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Aproveite o recesso de fim de ano para descansar o corpo e a mente

Saúde mental envolve o cuidado consigo e com o outro, mas também é fruto da promoção de um ambiente psicossocial positivo na escola

POR:
Camila Cecílio
Foto: Getty Images

Saúde mental foi um dos assuntos mais abordados ao longo dos últimos anos. E não é para menos, já que todos foram, de uma forma ou outra, afetados pela pandemia de Covid-19. Na Educação, foi preciso olhar com mais atenção para os aspectos emocionais de toda a comunidade escolar, especialmente após um longo período de isolamento, perdas e desigualdades sociais escancaradas. Ao mesmo tempo, 2022 foi cheio de trabalho e desafios para os educadores que estão no chão da escola. Por isso, mais do que nunca, o recesso de fim de ano será um momento crucial para descansar o corpo e a mente. 

“Cada vez mais, educadores enfrentam jornadas exaustivas de trabalho durante o ano letivo, principalmente quando tratamos de profissionais da rede pública”, observa Laís Guizelini, psicóloga e analista de programas e projetos na linha de saúde mental da Fundação Tide Setubal. “O descanso é um direito fundamental do trabalhador, e, ao falar de saúde mental, estamos falando também da garantia de direitos”, afirma. 

Mas por que descansar é tão importante? Li Li Min, neurologista da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), explica que, em situações de estresse – quando nosso organismo acha que estamos sob ameaça ou pressão intensa –, “alguns circuitos particulares do cérebro são ativados, que são os de sobrevivência. O corpo fica de prontidão, alerta para enfrentar qualquer situação. Só que esse é um estado que você precisa ativar e desativar”. 

No caso de uma pessoa que trabalha por longas jornadas sem tirar férias, esse estado de alerta nunca é desligado. “Se você fica muito tempo nessa tensão, o seu organismo e o seu cérebro não conseguem voltar ao estado normal. Ligado nesse circuito de estresse, ele [o corpo] não consegue ativar as funções da criatividade ou da elaboração, porque está focado na sobrevivência. Esse é um conflito perigoso”, garante o médico. 

O descanso acontece quando há sono de qualidade e momentos de lazer e criatividade que possibilitam o desligamento de uma rotina de trabalho. “Operamos dentro de uma lógica massacrante na qual o bom trabalhador é sempre o que precisa fazer mais do que suas atribuições, ser mais produtivo, e quando não suporta todo esse excesso de cobrança e adoece, é levado a crer que o problema está nele, que tem um defeito, uma incapacidade. Precisamos estar atentos a essas questões para que nossa compreensão de saúde mental não endosse essa lógica que visa à adaptação e conformação das pessoas”, alerta Laís.

O que é saúde mental 

De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), a definição de saúde é bem ampla e compreende bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doenças. A saúde mental envolve o equilíbrio dinâmico entre sentimentos, emoções, ideias, crenças e valores que são vividos em nossa relação com as pessoas e o ambiente. Esse equilíbrio vai influenciar o modo como lidamos com as instabilidades da vida, com emoções positivas e negativas, com reconhecimento de limites e a superação de desafios, podendo ajudar ou dificultar esse processo.

 

Fonte: Cartilha Autocuidado em saúde mental para professores, da Universidade Federal do Ceará (UFC)

Embora seja praticamente impossível definir um passo a passo que sirva para todos, um bom começo para o autocuidado é olhar para o seu momento de vida e, de acordo com suas possibilidades e seus limites, se perguntar: “Como eu consigo descansar?”. “A constante cobrança por produtividade e desempenho nos leva a um esgotamento, por isso, é essencial que ela não se internalize e se estenda para os momentos de descanso”, sugere Laís. 

Rodrigo Bressan, psiquiatra e presidente do Instituto Ame Sua Mente, afirma que a saúde mental deve ser tão cuidada quanto a saúde física. Alimentar-se bem, dormir adequadamente e praticar atividades físicas são essenciais. Tão importante quanto isso são as relações interpessoais. “O ser humano é um ser relacional, e as relações são chave para o bem-estar e a sensação de pertencimento. Por outro lado, elas também são causas de muitos conflitos. Ter um olhar atento para esses conflitos e cuidar deles é extremamente importante”, frisa. 

