Alfabetização: utilize listas de compras para potencializar as aulas
Coloque a leitura e a escrita a serviço de práticas sociais do cotidiano, como tomar nota do que é preciso buscar no mercado e pesquisar preços em folhetos promocionais
POR: Beatriz VichessiDepois de fazer um ditado com palavras relacionadas a produtos de higiene para sondar os saberes da turma, Rafaela Martins, professora do 1º ano da EE Professor Mario Junqueira da Silva, em Campinas (SP), notou que tinha uma questão bastante interessante para explorar. Quando ditou “SABONETE”, três alunos escreveram “LUX”. Eles foram confrontados por Rafaela quando ela pediu que lessem em voz alta o que tinham escrito. “Eles liam ‘SABONETE’ seguindo a palavra ‘LUX’ com o dedinho”, diz ela.
Estava claro para Rafaela que o nome na embalagem do produto comprado pelas famílias das crianças estava influenciando a escrita delas. Então, ela se organizou para planejar com a turma um trabalho de leitura e escrita sobre compras de mercado e tudo o que envolve esse momento: fazer a lista dos itens necessários, pesquisar preços em folhetos promocionais e ler o rótulo dos produtos, as placas e as etiquetas de preços.
“Todos se beneficiaram das atividades propostas. Três estudantes alfabéticos ajudaram muito os colegas a avançar nas hipóteses de escrita. Ao mesmo tempo, esse trio se deparou com questões ortográficas e aprendeu bastante sobre elas”, conta Rafaela.
A potência do trabalho com listas reside em vários aspectos – a começar por ser um gênero que tem a ver com uma prática social presente no dia a dia das pessoas. “Fazemos listas de compras, de filmes em cartaz, de livros que queremos ler. Na escola, temos a lista de nomes da turma, que tem utilidade real: conhecer os colegas, saber como se escreve o nome de cada um e usar essa escrita para se apoiar na hora de fazer outras”, explica Renata Frauendorf, coordenadora de projetos do Instituto Avisa Lá e coordenadora do Grupo de Estudos Alfabetização em Diálogo (GRUPAD), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A lista é potente especialmente na fase inicial da alfabetização, porque é um texto mais curto e simples. “Isso não quer dizer que as crianças não possam lidar com textos mais longos. Mas as listas são valiosas por terem estrutura mais enxuta, com palavras pertencentes ao mesmo campo semântico, embora estejam soltas”, fala Renata. No mais, as listas são ótimas para realizar atividades de sondagem – tanto de leitura como de escrita – para conhecer a hipótese de cada aluno em determinado momento e recompor aprendizagens.
Aprender a ler um folheto promocional
A primeira atividade que Rafaela propôs ao grupo foi analisar folhetos promocionais diversos, de mercados, borracharias, pizzarias etc. “O que eles têm em comum?”, perguntou a professora aos alunos. As fotos dos produtos, o nome de cada um, os preços… Depois, respeitando os saberes de todos, ela propôs a leitura do material e, estrategicamente, priorizou folhetos em que produtos diferentes (como limão, pera, sabonete e hidratante) apareciam juntos, com o mesmo preço. Dessa forma, as crianças tinham de ler o nome do produto para saber onde estava escrito “LIMÃO” e “PERA” e onde apareciam as palavras “SABONETE” e “HIDRATANTE”. Ou seja, podiam até se apoiar nas figuras, mas, mesmo ainda sem saber ler convencionalmente, tinham de ler recorrendo à primeira e à última letra de cada palavra, por exemplo, dentre outras estratégias.
Ao perguntar sobre os preços, apontando o nome do produto, Rafaela encaminhou a turma – e, em especial, os três alunos que escreveram “LUX” no ditado – para a compreensão da diferença entre nome e marca. Eles entenderam, então, que nos rótulos o destaque é para a marca (“LUX”) e que o nome do produto (“SABONETE”) aparece na embalagem mais discretamente. No folheto, o nome aparece primeiro, abaixo da foto; depois é que surgem a marca e o preço.
O passo seguinte foi organizar coletivamente uma lista de compras de itens para um café da manhã. “Eu expliquei para a criançada que depois faríamos nosso próprio folheto de mercado com esses itens e iríamos pesquisar os preços mais baixos em outros folhetos, para criar o mercadinho da turma”, conta Rafaela. Ela então fez o papel de escriba. Os alunos foram ditando as palavras – “MARGARINA”, “SUCO”, “LEITE”, “PÃO” etc. –, dizendo quais letras ela deveria usar para escrever na lousa. A turma recorreu a outras listas expostas na sala, como a de nomes de alunos da turma, para tirar dúvidas e encontrar referências.
