Crie sua conta e acesse o conteúdo completo. Cadastrar gratuitamente

Profissão professor: os desafios da formação inicial

Diante de um cenário de desinteresse pela carreira docente, jovens educadores contam porque escolheram esse caminho e suas perspectivas para o futuro

POR:
Thaís Lyra
O professor Jhonata de Oliveira desde criança sonhava lecionar. Hoje, aos 23 anos, tem uma turma de 1º ano do Ensino Fundamental. Foto: Franklin de Freitas/NOVA ESCOLA

O sonho de ser professor e seguir a carreira docente, durante muito tempo valorizada no Brasil e indicativo de ascensão social, pode estar ficando para trás. A baixa remuneração e a falta de reconhecimento são fatores que têm levado à baixa procura dos jovens por cursos de licenciatura. Uma pesquisa realizada pelo Instituto Semesp, órgão que representa mantenedoras de Ensino Superior no país, divulgada em outubro de 2022, revela que podem faltar mais de 230 mil docentes na Educação Básica até 2040.

Segundo o estudo, o número de professores jovens em início de carreira, com até 24 anos, caiu pela metade entre 2009 e 2021, e a participação de ingressantes com até 29 anos em cursos de licenciatura apresentou uma queda de quase 10% na última década, passando de 62,8% em 2010 para 53% em 2020. No sentido inverso, o número de docentes mais experientes (com 50 anos ou mais) e na iminência de se aposentar nos próximos anos está aumentando, tendo registrado um crescimento de 109% nesse período. Ou seja, o desinteresse do jovem em seguir a carreira de professor ocorre paralelamente ao envelhecimento do corpo docente.

O relatório mostra ainda o abandono da profissão devido às condições de trabalho precárias, como falta de infraestrutura, de equipamentos e de materiais de apoio. Isso sem contar a violência em sala de aula e os problemas de saúde agravados pela pandemia de Covid-19.

Para Patrícia Albieri, pesquisadora da Fundação Carlos Chagas (FCC) e participante de um grupo de pesquisa sobre início da carreira docente, as adversidades de ser professor nos dias de hoje são muitas e complexas, tendo em vista as transformações socioculturais e econômicas da sociedade pós-moderna. “Foram notáveis as modificações no campo da Educação, no próprio significado do conhecimento e, consequentemente, na sua forma de produção, distribuição, assimilação e utilização.”

De acordo com ela, caso esse cenário de apagão docente se confirme, ainda mais com a expansão das matrículas nos ensinos Fundamental e Médio, “projetam-se preocupações com a qualidade de ensino e aprendizagem do alunado, já hoje tão comprometida”.

Oferta de cursos e formação docente

Além do risco iminente da falta de professores, aspectos relacionados à formação docente também acendem um alerta. De acordo com o Censo da Educação Superior 2020, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), a maioria das matrículas em cursos de licenciatura (59,3%) é na modalidade EAD (Educação à Distância). Em 2020, 73,2% dos novos alunos optaram pelo ensino remoto, enquanto o ingresso em cursos presenciais diminuiu 37,6% na última década.

Segundo Patrícia, trata-se de um viés de oferta preocupante. “Sabemos pouco sobre esses cursos, e é preciso avaliar o seu impacto nas redes de ensino. Em conversa com quem já atua na rede, nota-se que alguns ingressam com dificuldades básicas na escolarização. A formação continuada dificilmente vai dar conta de suprir as demandas e as dificuldades desses professores iniciantes.”

Mesmo assim, entrar na faculdade não significa concluí-la: cerca de 30% não terminam a licenciatura, conforme também apontou o estudo do Semesp. Para a pesquisadora, isso pode estar relacionado à visão da docência como uma escolha por “descarte”.