Olhar para si, se escutar

Renata Guimarães, psicóloga e professora do curso de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), explica que o autocuidado é o primeiro nível de cuidado em termos de saúde mental, pois pressupõe que a pessoa comece a olhar com mais atenção para suas necessidades, desejos e crenças e amplie sua percepção sobre hábitos e atitudes que possam ser nocivos ou gerar bem-estar. 

“O autocuidado envolve uma decisão consciente de se cuidar e focar em comportamentos promotores de saúde, que podem ser, por exemplo, incluir na rotina atividades prazerosas, ter um tempo só para si, realizar atividade física, ter uma alimentação mais saudável e ampliar laços de amizade”, sugere a professora. 

Ela é uma das criadoras da cartilha Autocuidado em saúde mental para professores, junto com o Laboratório de Estudos sobre Subjetividade e Saúde no Trabalho (Lessat) e ao Laboratório de Estudos sobre a Finitude (LaFin) da UFC. O intuito da cartilha foi tornar acessível aos educadores um material informativo que pudesse estimular reflexões e novos aprendizados sobre ações e estratégias de promoção de bem-estar na vida cotidiana e no trabalho.   

A psicóloga Laís Guizelini acrescenta que “é possível pensar o cuidado consigo mesmo a partir da compreensão de que é necessário escutar-se para reconhecer o que nos faz mal, como cuidamos do nosso sofrimento, dos nossos momentos de prazer e das nossas relações e como lidamos com os conflitos”. 

A partir de perguntas como Será que me cuido só quando sobra tempo?, o educador pode descobrir, dentre as diversas formas de cuidado, qual é a mais apropriada para si. “Às vezes, poder ler um livro com calma, ir ao teatro ou simplesmente sentar-se à mesa com quem se ama pode ser um ato de cuidado. A questão é que esse ato deve partir de um desejo, e não de uma cobrança”, diz. 

Os especialistas, inclusive, reforçam que não existe uma “receita” a ser seguida. “Cada um deve buscar ações promotoras de bem-estar que façam sentido para a sua vida. Para uns, será ficar mais tempo com a família; para outros, começar a praticar corrida”, diz Renata. Ela destaca ainda que o autocuidado envolve também a percepção sobre situações sociais e de trabalho que causam sofrimento e desequilíbrio. Além disso, condições materiais, disponibilidade de tempo e acesso a serviços de saúde são determinantes no processo.  

Para Laís, falar sobre saúde mental é falar sobre o sistema econômico, social e político, ou seja, sobre como cada momento histórico define o que é saúde e doença, normal e patológico, regra e exceção. De acordo com a psicóloga, se o autocuidado for considerado apenas um conjunto de práticas individuais que visa o bem-estar, corremos o risco de que isso se volte contra nós. Isso porque, explica, a ideia de que ao realizar certas atividades consideradas saudáveis conseguiremos nos livrar do mal-estar que está diretamente relacionado a contextos econômicos, sociais e políticos pode fazer com que acreditemos que somos responsáveis por algo que é estrutural. 

“Por exemplo, se no seu dia a dia um educador precisa ver seus estudantes passando fome e a merenda não chega à escola, como ele deve se sentir?”, questiona. “Se não levarmos tudo isso em conta, passaremos a vida nos sentindo culpados e infelizes por não sermos felizes o tempo todo, já que somos levados a crer que a tristeza, a revolta e a raiva – ou seja, os afetos considerados negativos socialmente – devem ser evitadas e são necessariamente um sinal de adoecimento”, reforça.

 

Perguntas para refletir sobre autocuidado

Levando em conta que o autocuidado passa, em primeiro lugar, por escutar-se, é importante que os professores possam se fazer algumas perguntas (veja abaixo). “A partir dessas questões, os professores podem eleger o que faz sentido para cada um considerando seu contexto, sem sentirem a obrigação de seguir um roteiro”, indica Laís Guizelini, da Fundação Tide Setubal.

 

- O que me faz descansar?