“Trabalhamos com os folhetos até alcançar a escrita convencional. Nesse processo, os alunos com escrita alfabética convencional foram essenciais, davam dicas para os colegas das letras que faltavam e das melhores para escrever o nome de cada item”, conta a educadora. Por fim, em duplas, os alunos também tiveram a oportunidade de desenhar os produtos para ilustrar os folhetos.
Ao explorar folhetos promocionais com as crianças, é preciso tomar cuidado para não incentivar o consumo. Os objetivos ao usar esse tipo de material na escola têm de estar focados no trabalho de leitura, escrita e pesquisa de preços e na interpretação das informações que constam no informe. “Saber ler os folhetos de forma crítica contribui para o consumo consciente. Aprendemos a checar se o valor promocional em um mercado é realmente mais em conta do que em outros estabelecimentos e a observar o que está escrito em letras pequenas, como o prazo de validade das mercadorias, o número de unidades permitido por cliente, a forma de pagamento, entre outros detalhes”, fala Renata.
Boas dicas não são respostas: fazem os alunos pensarem
Apostar no valor das ideias e das perguntas que as próprias crianças fazem também é parte do planejamento de Caroline Rezende de Souza, professora da EE Prudente de Morais, na capital paulista. Ela usa listas na alfabetização para impulsionar a turma a fazer boas reflexões sobre o sistema de escrita. De acordo com Renata, é justamente o uso da lista que faz dela algo interessante para trabalhar com leitura e escrita. “A lista, por si só, não é uma boa atividade. É preciso ter clareza do porquê as crianças estão escrevendo ou lendo uma lista, quais os desafios impostos, o propósito didático”, explica.
Certa vez, Caroline propôs aos alunos fazer uma lista coletiva de compras de mercado e depois montar o canto do mercadinho na sala, para brincar. Ela pediu, então, que ditassem os itens em voz alta. “Se alguém diz ‘SALADA’, pergunto como faço para escrever a palavra. Se a classe fica em dúvida se é com C ou com S, as crianças já sabem o que fazer: pedir uma dica para mim”, conta a professora. Nesse caso, os alunos já sabem: a dica não tem nada a ver com a professora entregar de bandeja qual é a primeira letra. “Eu ensino à turma o procedimento de fazer boas perguntas e dou exemplos claros”, diz ela. Por isso, é comum que as crianças façam pedidos sabidos, como: “Prô, escreve ‘SAPO’ para a gente saber como começa ‘SALADA’?'”. Caroline, antes de escrever, questiona: “Quais letras de ‘SAPO’ podem me ajudar a escrever ‘SALADA’?”, levando a turma a pensar que, além do S, a letra A é boa também.
Outra boa sacada de Caroline, quando propõe a leitura de listas de compras escritas por ela, é pedir que os estudantes que não leem convencionalmente apontem onde está escrito “TORTA DE MORANGO” ao mostrar uma lista com “TORTA DE MORANGO” na primeira linha e “TORTA DE BANANA” na linha imediatamente abaixo. “Mesmo que o aluno aponte a primeira linha e acerte, não paro por aí. Pergunto por que na segunda linha não está escrito ‘TORTA DE MORANGO’. Quero que ele desenvolva argumentos para justificar. Fazendo isso, estou ajudando-o a avançar mais e mais na leitura”, diz.
Ao trabalhar com folhetos, Caroline, tal como Rafaela, faz bom uso das fotos dos produtos. A turma do 1º ano do Prudente de Morais para a qual ela leciona tem vários alunos imigrantes – paraguaios, colombianos e peruanos. “Alguns deles conseguem ler o nome de cada produto, mas não relacionam o nome à imagem porque em espanhol ‘ABACAXI’ é ‘PIÑA’, por exemplo. Com as fotos, fica mais fácil entender a qual imagem a palavra ‘CENOURA’ se refere”, diz.
Material para download: registre as hipóteses dos alunos
Útil tanto no início do processo de alfabetização quanto no período de recomposição de aprendizagens, o mapa da classe serve para anotar as hipóteses de escrita de cada aluno, registrando seus avanços a cada nova sondagem.
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Consultor pedagógico: Fernando Barnabé, professor de Matemática, integrante do Time de Autores e do Time de Formadores da NOVA ESCOLA, autor e editor de materiais didáticos.
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