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Valorização do entorno escolar incentiva o protagonismo dos alunos e a inovação

Reconhecer a importância do território onde a instituição se situa favorece a aprendizagem e a autoestima dos estudantes, além de permitir aulas mais significativas

POR:
Tatiane Calixto

Alunos da EM Apolônio dos Santos Pádua, em Paraty (RJ), aprofundaram-se nos saberes caiçaras para estudar ciclo da água, marés e a rosa dos ventos. Foto: Camila Portella/NOVA ESCOLA

“É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”, diz um provérbio africano. A mensagem é potente, mas, para que ela se concretize, é fundamental uma articulação entre a escola e seu entorno. Reconhecer e valorizar o território no qual a unidade se encontra favorece a aprendizagem, a autoestima e a formação cidadã dos alunos. E mais: abre portas para que os professores possam inovar em suas práticas, envolvendo as famílias e toda a comunidade.

“É importante que a escola aborde aquilo que tem ao seu redor. E, nisso, o professor tem papel fundamental porque às vezes os livros didáticos ficam longe da realidade do entorno escolar”, considera Henrique Kozlowski, licenciado em Geografia e doutorando em Arqueologia, com foco em Educação Patrimonial e Geografia Cultural.

Criar associações entre os conteúdos e a realidade vivida, acrescenta Henrique, incentiva a participação e a integração do aluno no processo de aprendizagem. “Afinal, para aprender, é importante que o estudante participe do que é proposto e sinta-se pertencente àquilo. A partir disso, ele vai entender que tem um papel ativo e enxergar as possibilidades de troca de experiências.”

Apesar de ficar mais evidente nas aulas de Geografia ou História, abordar o território sob uma perspectiva de reconhecimento e valorização é um trabalho que pode se relacionar com diferentes componentes curriculares. Essa proposta dialoga com especificidades da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) em cada um desses componentes, mas também com as competências gerais do documento.

Isso acontece, por exemplo, em relação à competência 1, que trata da valorização e utilização dos conhecimentos historicamente construídos sobre o mundo físico, social, cultural e digital para entender e explicar a realidade, continuar aprendendo e colaborar para a construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva. Ou da competência 3, que se refere à fruição das diversas manifestações artísticas e culturais, das locais às mundiais.

Para Henrique, olhar com mais atenção para o território onde a escola está inserida e enaltecer os saberes locais é um caminho para criar condições pedagógicas que reforcem a construção da identidade. Esse olhar para o território também oferece à sala de aula a oportunidade de se apropriar desse conhecimento popular e, em contrapartida, influenciar positivamente a comunidade.

Ponto de partida para entender o entorno da escola

Para realizar um trabalho integrado com a valorização do território, Henrique sugere que os professores busquem registros históricos relacionados à cidade e ao bairro da escola, mas também aproveitem para conhecer as narrativas orais das famílias dos alunos, valorizando as experiências da própria comunidade. “E registrar essas atividades é muito importante. Além de possibilitar um trabalho multidisciplinar, pode ser uma forma de preservar a memória local.”

No entanto, é preciso admitir que existem desafios. “Para realizar esse tipo de proposta, o docente precisa ter tempo para criar vínculos com a escola e seu entorno. Mas nem sempre isso é possível devido a todas as demandas [que ele tem], em muitos casos, dando aulas em mais de uma escola”, pontua. 

Ainda assim, um bom ponto de partida para explorar práticas relacionadas ao entorno é começar com perguntas simples aos próprios alunos. Por exemplo: o que eles entendem por território? Como enxergam a realidade do bairro, da cidade ou daquele espaço onde vivem? O que aprendem com suas famílias, vizinhos ou conhecidos?

Reconhecer saberes e preservar memórias

Só é possível chegar à EM Apolônio dos Santos Pádua de barco, por isso a ideia de aprender com a experiência dos marinheiros. Foto: Camila Portella/NOVA ESCOLA

Os livros didáticos costumam trazer imagens coloridas para explicar o ciclo da água e a formação das nuvens, que têm tipos diferentes e despertam curiosidade com nomes complicados como cirrus e cumulus. Mas os alunos da EM Apolônio dos Santos Pádua, na Praia do Baré, em Paraty (RJ), tiveram uma experiência diferente com esse conteúdo e outros relacionados a ele. Olharam para o próprio local onde moram e ouviram um personagem muito conhecido por todos, o Seu Joaci, barqueiro que os leva diariamente até a escola. 

