Utilize temas do cotidiano para estimular a argumentação dos alunos
Abordar assuntos do dia a dia ajuda o estudante a estabelecer relação entre o conteúdo e o que já é conhecido, facilitando a criação de vínculos e a aprendizagem
POR: Ana Cláudia SantosCerta vez, em uma sala de aula, uma criança franzina, tímida e insegura sobre a própria capacidade abriu um largo sorriso. O professor havia corrigido as tarefas de casa, chamava os alunos um por um e apontava suas considerações. Foi quando olhou para aquela criança e, sem dizer qualquer palavra, fez um gesto positivo com a cabeça. Eis o motivo do sorriso aberto daquele aluno, um sinal de sintonia entre professor, estudante e aprendizagem.
Essa história faz parte da vida de Paulo Freire e está registrada nas páginas de seu livro Pedagogia da Autonomia. Ele era a criança insegura buscando condições para se assumir como sujeito histórico, criar vínculos e exercitar suas habilidades.
Quando entendemos que aprendendo somos capazes de ensinar, compreendemos, também que as experiências informais, que chegam dos recreios, das ruas, dos bairros, das famílias e da convivência, exercitam a criticidade e promovem o saber que passa pelas emoções, pela sensibilidade e pela significação.
Para além dos fatores da textualidade como informação, aceitabilidade e contexto de circulação, é necessário resgatar a identidade de nosso aluno em contextos próximos ao seu cotidiano para que possa perceber a utilidade do que está sendo aprendido, tornando mais fácil o estabelecimento de relações entre o conteúdo e o que já é conhecido. E, dessa forma, também criar um vínculo entre professor e estudante, fazendo com que o aluno entenda que estamos todos juntos na jornada da aprendizagem e, assim, incentivando a autoconfiança e suas potencialidades.
Qual é a realidade do seu aluno?
Veja, professora e professor, sou de Santo Antônio do Monte, uma cidade interiorana de Minas Gerais, conhecida como a capital nacional dos fogos de artifício – atualmente tão questionados por seus impactos no meio ambiente e na vida dos animais. Porém, por aqui, é vocação e fonte de renda, tanto que um poema já diz: “Basta cortar a veia de um cidadão montense/ Para detectar o sangue iluminado/ Que, coagulado, pólvora irradia [...]/ Condenado pela magia de fazer noite virar dia”.
A pirotecnia por aqui é alquimia e identidade. Para trabalhar um tema tão significativo para nossos alunos, fizemos uma retrospectiva sobre a produção dos artefatos e levantamos fatores que afetam a queda da venda dos fogos de artifício, o que inclui a criação de alguns projetos de lei que coíbem a comercialização de rojões.
Realizamos ainda uma entrevista com o presidente do Sindicato dos Trabalhadores das Fábricas de Fogos de Artifício (Sindifogos) para avaliar os impactos do desemprego na região e como isso desponta no cenário nacional.
São pontos de vista diferentes que revelam o lugar de fala do nosso aluno. É o nosso sinal positivo para que ele busque significado nas diferentes fontes de consulta e saiba transformar informação em conhecimento.
Tomar como ponto de partida as experiências locais e relacioná-las a outros contextos imprime sentido aos textos, e a linguagem torna-se instrumento para compor um acervo de informações que provocam a sensibilidade, a capacidade de se colocar no lugar do outro, de perceber a própria realidade como um campo aberto em que são possíveis inúmeras respostas aos questionamentos do dia a dia.
Organize um debate com a turma
Questionar e indagar são formas de buscar argumentos na realidade. Assim, proponha um debate regrado, um gênero de argumentação oral por meio da interação entre pessoas, levando à discussão de diferentes pontos de vista sobre um determinado tema polêmico. Os participantes precisam ter conhecimento acerca do assunto em questão e validar seu posicionamento com argumentos sólidos.
Inicialmente, verifique os saberes que os estudantes já têm sobre o gênero e os temas que podem ser explorados. Oriente sobre a linguagem adequada, o tom da voz, a necessidade de escuta do outro e o respeito ao posicionamento do discurso dos colegas. Avalie a consistência das abordagens dos pontos evidenciados e indique leituras objetivando a construção dos próprios argumentos. Trabalhe com seus alunos temas que possam refletir questões locais, mas os incentive a relacionar esses assuntos com outros cenários mais amplos.
Para o linguista José Luiz Fiorin, a linguagem está sempre carregada dos pontos de vista e o nosso trabalho em sala de aula é sinalizar positivamente para nossos alunos, para que se acenda o estopim da argumentação e eles possam traduzir, em forma de texto, visões e acenos de um mundo diverso.
Uso de dados e artigo de opinião
Convicções, críticas e influências exigem que o interlocutor se justifique, pondere e seja empático no trato da informação. Um caminho para esse trabalho é a produção de artigos de opinião.
Primeiramente, coloque o aluno em contato com o gênero, onde circula, quem escreve, quais são os leitores previstos e com que objetivo é escrito. Faça a distinção entre fato e opinião e provoque a turma para que também levante hipóteses – que poderão ser refutadas ou confirmadas a partir de bons argumentos.
Para o britânico Stephen Toulmin, a argumentação está sustentada em dados, passo importante para que você envolva os alunos em temáticas que circulam na sociedade atualmente, especialmente aquelas que retratam a realidade local. A justificativa deve ser apropriada e sustentada em fatos.
Esses dados podem ser confirmados por estatísticas, alusão histórica, referência a cenas reais ou ficcionais, entrevistas, argumentos de autoridade, dentre outras possibilidades. Mostre que é necessário inserir modalizadores que denotem o posicionamento para que o texto tenha uma progressão temática e chegue racionalmente a uma conclusão.
No final, socialize os textos. Isso vai permitir a interação entre eles, e essa troca de material é um subsídio para as produções, um recurso para melhorar a escrita. Ao realizar a revisão textual, apontamos quais critérios são utilizados para nortear o olhar atento e observador, quais flagrantes da vida despertam a opinião e o confronto de ideias, ambientes ou situações que reportam os alunos a um universo particular, traduzindo uma opinião e convertendo o cotidiano em ideologia.
A escrita voltada para autonomia e para a reflexão nos faz entender que o trabalho depende da Educação, de processos de aprendizagem, e estabelecer vínculos implica a formação de valores éticos para que os estudantes se preparem para o desenvolvimento da vida em sociedade e tenham plenas condições de exercer a cidadania.
Ana Cláudia Santos é professora de Língua Portuguesa na Educação Básica da rede estadual de ensino há 20 anos e mestranda em Educação Profissional e Tecnológica. Foi vencedora do Prêmio Educador Nota 10, promovido pela Fundação Victor Civita, nas edições de 2014 e 2018, com os trabalhos O Povo Conta e O (Ser)tão de Cada Um. Recebeu a medalha Ordem do Mérito Educacional (MEC) – Grau de Cavaleiro e o troféu Capitão-Médico João Guimarães Rosa, da Academia de Letras da PMMG.
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