Saiba como usar os sambas-enredo nas aulas de História
As composições podem ser uma boa ferramenta para ilustrar e provocar reflexões críticas sobre momentos históricos – para além da formalidade dos livros didáticos
POR: Rachel BoninoResgatar e olhar criticamente para momentos e a vida de figuras que foram determinantes para os rumos da História brasileira. Trazer temáticas ligadas à historiografia nacional dessa forma é uma tradição das composições de sambas-enredo apresentadas pelas agremiações carnavalescas do país – das mais conhecidas, inclusive internacionalmente, como as do Rio de Janeiro, até as menores, espalhadas pelas pequenas cidades do país.
Pode reparar: “Que a Lei Áurea tão sonhada/ Há tanto tempo assinada/ Não foi o fim da escravidão/ Hoje dentro da realidade/ Onde está a liberdade/ Onde está que ninguém viu”. Também: “Hoje vou colorir toda a cidade/ De alma pintada eu vou/ Sou da Corte a fantasia/ Trago o ‘novo mundo’ de esplendor”. Ou então: “Índios, brancos, negros/ Iniciaram a evolução/ E seus nomes e seus feitos/ A nossa história contarão/ Diogo Álvares Correia Caramuru/ Entregou seu coração/ À jovem índia Paraguaçu”. E ainda: “Era o sangue na mata, a revolta crescia/ Contestado em guerra, uma voz resistia/ A bela ‘rosa’ guia cada sonhador/ Visões de amor”.
A lista de sambas-enredo que já apostaram nesses assuntos é imensa e vai muito além dos destacados acima – respectivamente, trechos do samba da Mangueira (RJ, de 1988), Imperatriz Leopoldinense (RJ, de 1994), Rosas de Ouro (SP, de 1973) e Protegidos da Princesa (SC, de 2012).
Essa grande oferta de materiais ligados à uma festa popular – que une elementos de história, cultura, música, dança e artes visuais – é uma ferramenta e tanto para ilustrar, engajar e discutir a História para além da formalidade dos livros didáticos. Com o adicional de que esses fatos são contados com linguagem mais simples, coloquial e de forma tão diferente do rigor ao qual os alunos estão habituados que os tornam marcantes no ensino, avalia Helena Cancela Cattani, historiadora, arquivista e pesquisadora do Carnaval de Porto Alegre, que lecionou na rede estadual gaúcha até 2019.
Ela conta que passou a usar com mais frequência os sambas-enredo como ferramenta didática auxiliar no ensino de História a partir de 2000, quando os desfiles das agremiações daquele ano foram o pontapé para as celebrações dos 500 anos do Brasil. Cada escola do grupo especial do Rio de Janeiro foi convidada a contar momentos relevantes da historiografia.
“Percebi que as escolas estavam contando [esses fatos] de uma forma muito interessante e até trazendo passagens históricas que tradicionalmente não são contadas nos livros e sempre ficaram à margem da ‘História oficial’. Reconheci nos sambas um material muito potente que pode inclusive despertar fora do ambiente da sala de aula essa curiosidade do aluno de ir atrás e fazer conexões não convencionais”, diz.
A escola de samba como fonte histórica
Para entender melhor essa construção tão potente, é bom voltar no tempo. Foi a partir da década de 1970, com a entrada e a consolidação da figura do carnavalesco, associadas à profissionalização e ao crescimento comercial dos desfiles, especialmente no eixo Rio-São Paulo, que as escolas de samba passaram a ampliar as pesquisas ligadas aos temas escolhidos para o enredo, passando a combinar as percepções das comunidades aos estudos com fundamentação histórica trazidos pela academia, ou seja, por especialistas e estudiosos.
É por isso que, além de ser um recurso lúdico para apoiar e ilustrar passagens históricas em sala de aula, os sambas-enredo também oferecem muitas possibilidades de reflexão e discussão entre estudantes justamente pelo modo como tratam, enxergam e revisitam esses momentos.
Em sua dissertação de mestrado apresentada em 2012, a professora de História Fabiolla Falconi Vieira, que também é integrante da bateria da escola Os Protegidos da Princesa, de Florianópolis (SC), propôs discutir com os estudantes o samba-enredo como mais uma fonte a ser considerada, o que surpreendeu os alunos quando colocou em prática algumas das atividades sugeridas, antes da publicação do estudo.