A unidade está situada na zona costeira, e só é possível chegar até lá por transporte marítimo. A escola atende alunos em classe multisseriada, da Educação Infantil ao 5º ano do Ensino Fundamental. Conforme explica a professora Miriam Fátima Esposito, a proposta nasceu da ideia de reconhecer a importância dos saberes caiçaras e proteger a memória da comunidade. Tudo articulado com o conteúdo previsto no currículo da turma.

Com isso, a ideia foi realizar conversas com Seu Joaci e aprender sobre etnometeorologia, a previsão do tempo popular. Afinal, quem melhor do que ele para identificar que quando as nuvens deixam o céu “riscado” é anúncio de vento? Ou que, quando elas formam um “rabo de galo” lá no alto é sinal de chuva? Com a explicação prática de quem vive isso no dia a dia, aprender sobre o sobe e desce da maré também ficou mais simples.

A professora Miriam conta que, depois dessas “aulas” com Seu Joaci, os alunos escreveram coletivamente um poema épico com a história e os ensinamentos do marinheiro. No final, pesquisaram e elaboraram um glossário com termos científicos e do dia a dia da região, como maré, caiçara e nuvens baixa, alta e média. Para ilustrar, tiraram fotos e fizeram desenhos daquilo que observaram. 

O resultado foi a criação da cartilha Seu Joaci e o Tempo, que compilou as atividades realizadas e consolidou o aprendizado sobre conteúdos como clima, ciclo da água e correntes marítimas, além de aspectos geográficos e históricos e produção textual. “O projeto tem um lado empírico muito forte, mas, mesmo assim, conseguimos trabalhar a pesquisa e a metodologia científica”, destaca Miriam. E os benefícios foram além, complementa a professora. “Nós reforçamos a confiança nos saberes comunitários e o papel da escola como agente socializador desse conhecimento. É muito bonita essa possibilidade de trazer o território, a comunidade e seu repertório para a sala de aula.”

Apropriação dos espaços e vínculos com o território

O trabalho realizado pela professora Miriam e seus alunos venceu o Prêmio Territórios. Foto: Camila Portella/NOVA ESCOLA

Todo o trabalho dos alunos da professora Miriam e os saberes caiçaras foram reconhecidos com o Prêmio Territórios. Idealizada pelo Instituto Tomie Ohtake, a premiação destaca práticas de escolas públicas de todo o país que, com base nos princípios da educação integral, consideram os processos de aprendizagem e os vínculos com os estudantes, as famílias, as comunidades e os espaços.

Outro vencedor do Prêmio Territórios foi o projeto “Motoca na Praça”. Desenvolvido com alunos da EMEI Armando de Arruda Pereira, em São Paulo (SP), ele mostrou que integrar território e escola é uma via de mão dupla – não apenas colaborando com o avanço do desenvolvimento das crianças, mas também permitindo repensar e melhorar os espaços.

A professora Lívia Guimarães de Arruda conta que a escola está situada na Praça da República, no centro da capital paulista. “É uma praça central. Não é considerada para crianças porque está em cima de uma estação do metrô e tem muita circulação de pessoas, o que traz impactos como acúmulo de lixo e pessoas em situação de rua. Também há locais turísticos e de comércio ao redor”, detalha a professora. 

Por tudo isso, sempre foi um desejo da unidade dar visibilidade ao fato de existir uma escola naquele espaço, transformando o olhar das pessoas em relação ao local. Afinal, a Praça da República é também a praça do bairro das crianças. “Apesar do estigma, é o local por onde elas passam todos os dias. Há anos o Projeto Político Pedagógico da escola já trazia esse desejo, mas sempre eram atividades esporádicas”, lembra Lívia. Porém, até a chegada das “motocas”.

A unidade tem cerca de 25 triciclos. O projeto começa com as crianças – de quatro e cinco anos – andando dentro do espaço escolar para treinar a pedalada. Depois, elas ganham a praça. São convidadas a dar voltas pelo local e a prestar atenção no ambiente, registrar curiosidades em desenhos e interagir com as pessoas, dando bom dia, respondendo e até contando o porquê de estarem ali. Com o tempo, a atividade entrou na rotina. Assim como contar história e tomar lanche, ir para a praça de “motoca” faz parte do dia dos pequenos.

O trajeto também foi ampliado e, além de se apropriarem da praça, as crianças foram conhecendo mais o centro da cidade e os equipamentos culturais nas proximidades da escola. “Fizemos parcerias com esses locais para visitação. Entendemos que eles também educam as crianças. Paralelamente, na sala de aula, conversamos sobre a cidade, o caminho, os trajetos, iniciando uma alfabetização cartográfica”, explica Lívia.