“Há uma tendência em se pensar assim por se tratar de cursos baratos, rápidos, de fácil acesso e, portanto, viáveis não apenas do ponto de vista econômico, mas também das exigências de natureza acadêmica.” Por outro lado, ela lembra que, para muitos jovens, sobretudo os de classes sociais menos favorecidas, a docência se apresenta como uma escolha possível. “O magistério aparece como possibilidade real e concreta de exercer uma atividade profissional com possibilidade de transformação da realidade.”

Vocação e paixão

Ainda no início do curso de Pedagogia, o professor Jhonata já atua na área desde os 16 anos e reforça a importância do papel dos educadores. Foto: Franklin de Freitas/NOVA ESCOLA

Para os que escolhem a docência, conforme o estudo, o principal motivo é a vocação (35%). Esse foi o caso de Jhonata de Oliveira Gomes, 23 anos, professor do 1ª ano do Ensino Fundamental na EM Doutor Vicente Machado, em Castro (PR). “Eu tinha esse sonho desde criança, e a minha grande ambição de vida é ser o melhor professor possível”, conta ele, que também é membro da rede Conectando Saberes.

Jhonata atua na área desde os 16 anos. Começou como estagiário, após fazer um curso técnico gratuito de formação de docentes, oferecido pela Prefeitura de Castro (PR). Atualmente, cursa o 1º ano de Pedagogia na Unicesumar, na modalidade EAD. Ele diz que a escolha por aulas remotas foi por não haver faculdade no município. Escolhi uma instituição depois de pesquisar referências e conversar com algumas pessoas. Procurei uma universidade que fosse realmente desafiadora, mesmo sendo EAD, e tem sido assim nas partes teórica e prática. Acredito que a faculdade me fez ter uma visão muito crítica sobre o meu trabalho e toda a formação pedagógica.”

Apesar dos obstáculos da carreira docente, ele encontra ânimo. “Existe o cansaço e a desmotivação, mas, por outro lado, tem a realização. A experiência de ser professor é transformadora. Eu me sinto um construtor e mediador de um mundo que pode ser melhor por meio da Educação.”

Ele ressalta que ser professor no Brasil é “um ato de bravura”. “Algumas pessoas não entendem o papel da profissão e até o nosso trabalho. Pretendo transferir um conhecimento que vai além da escola, do conteúdo e do currículo; mostrar a realidade da sociedade e apontar caminhos para transformações. O maior desafio é trazer a igualdade e a equidade para dentro da escola.”

Compromisso ético e moral

A professora Vanessa Petrúcio Freire, de 22 anos, vai na mesma linha de Jhonata. “Ser professor no Brasil é ter de lidar com problemas estruturais e culturais”, afirma. Ela concluiu a licenciatura em Letras em 2021, também na modalidade EAD. Desde agosto deste ano, leciona Português para o 7º ano da EMEF Jacoub Koukdjian, em Mongaguá (SP).

Ela comenta que tem aprendido muito com os alunos – “todo dia tem algo novo em relação à profissão” – e que criou muito afeto por eles. Apesar dessa paixão inicial, reconhece que a profissão é desafiadora. “Não faltam dificuldades na Educação, e estou ciente disso. Há um desgaste emocional grande, mas tento driblar [essa situação]”, diz. “É uma grande responsabilidade formar uma pessoa, pois o papel da escola vai além de ensinar. Não quero só que saibam Português; meu objetivo é que sejam pessoas mais humanas e empáticas.”

Patrícia Albieri destaca essa forte dimensão subjetiva que a Educação possui. “É preciso ter muita clareza dessa responsabilidade social e ética com a formação de crianças, adolescentes e jovens.” Segundo ela, a função requer um compromisso ético-moral e não se trata de uma atividade neutra. “Não é um trabalho individual, é resultado de trabalho em equipe, portanto, uma atividade profundamente política, com uma dimensão pública. Do que a gente faz na sala de aula e na escola, eu devo satisfação para os meu alunos e para os pais dos meus alunos.”

