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Como trabalhar com textos multissemióticos nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental?

BNCC destaca a importância do multiletramento para uma atuação mais efetiva e crítica na sociedade. Saiba como começar a abordagem

POR:
Ingrid Yurie
Foto: Getty Images

Com o alto nível de circulação e consumo de informação pelos meios digitais aos quais a maioria das crianças tem acesso diariamente, o processo de alfabetização precisa ir além dos textos exclusivamente escritos. Os estudantes devem ser capazes também de ler e interpretar textos com imagens, ícones e desenhos. Com isso, professoras e professores dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental encaram uma questão igualmente importante e desafiadora: promover o multiletramento dos estudantes. Porém o acesso às tecnologias digitais nas escolas, condição fundamental para realizar esse trabalho, ainda é um obstáculo.

“Há um descompasso entre a importância do multiletramento e o que as escolas conseguem fazer, por não estarem suficientemente conectadas e equipadas. A base do ensino continua sendo o material impresso e, mesmo que utilizem um CD, isso não é suficiente para trabalhar o multiletramento”, diz Roxane Rojo, professora aposentada do Departamento de Linguística Aplicada da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

O termo multiletramento foi cunhado pelo Grupo de Nova Londres, em 1996, quando perceberam a necessidade de um letramento que considerasse a diversidade de linguagens e culturas. Isso porque os pesquisadores de educação linguística observaram a popularização do acesso às tecnologias digitais e a tendência de globalização. “Eles estavam à frente de seu tempo e acertaram na mosca”, comenta Roxane. Aprender a ler textos multissemióticos – aqueles que envolvem o uso de diferentes linguagens, como a verbal, não verbal (fotos, ilustrações, ícones, desenhos) e audiovisual, com elementos sonoros, espaciais e visuais – é central para que os estudantes possam participar da circulação da informação de forma crítica e ativa.

Em parte, as pessoas já são capazes de fazer leituras multissemióticas, porque na televisão e nas redes sociais predominam os textos com mais de uma linguagem em uma mesma mídia. Mas, assim como conhecer livros e jornais não garante a alfabetização, consumir conteúdos pela internet ou pela televisão não significa necessariamente ser capaz de interpretar, compreender e criticar as informações e os subtextos. “Embora a imagem seja mais fácil de decodificar do que o texto escrito, os estudantes precisam de formação para fazer a leitura crítica, compreender como o formato e a linguagem funcionam, dizer onde estão os efeitos de imagem e de ironia, por exemplo, e identificar fake news”, orienta Roxane.

Entraves e alternativas

Para que os professores possam realizar esse trabalho na prática, a especialista defende políticas públicas que efetivem o acesso à internet de qualidade em todas as escolas do país – o que não se resume a laboratórios de informática, um modelo que ela considera ultrapassado. “A tecnologia tem de estar dentro da sala de aula, integrada às propostas pedagógicas”, afirma a especialista.

Uma possibilidade, indica Roxane, seria utilizar verbas do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) para substituir os materiais impressos pelos digitais e por recursos tecnológicos e conectividade. Em 2021, o financiamento do PNLD foi de mais de 2,2 bilhões. “Ele é um dos programas mais caros do Brasil e o mais caro da Educação. Como os livros são produzidos em São Paulo (SP), boa parte do dinheiro é [gasta com] frete. Com esses recursos, daria para equipar as escolas com tecnologia e materiais.”

Enquanto isso, os professores que hoje realizam esse trabalho em contextos de baixa conectividade recorrem a recursos próprios, como notebook e celular pessoal, para baixar vídeos e podcasts, por exemplo, e mostrar para a turma. “Mas, se essa também não for uma possibilidade, dá para trabalhar com leitura e escrita de imagens estáticas e textos, como a criação de legendas”, explica Roxane. A especialista também aponta a falta de materiais para os professores adaptarem e usarem com suas turmas. Ela própria criou um acervo de 20 materiais para os Anos Iniciais do Ensino Fundamental, testados em escolas públicas. O uso é livre e gratuito.

O que a BNCC prevê

Nos Ensinos Fundamental e Médio, em Língua Portuguesa e Língua Inglesa, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) destaca o multiletramento como uma forma de utilizar tecnologias nos processo de ensino e aprendizagem e como algo central para o desenvolvimento dos estudantes – não só a fim de participarem das práticas de cultura digital de forma efetiva e crítica, mas também para que eles próprios possam ser autores. “Alguém que toma algo que já existe (inclusive textos escritos), mescla, remixa, transforma e redistribui produzindo novos sentidos, processo que alguns autores associam à criatividade”, diz um trecho do documento.

Multiletramento a partir de um tema de interesse dos alunos

Em Campinas (SP), a turma do 5° ano da professora Ana Luiza Tayar Lima, da EE Professora Idalina Caldeira de Souza Pereira, começou a enfrentar uma questão neste ano: problemas de saúde derivados da má alimentação. A educadora viu aí uma oportunidade de promover o multiletramento dos estudantes e ainda ajudar na conscientização sobre a importância de uma alimentação saudável.

O trabalho começou com um extenso estudo sobre o tema. Os alunos assistiram a documentários e pequenos vídeos sobre alimentos e obesidade infantil, leram informações e notícias, fizeram uma pesquisa com a família acerca dos alimentos mais consumidos ao longo de uma semana e, depois, montaram gráficos e tabelas com os resultados individuais e de toda a turma. Os resultados apontaram que alimentos com gordura e açúcar eram os mais consumidos pelas crianças.

