Projeto de Vida estimula o protagonismo do estudante e favorece a Educação Antirracista
Componente trabalha a identidade e os anseios dos jovens, sobretudo daqueles que precisam enfrentar as desigualdades e o racismo estrutural
POR: Thais PaivaAinda criança, Débora Rocha, 20 anos, começou a sonhar com a ideia de um dia se tornar médica. Um sonho que, confessa, ela mesma desacreditava. Negra, estudante de escola pública e vinda de uma família sem muitos recursos, ela sabia dos percalços para ingressar em uma das carreiras mais concorridas e elitizadas do país e chegou até mesmo a duvidar da sua capacidade. “Lembro de ir desistindo da ideia por conta da fala de pessoas que me desestimulavam. Além disso, quase não via médicos negros. Eu não tinha um espelho para olhar, alguém como eu para me inspirar naquilo que eu queria ser”, lembra.
Esse cenário começou a mudar quando a estudante passou a ter aulas da disciplina de Projeto de Vida no Ensino Médio Integral (EMI) que cursou em São Gabriel da Palha (ES). Obrigatório desde a reforma do Ensino Médio, o Projeto de Vida é um componente curricular que visa apoiar os estudantes na construção e no planejamento de sua trajetória nos eixos pessoal, social e profissional. Nas aulas, a estudante encontrou uma professora que se tornou uma figura decisiva na sua jornada. “Minha tutora me estimulava a seguir meu sonho com o próprio exemplo dela. Ela também é negra e de família sem muitas condições – o pai era mecânico e a mãe dona de casa. E, mesmo assim, conseguiu fazer universidade federal. Ela acabou me inspirando.”
O apoio dado pela professora e as habilidades e competências desenvolvidas por meio do Projeto de Vida foram essenciais para Débora recuperar sua autoestima. Hoje, ela cursa Medicina no Centro Universitário do Espírito Santo (Unesc), onde possui bolsa integral. A estudante também foi aprovada em duas universidades federais de outros estados, mas acabou optando por continuar próxima de sua cidade.
Sua vitória pessoal, no entanto, não mascara as dificuldades estruturais ainda latentes na sociedade. “A maioria [das pessoas] da minha sala é branca e de classe média alta, e não há professores negros. Essa representatividade é muito importante. Espero que no futuro tenham mais profissionais negros que sirvam como espelho para a gente”, diz Débora.
Conhecer-se para conhecer o outro e o mundo
Histórias como a de Débora ajudam a ilustrar a importância do Projeto de Vida para os alunos, sobretudo quando é necessário enfrentar desigualdades socioeconômicas e o racismo estrutural, presente no próprio processo de escolarização. Um estudo realizado a pedido da Fundação Lemann analisou os dados sobre a aprendizagem dos estudantes e mostrou que há uma diferença expressiva entre alunos brancos e pretos. No 9° ano do Ensino Fundamental, em Língua Portuguesa, os alunos brancos têm desempenho 68,2% superior ao dos pretos. Em Matemática, a desigualdade aumenta: a diferença chega a 116,4%.
Longe de configurar uma questão de capacidade, os índices revelam como o preconceito e as barreiras estruturais dificultam o sucesso dos alunos negros. Enquanto componente curricular, o Projeto de Vida apresenta ferramentas e caminhos para essa desconstrução, já que se constitui como um espaço para o jovem exercer sua cidadania e embasar suas decisões com liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade. “É a partir do Projeto de Vida que o aluno começa a entender o sentido que a escola traz para a sua vida e para a concretização dos seus sonhos”, defende Franci Alves, gerente pedagógica do Instituto Sonho Grande. “O jovem entra na escola com vários anseios e desejos, e ter um currículo que dê suporte para concretizá-los traz o estudante para o centro do processo de aprendizagem.”
Nessa perspectiva, as aulas de Projeto de Vida contribuem também para a construção de uma educação equânime. “É um espaço onde eles se sentem seguros para falar sobre seus medos e inseguranças, sobre aquilo que incomoda, sobre o lado socioemocional”, afirma Franci. Além disso, o Projeto de Vida possibilita trabalhar a integralidade dos alunos, reunindo aspectos cognitivos e socioemocionais. Dados extraídos da pesquisa “Mais integral, mais oportunidades”, realizada em 2019 com egressos das escolas estaduais de Pernambuco que concluíram o Ensino Médio entre 2009 e 2014, mostram que o Ensino Médio Integral reduziu o gap salarial em até 13% entre negros e brancos.
Para tanto, o Projeto de Vida exige tempos e espaços específicos e um professor preparado para conduzir essa trilha pedagógica que aborda desde o autoconhecimento e a identidade do estudante até sua relação com os outros e o mundo do trabalho. Nessa trajetória, a figura do professor-tutor é essencial. “Ele vai apoiar o estudante para ele entender quem é. Porque a partir do momento em que ele reconhece sua identidade, fica aberto para a diversidade de culturas, crenças e valores, aprendendo a respeitar o outro, a mediar conflitos de forma ética e dialógica, a conviver e a participar”, acrescenta Franci.
