas situações motivos para desistência.

“Em casa, essas vivências nem sempre são permitidas. É na escola que eles têm espaço para tentar e conquistar a independência e adquirir habilidades cotidianas, até porque é um lugar que deveria ter tudo pensado considerando a altura deles, o tamanho das mãozinhas etc.”, diz Denise Rodrigues de Oliveira, professora da pré-escola e professora da creche juntamente com a professora Silvana de Cássia Severo Scalcon, na EMEI Da Vila Nova São Carlos, em Porto Alegre (RS).

Um dos cuidados na escola de Denise é com a organização dos ambientes, pensados de modo que os pequenos tenham autonomia para tomar o café da manhã, almoçar e lanchar à vontade, podendo escolher onde querem sentar, conversar entre si e se servir do que querem comer. Detalhe importante: nada de pratos e talheres de plástico. Os itens são de vidro e alumínio, respectivamente, tal como os usados em restaurantes e na casa das pessoas. Evidentemente, as facas não têm ponta nem serrilha, para evitar acidentes. “Auxiliamos a todos, inclusive para dosar as quantidades e evitar desperdícios”, diz Denise, que conta com o apoio das monitoras de turma Simone Perez Pinheiro, Fabiane Siqueira de Avila e Cleres Medianeira de Almeida Maria. 

É claro que, vez ou outra, um prato cai no chão, o vidro se quebra, a comida se espalha por todo lado e a turma se assusta. Mas tudo bem – as funcionárias responsáveis pela limpeza ajudam e rapidamente tudo entra nos trilhos outra vez.

Conforme a turma vai encerrando a refeição, cada um, no seu tempo, é orientado a raspar as sobras no lixo e ir ao banheiro escovar os dentes. Nada de esperar o grupo todo. Quem chega no banheiro já encontra um colega e pode pedir ajuda para ele ou chamar um adulto, se preciso, conta Denise.

O empenho para desenvolver a autonomia das crianças é tão grande por parte de toda a equipe de funcionários da escola que as crianças de dois e três anos já estão aprendendo a ir ao refeitório sozinhas e retornar à sala de referência da turma quando acabam de comer. Por conta disso, não raro ouve-se aqui e ali alguém dizer: “Eu sei fazer sozinho!”.

Thais, da Comunidade Educativa CEDAC, sugere pensar em contextos para levar as crianças a pensar sobre alimentação e higiene e fazer perguntas sobre esses temas. “O ambiente, quando é recheado de conhecimento, impulsiona a criança a se reconhecer como ser social desde cedo”, diz.

A educadora reforça que investir na formação docente sobre os temas é essencial para que os educadores estejam bem informados e tenham repertório para conversar com as famílias e crianças, assim como para desconstruir estereótipos. Também é interessante que os momentos formativos tratem de como acolher cada criança quando algo foge ao controle – por exemplo, o xixi escapa, o copo de água entorna – e de como conversar com a turma. Isso pode acontecer com todo mundo? O que é possível fazer nesses momentos? Como ajudar os amigos? “Não se trata de ensinar o certo, e sim de reforçar a nova tentativa. Vivenciar o cotidiano é uma tarefa complexa, aprendida aos poucos”, lembra.

9 ideias para incrementar a rotina e proporcionar aprendizagens

  1. Faça rodas de conversa sobre semelhanças e diferenças entre a rotina alimentar na casa de cada um e na escola;
  2. Deixe disponível e ao alcance das crianças uma jarra plástica com água e copos para que se sirvam quando estiverem com sede;
  3. Elabore sugestões de cardápio com as crianças;
  4. Convide uma nutricionista para conversar com os pequenos sobre o que faz um alimento ser considerado saudável. Elabore listas sobre o tema para deixar expostas na sala;
  5. Reserve um espaço para as mães amamentarem – no próprio refeitório, junto das outras crianças – ou em uma sala à parte. Converse com o grupo sobre outros filhotes da natureza que mamam e que não mamam e sobre por que paramos de mamar quando crescemos. Por que isso acontece? De que o ser humano se alimenta depois dessa fase?;
  6. Disponibilize para as crianças uma balança no banheiro e fita métrica na parede, para que possam observar seu crescimento de modo frequente e falar sobre isso, bem como entrar em contato com os números;
  7. Instale espelhos, não só no banheiro – na altura da turma – como também no teto, no lugar dos trocadores de fralda, permitindo que os bebês se observem no momento da troca;
  8. Mantenha uma escadinha para que quem usa fralda suba no trocador sem precisar ser pego no colo;
  9. Faça do banheiro um ambiente interessante para as crianças que estão na fase do desfralde. Vale deixar à disposição brinquedos (que devem ser higienizados com frequência) e revistas em quadrinhos, para que elas possam desfrutar no momento de fazer cocô. Vale reforçar que não faz sentido premiar a criança quando ela faz xixi “certo” nem quando “consegue” fazer cocô.

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