“A minha grande ambição de vida é ser o melhor professor possível”, afirma Jhonata de Freitas, estudante de Pedagogia. Foto: Franklin de Freitas/NOVA ESCOLA

A complexidade do processo de ensino e aprendizagem

Diferentemente de Jhonata e Vanessa, Amanda de Moraes Viaro, 23 anos, optou pela graduação presencial. Ela cursa o último ano de Pedagogia na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em Guarulhos (SP), e conta que a vontade de ser professora começou no Ensino Médio. “Eu tinha muita curiosidade e queria entender os bastidores da profissão. Como aluna, eu percebia que havia muita coisa que não sabia, mas queria entender. Na época do vestibular, eu não tive dúvida.”

Ela conta que vem tendo muitos momentos de imersão nas diversas possibilidades de atuação do pedagogo. “Conhecemos de forma aprofundada a realidade da Educação Infantil, do Ensino Fundamental, da Educação de Jovens e Adultos e da gestão pedagógica que é operada nas escolas e também nos espaços culturais que podem ser dirigidos pelo profissional. É um leque amplo e, quando eu estiver com o meu diploma, vou deixar o coração escolher.”

Amanda lamenta que a profissão não seja valorizada e seja muitas vezes desacreditada. Ainda assim, ela se sente disposta a enfrentar os desafios e cita Paulo Freire: “Saber implica em não saber. Faz parte da busca pelo conhecimento entender que você não o detém”. E completa: “O professor é uma ponte para levar informação, conhecimento e todo repertório cultural que existe até hoje, seja no mundo, no país ou no seu bairro”.

Para Patrícia, quem escolhe a docência como profissão deve estar ciente da complexidade que envolve o ensino e da necessidade de estudar sempre. “É preciso ter clareza que os professores oferecem conhecimento poderoso e compartilhado para os alunos, [conhecimento] que não começou ontem, mas que vem de séculos de aprendizagens e pesquisas feitas por universidades e associações disciplinares”, salienta. “O conhecimento é poderoso porque permite que essas crianças, adolescentes e jovens interpretem e atuem no mundo. É compartilhado porque todos devem ser expostos a esse conhecimento de forma equitativa.”

Para tentar reverter o quadro de apagão de docentes, a pesquisadora da Fundação Carlos Chagas cita bons exemplos que vêm sendo adotados em outros países. São ações que vão desde iniciativas para melhorar a imagem social e o status da docência, passando por salários, condições de emprego, programas de iniciação à docência e reestruturação da formação inicial e continuada, até incentivos especiais para atrair e manter professores. “É urgente a valorização do magistério visando evitar o declínio da profissão e que as pessoas que optam pela carreira sejam assistidas em sua formação inicial e em seu desenvolvimento profissional”, conclui.

Como atrair novos docentes

Patrícia Albieri, pesquisadora da Fundação Carlos Chagas, aponta algumas ações

 

  • Fortalecer a parceria entre as universidades e escolas públicas de Educação Básica, contribuindo para incrementar o conhecimento e a formação de professores;
  • Incentivar ações, na formação inicial, que apostem no trabalho colaborativo, na inovação e na criatividade;
  • Também na formação inicial, propiciar o incremento de novas práticas profissionais, diferentes estratégias de didática, uso de tecnologias digitais e o desenvolvimento de atividades culturais;
  • Incentivar o desenvolvimento de pesquisas no campo da formação de professores para dar sustentação teórica e metodológica às práticas de formação de docentes;
  • Na formação continuada, realizar ações que considerem as etapas de desenvolvimento profissional docente, as condições de trabalho e o plano de carreira, além de políticas de indução à docência que recebam acompanhamento e tutoria;
  • Em escolas, promover ações conjuntas entre o corpo docente e a gestão, colocando-as a serviço do projeto pedagógico da instituição;
  • Incentivar a ampliação do background cultural dos futuros professores para fortalecer a formação das próximas gerações de docentes.

Esta reportagem faz parte do Especial Professores. Confira aqui os demais conteúdos

Tags

Guias