Representatividade importa
Kaique Roque, professor da EE Rui Bloem, em São Paulo (SP), endossa esse entendimento e reitera que o Projeto de Vida vai muito além da escolha profissional. “Tem um caminho antes da pergunta de o que ele quer ser na vida: ele sabe quem ele é? Como ele se relaciona com os outros e com o mundo?” O professor explica que o componente abarca três eixos principais: o aluno e ele mesmo; o aluno e o próximo; e o aluno e o mundo. E em todas essas dimensões, a questão racial deve ser apresentada e debatida. “É muito importante conscientizar o aluno de que o Brasil é um país racista. Se ele está consciente disso desde o começo, você não vai formar um aluno dizendo, por exemplo, que racismo é opinião.”
Quando se trata de crianças e jovens negros, o trabalho com o autoconhecimento perpassa inevitavelmente a elevação de sua autoestima. E esse processo exige representatividade. “A valorização dos corpos, dos diferentes cabelos, tudo isso está dentro da Educação Antirracista. Na minha escola, meus alunos negros tendem ao embranquecimento: as meninas alisam o cabelo, os meninos preferem as meninas de olho azul e brancas”, conta. Essa percepção, segundo o educador, revela que não basta falar sobre racismo, é preciso que os alunos negros se vejam representados de forma positiva nos livros, na mídia, nas posições de prestígio dentro da sociedade. “Se eu não vejo ninguém igual a mim no lugar que quero ocupar, como vou almejar isso? Inconscientemente, há a mensagem de que esse lugar não é para você.”
Para trazer representatividade, Kaique costuma mostrar para a turma a história de referências negras: arquitetos, artistas, jornalistas etc. “E não precisa ser gente famosa, é legal também trazer histórias de pessoas que vieram do mesmo lugar que eles. Um pai ou um tio que saíram da mesma escola ou bairro e que estão na carreira que eles almejam. Também trago alunos negros que estão na USP, Unesp etc., para contarem sobre suas experiências.”
Um cuidado necessário nessa abordagem, no entanto, é não transmutar essas histórias inspiradoras em discursos de meritocracia. “É sobre encorajar e preparar o aluno, mas sem esconder a verdade. O aluno branco, inclusive, também precisa ouvir sobre isso. Não há igualdade sem equidade. Potencial, todo mundo tem. O que nós negros não temos são as mesmas oportunidades”, diz Kaique.
Em contrapartida, o professor percebe um movimento de aceitação e valorização em cadeia toda vez que um aluno negro assume sua identidade. “Quando uma menina faz trança, aparecem mais três. É interessante que, quando uma assume a sua identidade, isso gera possibilidades e liberdade para outras. Agora, na escola, tem umas 20 meninas em transição capilar, e elas criaram um clube das ‘sem chapinha’ para se fortalecerem”, comenta.
Reconhecer barreiras para superá-las
Quando se trata de fomentar o potencial dos alunos negros, Franci Alves acredita que um começo é colocar o Projeto de Vida a serviço do acolhimento desses jovens e visibilizar suas questões coletivas e individuais. “O educador precisa estar sensível para acolher essas pautas. Precisamos entender essa voz que está mostrando o que tem incomodado, mas também encorajar no sentido de que sua raça não pode limitar o seu projeto, o seu futuro.”
Nesse processo, apontar as desigualdades e os preconceitos é também essencial. “Ele precisa conhecer seu contexto e quais desafios e apoios consegue. O professor deve ter esse olhar mais abrangente, trabalhando os aspectos limitantes, mas também os apoiando no reconhecimento dos seus direitos, da sua voz. Uma coisa que faz muita diferença é quando o estudante percebe que ele pode”, destaca Franci.
Kaique aponta ainda a necessidade de dialogar com as famílias sobre esse tema e sobre o trabalho desenvolvido por meio do Projeto de Vida. “Muitas têm medo de o filho assumir cabelo afro, de usar maquiagem com referências africanas. Acham que ele vai ser julgado, vai sofrer bullying”, conta. Nesse ímpeto de protegê-los, acabam reprimindo ou silenciando quem eles são ou desejam ser. “O que podemos fazer com as famílias é incentivar, conversar. Falo na reunião de pais que eles precisam preparar os filhos inclusive para passar por traumas.”
BNCC e Projeto de Vida
Como as aulas do componente dialogam com a Base Nacional Comum Curricular
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) propõe o protagonismo do estudante em sua aprendizagem e na construção e na realização do seu projeto de vida. Entre as dez competências gerais da Base, a de número 6 versa justamente sobre a necessidade de trabalhar o socioemocional dos alunos, desenvolver entre eles a compreensão do mundo do trabalho e seus impactos, bem como prepará-los para o exercício da cidadania. Dessa forma, a BNCC orienta que o Projeto de Vida adentre a vida estudantil ainda no Ensino Fundamental, sendo aprofundado no Ensino Médio.