“A ideia que a gente tem de passado é de um tempo estagnado. Só que, ao olhar para trás, é possível perceber outras nuances sob a ótica do presente. Trazer um samba-enredo atual que está falando ali na letra de algo que aconteceu coloca-o como uma fonte que representa também o presente, o momento em que foi criado. E isso às vezes 'dá uma embolada' na cabeça dos estudantes”, conta Fabiolla, que atualmente leciona para turmas dos Anos Finais do Fundamental e do Ensino Médio na EEB Professora Laura Lima, em Florianópolis.
Segundo ela, a discussão estimula os alunos a pensar sobre o que foi considerado pela agremiação no momento de materializar o samba-enredo, ou seja, o recorte escolhido para contar determinada passagem histórica. “Estimulo os alunos a analisar a letra, o uso que a escola faz das palavras, o momento em que foi construído o enredo, quais opções foram feitas. Tudo para que eles possam compreender um pouco que a escola de samba, enquanto instituição, também é um sujeito histórico, que está ali marcado pelo tempo, pelo momento, por questões comerciais. Então, a produção é feita por escolhas – como as outras fontes históricas também são, aliás”, explica.
Para Fabiolla, considerar uma fonte histórica tão atual e que se apoia na música ajuda a quebrar a lógica do ensino de História calcado apenas na cronologia dos fatos.
Em sala de aula: perspectivas local e nacional
Em sua dissertação O samba pede passagem: o uso de sambas-enredo no ensino de História, Fabiolla chama a atenção para a possibilidade de buscar conexões entre contextos históricos e a realidade dos alunos por meio das criações carnavalescas locais. Uma atividade realizada por ela usou dois sambas-enredo de agremiações sediadas em Florianópolis, apresentados na avenida no ano de 2012: o da escola Os Protegidos da Princesa, que destacou os cem anos da Guerra do Contestado, em Santa Catarina, e o da Escola de Samba Embaixada Copa Lord, que trouxe aspectos históricos da Rua Felipe Schmidt e sua relação com o centro da capital catarinense.
Na sequência didática, ela propõe a análise em sala de aula de fontes históricas escritas, orais, iconográficas e musicais, incluindo os sambas-enredo, para comparar como cada uma delas destaca um mesmo momento histórico. “Um ponto central foi colocar em discussão que, ao analisar uma fonte, mesmo sendo diferente daquelas presentes no ensino tradicional, os alunos também estão aprendendo”, diz.
Além disso, Fabiolla conta que, a partir da atividade, também foi possível fazer conexões e contextualizações entre perspectivas local e nacional, como os impactos regionais da Guerra do Contestado com o início da República e a relação entre a questão da sociabilidade na Rua Felipe Schmidt com a ideia de modernidade e crescimento das cidades brasileiras.
Antes da apresentação do estudo, a professora já havia aplicado as atividades com estudantes do 9° ano, mas afirma que ela também pode ser adaptada para outros anos e com outros sambas-enredos ou até outras fontes. “A ideia principal é que os estudantes compreendam como se produz uma narrativa histórica e percebam que somos confrontados com essas narrativas o tempo inteiro. Usei o samba-enredo, mas poderia ser usada uma telenovela, um filme, um videogame”, lista. “Estamos imersos em uma série de narrativas que retratam o passado de uma forma que nem sempre a historiografia retrata.”
Samba-enredo e o recorte étnico-racial
Os sambas-enredo também podem ser uma ferramenta interessante para abordar questões ligadas à memória e à construção das identidades negras brasileiras – temáticas que inclusive são obrigatórias desde 2003, com a aprovação da Lei 10.639, que determinou a inclusão nos currículos oficiais do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira.
O contato com o samba desde a infância, passada no bairro de Padre Miguel, no Rio de Janeiro (RJ), comunidade que mantém laços fortes com o Carnaval, inspirou o professor de História Fabrício Castilho a unir samba e temática racial como fio condutor para algumas aulas e para sua dissertação de mestrado, Samba de escola: o uso dos conceitos de memória e identidade para a educação das relações étnico-raciais”, que também virou livro. O objetivo era analisar em sala de aula sambas-enredo produzidos por agremiações do Rio de Janeiro em várias décadas.
“Pensando as escolas de samba como entidades que historicamente expressam os saberes e as formas de ser, de se enxergar e de se comportar das comunidades negras, os sambas-enredo seriam, então, fontes relevantes e particularmente úteis na recuperação da memória da negritude”, analisa o docente, que atualmente leciona na EE Irineu José Ferreira e no CIEP 223 Olímpio Marques, ambos localizados no bairro de Campo Grande, no Rio de Janeiro.