- Como estou lidando com o que me faz sofrer?

- Considerando meu momento de vida, quais são minhas prioridades em relação ao cuidado comigo?

- Como cuido do meu corpo?

- Quais atividades proporcionam momentos de trocas afetivas com amigos, familiares e/ou minha comunidade?

- Quais são as opções que meu território proporciona para momentos de lazer?

Como cuidar da saúde mental na volta às aulas

Como todos sabem, o recesso escolar tem prazo de validade e logo o dia a dia nas escolas estará a todo vapor. Com isso, surge a dúvida: é possível manter uma rotina de autocuidado quando as aulas voltarem? Como manter esse equilíbrio? 

“O cuidado consigo deve ser constante, e não acontecer apenas nos momentos de descanso ou quando sobra tempo. Isso inclui olhar para nossa vida como ela é, e não como gostaríamos que fosse, mesmo que seja incômodo e doloroso”, diz Laís. Ela assegura que o cuidado com o outro também passa pelo cuidado consigo, de modo que poder reconhecer nossos conflitos, ter momentos de troca com as pessoas e não se deixar isolar pelo excesso de trabalho são pontos que precisam de atenção. “Não se esqueça e não se ausente de si, preste atenção nos afetos que aparecem, nos sinais do corpo, por exemplo, alterações no sono e na fome”, aconselha.  

Para que o autocuidado tenha sustentabilidade, segundo Renata, é necessário ainda que essa atitude se amplie e envolva a coletividade, isto é, grupos de professores e outros funcionários da escola, além da gestão escolar. “O cuidado com saúde mental precisa envolver também a gestão na busca por melhores condições de trabalho para professores e para a promoção de um ambiente psicossocial que seja de colaboração e apoio”, ressalta a especialista.

Dicas práticas para o bem-estar

A pedido da NOVA ESCOLA, os especialistas ouvidos nesta reportagem elaboraram dicas práticas para uma rotina de autocuidado. Tais sugestões podem ajudar como estratégias iniciais, mas cada educador deve considerar seu próprio contexto, considerando questões como território, raça, gênero e classe. Confira:

- Mantenha hábitos saudáveis, começando por atividades que são consideradas mais prazerosas e acessíveis ou que têm menor grau de dificuldade, tais como cuidar do sono e da alimentação e praticar atividades físicas. Ter momentos ou atividades ao ar livre e o hábito da meditação são práticas de autocuidado que também podem fazer diferença para manter o corpo e a mente em equilíbrio;

- Cultive relacionamentos de confiança e uma rede de apoio com familiares e amigos que ajudem a manter a atitude do autocuidado e construir uma visão de futuro com projetos de vida de longo prazo;

- Priorize aquilo que melhora o humor e ajuda a reduzir o estresse, seja brincar com os filhos, cuidar das plantas, passar tempo com animais de estimação ou cozinhar;

- Cultive o ócio. Ter também espaço para relaxar e “não fazer nada” são hábitos tão importantes quanto o trabalho e nos traz energia para tocar o dia a dia;

- Estabeleça limites ou uma melhor organização da jornada de trabalho, diferenciando tarefas prioritárias das menos urgentes e tentando fazer um planejamento semanal de atividades. Aqui, vale um lembrete: respeitar o período de férias é fundamental;

- Evite a “autoaceleração”, ou seja, o hábito de trabalhar em ritmo cada vez mais intenso para dar conta da realização de tarefas, usando horários que deveriam ser de descanso, como os fins de semana. Essa atitude pode levar à exaustão física e mental;

- Explore o território onde vive. A reunião de amigos na calçada, a festa do bairro, o equipamento público e as próprias escolas também são ou podem ser espaços promotores do cuidado de si e do outro;

- Converse sobre estratégias de cuidado com outras pessoas. Como diria Paulo Freire: “Ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo”;

- Tenha um olhar crítico para “receitas prontas”. É preciso olhar criticamente para as recomendações de autocuidado padronizadas, já que elas podem muitas vezes ser distrações ou tapa-buracos. Estar descansado ou saudável apenas para continuar a produzir não muda problemas estruturais.

 

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