As crianças também são provocadas a refletir sobre as questões da vulnerabilidade social, do respeito e da gentileza. “O objetivo principal é que elas se reconheçam como indivíduos pertencentes à cidade e que entendam que têm direito de usufruir e transformar esse espaço. Nossa meta sempre foi criar uma relação afetiva com o bairro – não romântica, porque também falamos do que é ruim ou do que eles não gostam. Assim, a criança começa a olhar e refletir”, salienta a professora. 

Oportunidade para ampliar o repertório

O projeto “Motoca na Praça” colabora com o avanço do desenvolvimento das crianças e permite repensar e melhorar espaços urbanos. Foto: Lívia Guimarães de Arruda/Acervo pessoal

Para Lívia, o “Motoca na Praça” é ainda uma forma de ampliar o repertório ao visitarem equipamentos públicos aos quais as crianças talvez não tivessem a oportunidade de ir. Por outro lado, também é uma maneira de esses locais se preparem para atendê-los. Isso porque, muitas vezes, eles não estão prontos para receber crianças de quatro ou cinco anos. “Levando os pequenos até esses espaços, nós estamos dando visibilidade para as crianças.”

E tudo isso tem impacto nas famílias, que começam a criar vínculos com o território – algo importante para muitas delas, já que no Centro, acrescenta a professora, moram muitos imigrantes vindos da África e da América Latina e migrantes nordestinos. “As crianças visitam esses espaços (a praça, museus e centros culturais), e depois a gente explica que eles podem voltar com as famílias.”

Existe todo um planejamento e muito cuidado para as saídas, com regras e a colaboração de um grupo de professoras. Mas um ponto fundamental é a autonomia que a criança ganha ao circular com a sua motoca. “Lá, ela está ao ar livre, o corpo dela está em movimento, desenvolvendo habilidades motoras. Ela começa a ter mais responsabilidade também. Ainda assim, a ‘motoca’ evoca o brincar. As crianças estão o tempo todo brincando”, destaca Lívia. “E como tem muita exploração [do espaço, do corpo, no reconhecimento do outro], o trabalho se relaciona muito com os campos de experiência da BNCC.”

Reconhecer o espaço também fortalece a autoestima

Ao valorizar o território, é possível exaltar uma comunidade e criar vínculos com a cidade, mas também reconhecer e enaltecer a si mesmo. É sob essa perspectiva da autoestima que acontecem as contações de história na EE Quilombola Tereza Conceição Arruda, no Quilombo Mata Cavalo, em Nossa Senhora do Livramento (MT). 

Lá, a professora Gonçalina Eva Almeida de Santana resolveu recontar alguns clássicos infantis pela perspectiva do território das crianças. “Começamos esse trabalho porque íamos à biblioteca para rodas de leitura e sempre encontrávamos livros com olhares etnocêntricos, com crianças sempre brancas, que não representavam as nossas”, lembra a professora. Então, ela reescreveu as narrativas utilizando características do território e dos seus alunos para, a partir daí, ressignificar as rodas de leitura. 

As narrativas de contos clássicos foram reescritas utilizando características do território e das crianças da EE Quilombola Tereza Conceição Arruda (MT). Foto: Gonçalina Eva Almeida de Santana/Acervo pessoal

A Chapeuzinho Vermelho, por exemplo, virou Chapeuzinho Afro. E, na cesta – de palha de babaçu, diga-se de passagem –, a menina não leva doces, mas francisquitos, uma espécie de biscoito típico do Mato Grosso. E nada de floresta: Chapeuzinho caminha pelo cerrado, e o encontro é com a onça pintada, e não com o lobo mau.

“A partir do conhecimento da própria comunidade, o aluno consegue sentir orgulho do seu lugar, de pertencer a ele, de ser quilombola. Ele valoriza a identidade, saberes, fazeres, o histórico de luta dos antepassados”, afirma Gonçalina. “Porque só quando ele sente orgulho desse lugar é que ele vai lutar pela valorização da identidade, a posse do território e a manutenção da cultura.”

Com esse trabalho, ela também consegue contar a história do negro a partir da visão do colonizado. Assim, os alunos entendem que essa história não começa com a escravidão, mas na África e, muitas vezes, com reis e rainhas. 

“Nós somos ensinados a nos sentir menos, desvalorizados. Então, é importante saber essa história para enfrentar uma sociedade racista. Esse é o foco do nosso trabalho, uma identidade positiva que, às vezes, não se vê em materiais didáticos etnocêntricos”, destaca a professora. “O trabalho já está impactando positivamente a autoestima dos alunos e da própria comunidade, mostrando que o território influencia a vida deles, é vivo, e não só um conceito.”