A segunda etapa consistiu em trabalhar em duplas e trios. Cada grupo escolheu um tema de interesse para pesquisar e montar peças de divulgação digital com informações simples e seguras para alertar a comunidade escolar, por meio das redes sociais, sobre os riscos de uma má alimentação. “Usamos a plataforma Canva para montar os cartazes digitais. Como essas peças vão circular fora da escola, os alunos ficaram muito preocupados com a questão ortográfica e a coerência dos textos, o que foi bacana, porque eles aprenderam muito com isso”, relata Ana Luiza.

No final deste ano, toda essa pesquisa que os estudantes fizeram dará origem a um podcast, formato pelo qual a turma se interessa e que amplia o trabalho com as multissemioses. Até aqui, a professora conta que já houve uma mudança de hábito dos alunos, como a diminuição do consumo de refrigerantes, por exemplo. Do ponto de vista pedagógico, ela percebeu a turma mais focada e empenhada, fazendo leituras críticas e construindo suas próprias opiniões. “Esse trabalho contribuiu para que eles vissem as questões implícitas e explícitas nos vários tipos de textos, imagens e vídeos, compreendendo a função social deles para o cotidiano, um tema que faz sentido para a vida dos estudantes. Usar as várias linguagens, inclusive do meio digital, também contribuiu para despertar a vontade de aprender e o engajamento.”

 

Maior capacidade de interpretação e reflexão

A percepção de uma turma mais autônoma e crítica, impulsionada pelo trabalho com o multiletramento, é compartilhada também pela professora Daniela Pistori Tavares. Ela desenvolve propostas nessa linha com suas turmas de 4° e 5° anos do Ensino Fundamental na EMEB Pedro Bordignon Neto – Unidade II, em Ortolândia (SP).

Um dos principais indícios de sucesso, segundo ela, foi o fato de perguntas frequentes, como “professora, o que é para fazer?”, terem se tornado mais raras. A educadora atribui o fato à melhora da compreensão leitora dos estudantes. Agora mais hábeis em decodificar textos multissemióticos complexos, as atividades mais simples, como propostas do livro didático, tornaram-se fluidas. “Percebo que eles conseguem interpretar melhor as coisas, o que também ajudou nas avaliações. E noto que aumentou o tempo de concentração nas atividades, algo que vinha sendo reduzido nos últimos anos. Além disso, o uso de linguagens diferentes realmente cativa o interesse deles. Com a pandemia, também ficou ainda mais clara a importância de usar outros recursos e preparar o estudante para o mundo em que está inserido”, afirma Daniela.

Este ano, a professora criou com as turmas três séries de podcast que são divulgadas semanalmente para as famílias por meio do WhatsApp. Em “Fique sabendo”, os estudantes pesquisam e produzem textos informativos com curiosidades, como uma campanha contra a dengue. Em “Cultural”, eles declamam poemas e trechos de livros. Já em “O que eu aprendi”, contam algo interessante que descobriram na escola durante a semana. Os temas são escolhidos de acordo com os interesses da própria turma ou a partir de algo que a educadora identifica que os estudantes precisam desenvolver. O trabalho envolve pesquisa sobre o assunto em diferentes mídias, análise em grupo e construção do roteiro do episódio.

Para a pesquisa, a professora promove uma rotação por estações. Em cada uma delas, há um gênero textual diferente sobre o tema e, em ao menos uma, um notebook ou celular para que analisem vídeos ou outras informações digitais. “Eles tinham muita dificuldade de entender a ironia e o humor de memes, um formato com o qual têm muito contato no dia a dia. Mas hoje conseguem interpretar melhor os sentidos presentes”, destaca Daniela.

Como colocar em prática

Educadoras entrevistadas nesta reportagem dão dicas e sugerem atividades

  • O multiletramento começa cedo. Não é preciso esperar a consolidação da alfabetização para trabalhar outros gêneros e linguagens. Isso porque as crianças já lidam com muitas imagens, como os desenhos animados.
  • Variedade é chave. Adaptando cada material para o nível da turma, é possível abordar uma diversidade de gêneros, o que expande a capacidade de interpretação. Trailers, infográficos, notícias falsas [para conhecer as características das fake news], fanfics, vlogs, paródias, colagens virtuais ou analógicas, jogos, panfletos, quadrinhos e charges são opções interessantes.
  • Possibilidades sem muitos recursos tecnológicos. Se a escola não conta com a infraestrutura necessária, dá para imprimir diferentes quadros de um vídeo para os alunos analisarem ou criar uma rotação por estações para que a turma compartilhe um único aparelho.
  • Envolver os estudantes é fundamental. Além de ouvi-los sobre seus temas e formatos de interesse, convide-os para produzir algo autoral nos gêneros abordados. Esse exercício permite que compreendam a fundo a linguagem em questão e exerçam a criatividade.
  • A importância do papel do professor. Chame a atenção para todo o contexto da obra, o veículo, a data de publicação, quem é o autor, a fonte utilizada, o formato, a função social e as referências implícitas e explícitas. Também promova leituras compartilhadas e estimule as trocas entre os estudantes, afinal, cada um é capaz de produzir interpretações únicas e todos aprendem com diferentes pontos de vista.
 

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