Dividida em três eixos, Fabricio sugere uma sequência pedagógica que prevê a análise de quatro sambas-enredo selecionados, complementados por outras fontes, como fotografias e recortes de jornais para destacar um período histórico:
No Continente africano
A jornada começa com A visita de Ony de Ijé ao Obá de Oió, da Unidos do Cabuçu, de 1983, para falar da África pré-colonial, antes dos movimentos escravagistas.
Tráfico negreiro
A atividade segue com Cem anos de liberdade, realidade ou ilusão?, da Mangueira, de 1988, que apresenta a vinda de negros escravizados para o Brasil.
Identidade negra
A proposta é concluída com A grande constelação das estrelas negras, da Beija-Flor, de 1983, e Ganga-Zumbi, expressão de uma raça, da Unidos da Tijuca, de 1996, com o intuito de discutir a construção de uma identidade negra brasileira.
Outros desdobramentos
Para Fabricio, o uso de sambas-enredo rende muitos outros desdobramentos que podem ser expandidos em sala de aula para amplificar as reflexões ligadas ao Carnaval e à História, como as revisões de termos aplicados às letras, por exemplo. Os sambas-enredo, afirma ele, têm a capacidade de mostrar como o discurso histórico está sendo apropriado pelas massas. “Hoje, na academia, não se fala mais ‘escravos’, mas ‘escravizados’. Mas será que lá na comunidade, na favela ou na quebrada, estão falando desse jeito? É uma questão conceitual, mas como é que essa História produzida aqui está sendo vivida nas comunidades? Como é que ela está sendo tratada pelas escolas de samba, que são instituições que, em certo grau, representam essa memória coletiva da comunidade?”, reflete.
Outra sugestão interessante, citada por Fabricio, é avaliar em sala de aula o quanto, de enredo em enredo, as escolas vão mudando a visão sobre personagens e a luta dos negros. Para ilustrar: enquanto a composição da Imperatriz Leopoldinense (RJ) de 1989 exaltou a figura da Princesa Isabel (“Pra Isabel, a heroína/ Que assinou a lei divina”), anos depois, o samba-enredo da Mangueira (RJ), de 2019, já tirava os holofotes dessa figura histórica para exaltar outra (“Brasil, o teu nome é Dandara/ E a tua cara é de cariri/ Não veio do céu/ Nem das mãos de Isabel/ A liberdade é um dragão no mar de Aracati”).
“Até a mesma escola de samba, de um ano para o outro, pode mudar seu discurso, sua visão histórica, digamos assim. Uma série de questões podem influenciar – de patrocínio ou mesmo direcionamentos políticos. As escolas de samba são órgãos marcados pela negociação”, avalia o professor.
Blocos, bate-bola e muita festa
Como espetáculo multifacetado que é, toda a festa dos desfiles de Carnaval, e não apenas os sambas-enredo, pode colaborar para levar mais discussões ao ensino de História. O professor João Gonzalez Moreira quis trazer o tema da intolerância religiosa para a sala de aula para explorar o conceito de interculturalidade. Para isso, colocou lupa sobre o enredo Só com a ajuda do santo, da Mangueira (RJ), de 2017, assinado pelo carnavalesco Leandro Vieira. “Me interessava mais a pesquisa por trás do samba, e não apenas o samba-enredo em si”, conta.
O caminho pedagógico proposto consta da sua dissertação de mestrado Só com a ajuda do santo. O enredo como aliado para uma proposta de ensino intercultural de História. Além de ampla análise, que passa pelas fichas técnicas da letra, das fantasias e das alas, a proposta também recomenda a avaliação das páginas do Abre-Alas apresentado pela agremiação, que é o livro com registro e justificativa de todas as opções feitas pelo carnavalesco para explorar o tema escolhido naquele ano, e entregue pelas escolas à Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa).
“Ao acessar todo esse material, é possível entender um pouco mais sobre a religiosidade do brasileiro e até mesmo justificar esse DNA religioso como fruto do encontro de culturas”, explica João.
Para o educador, usar o Carnaval como mote de atividades na escola também aproxima os estudantes das especificidades dessa manifestação cultural, até para preservar a memória. Aliás, João reforça que o leque de possibilidades pode ser ainda maior se o professor optar por associar o ensino de História às manifestações carnavalescas que não necessariamente estão ligadas aos desfiles das escolas, mas também aos blocos de rua, ao Carnaval de bate-bola e outras manifestações espalhadas país afora.
“É gratificante quando a gente consegue mostrar ao aluno que, independentemente da festa e da possibilidade de se divertir, uma escola de samba [e o Carnaval] pode oferecer essa oportunidade de aprender.”
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