Segundo o documento, o Projeto de Vida diz sobre: “valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais, apropriar-se de conhecimentos e experiências que lhe possibilitem entender as relações próprias do mundo do trabalho e fazer escolhas alinhadas ao exercício da cidadania e ao seu Projeto de Vida, com liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade”.
Referências que inspiram
Na rede cearense, o trabalho com o Projeto de Vida aparece principalmente por meio de dois componentes curriculares: Formação para a Cidadania e Núcleo de Trabalho, Pesquisa e Práticas Sociais (NTPPS). Este último implica em quatro horas semanais e é desenvolvido ao longo dos três anos do Ensino Médio, cada um deles com um enfoque. No 1º ano, aborda-se a relação do aluno com sua identidade e família. No 2º ano, sua relação com a comunidade e, por fim, no 3º ano, sua relação com o mundo do trabalho. Além disso, é por meio do NTPPS, sobretudo, que as competências socioemocionais são trabalhadas, além da ideia do estudante-pesquisador.
Na EEMTI Jacob Nobre de Oliveira Benevides, em Banabuiú (CE), esse apoio e acompanhamento fazem a diferença na vida dos estudantes. A escola está localizada no sertão do Ceará e, além da questão da raça, cerca de 80% dos alunos vivem na zona rural. Alguns acordam às quatro horas da manhã para estarem na instituição às sete. “Somos uma escola de tempo integral, então acreditamos que temos uma grande responsabilidade de apoiar o aluno em seu projeto de vida, já que é aqui que ele passa a maior parte da juventude”, ressalta Tuany Lopes, coordenadora pedagógica da escola.
Além de acolhê-los, a escola tem se empenhado em apresentar experiências exitosas para mostrar o quanto são capazes, convidando ex-alunos para compartilharem suas trajetórias. “Falamos de ex-estudantes que estão na universidade e também de outros que escolheram enveredar por outros caminhos, como o curso técnico, ou que montaram seu próprio negócio e hoje são fornecedores da escola.” Este mês, no ensejo da comemoração da Consciência Negra, a escola irá trazer mulheres negras da região para falarem sobre suas trajetórias.
Tema ainda polêmico e necessidade de formação docente
Este trabalho, no entanto, nem sempre é fácil. Desde 2014 atuando como professor-diretor [tutor] de uma turma do 3º ano do Ensino Médio da escola cearense, Romualdo Ramon Martins de Queiroz diz que ainda hoje a temática racial é vista como polêmica. “Há uma hora semanal de formação cidadã, que é baseada no Projeto de Vida. Trabalho na periferia onde há muitos alunos negros. Tento levar os dados e fatores que dificultam o acesso deles aos espaços, mas ao mesmo tempo trazer a consciência da equidade. Qual a diferença de igualdade para equidade? Equidade é atender de acordo com a necessidade”, explica.
Segundo o professor, é comum perceber na fala dos alunos negros a baixa autoestima. Ele conta que, inclusive, já presenciou situações de racismo em sala. “Todos ali são meus alunos e precisam estar cientes de que, primeiro, racismo é crime. Depois, é preciso desconstruir os estereótipos e mostrar que eles são do tamanho dos seus sonhos”, explica o docente, que também leciona na EEM Governador Luiz Gonzaga da Fonseca Mota, em Quixadá (CE).
Uma atividade que Romualdo desenvolveu com a turma foi levar um vídeo de Ivone Caetana da Silva, primeira desembargadora negra do Estado do Rio de Janeiro, no qual ela relata sua experiência como mulher negra na escola pública. “Ela conta que quando chegou à escola só viu aquele ‘paredão negro’ no fundo da sala, porque quem era branco tirava notas melhores e sentava na frente. E ela disse que prometeu para si que não sentaria lá atrás”, salienta o professor.
A ideia era que o vídeo propiciasse um debate entre os alunos, mas um elemento surpresa agregou ainda mais à prática. Enquanto apresentava o vídeo para a turma, o coordenador da escola chegou para dar um aviso e acabou assistindo ao filme. “Ele também é negro e se sentiu motivado a falar sobre si. Foi muito importante ter essa pessoa que ocupa um cargo de destaque na escola falando de igual para igual com os alunos”, lembra Romualdo.
Outro ponto levantado por Tuany é a importância da formação continuada do corpo docente para que ele possa abordar a Educação Antirracista e seus desdobramentos com propriedade. “Aqui, temos o suporte da rede do Ceará, que promove formação sobre identidade e raça. Mas são formações virtuais e, de fato, esses espaços de reflexão por meio de fóruns não se efetivam tanto na nossa prática presencial. A gente vê que ainda tem muita coisa para ouvir, aprender, desvendar, e que isso tudo precisa chegar mais à escola.”
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