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Independência do Brasil: a pátria além do hino e da bandeira

Documentos e narrativas ajudam a formar um olhar crítico sobre a história do país

POR:
Bruna Escaleira, Pedro Annunciato, NOVA ESCOLA
Documentos e narrativas ajudam a formar um olhar crítico sobre a história do país. Ilustração: Ariel Fajtlowicz
O homem por trás da espada
Embora na iconografia ele apareça como herói nacional e grande líder militar, vale ressaltar que D. Pedro I era um chefe de Estado com imensas dificuldades de governar. Do ponto de vista institucional, o imperador tinha somente o Poder Moderador, cuja atribuição era mediar conflitos. Porém, na prática, acumulava também o Poder Executivo, responsável pelas decisões administrativas.

A edição de 17 de agosto de 1822 do Correio do Rio de Janeiro trazia na primeira página o Manifesto do Príncipe Regente do Brasil aos Governos e Nações Amigas. No documento, D. Pedro I discorria sobre as razões do rompimento definitivo que ocorreria semanas depois, em 7 de setembro. O então príncipe regente do Brasil criticava a ambição portuguesa na exploração das terras descobertas por Cabral, os pesados impostos da coroa sobre a extração do ouro e as "leis tirânicas" que amarravam a colônia a um severo sistema econômico de servidão à metrópole.

Os tempos eram de agitação: proprietários rurais, burocratas, membros da Justiça e comerciantes que haviam se beneficiado da recente abertura dos portos pressionavam pela independência, revoltas separatistas eclodiam por toda a colônia e a escravidão ainda era realidade para mais de um milhão de negros em 1819.

Diante da quantidade e da complexidade de atores e processos, orientar os alunos para ter uma visão crítica dos acontecimentos não é fácil. A escola tende a ensinar uma história cívica, herança da Educação nacionalista do século 19, quando o Brasil Império buscava construir sua identidade. Por isso a bandeira e o grito às margens do Ipiranga são referências do tempo em que os atuais professores de História sentavam nos bancos escolares e marcam o imaginário coletivo, exigindo desmistificação. "Hoje, o objetivo deve ser entender como as narrativas da independência foram construídas e chegaram até nós", diz Juliano Sobrinho, professor de História na Universidade Nove de Julho (Uninove), em São Paulo.

Com essa preocupação, o professor Luiz Paulo Lima analisou diversos discursos antigos e atuais com a turma do 8º ano da EM Ceará, na zona norte do Rio de Janeiro.

As narrativas da História

Documentos e narrativas ajudam a formar um olhar crítico sobre a história do país. Ilustração: Ariel Fajtlowicz
Independência para quem? Apesar do clima de festa e libertação de alguns registros históricos, a vida no Brasil Império era marcada pelo autoritarismo. Após a independência, a escravidão foi mantida. Não havia liberdade de imprensa, pouquíssimas pessoas tinham direito a voto e a relação entre os poderes era tensa. Em 1824, D. Pedro I dissolveu a Assembleia Constituinte e outorgou a primeira Constituição brasileira.

O docente começou projetando uma série de pinturas que retratam a América portuguesa e a família real, que vivia no Rio de Janeiro desde 1808. Além de obras clássicas, como Independência ou Morte (1888), de Pedro Américo (1843-1905) e A Proclamação da Independência (1844), de François-René Moreaux (1807-1860), Lima escolheu aquarelas menos conhecidas. Jovens Negras Indo à Igreja para Serem Batizadas (1821) e Tribo Guaicuru em Busca de Novas Pastagens (1823), ambas de Jean-Baptiste Debret (1768-1848), mostram a situação de negros e índios. Também foram analisados diferentes retratos de D. Pedro I.

"Que tipos de pessoas estão representados? Em que lugares? Como são suas vestimentas? O que fazem? A partir dessas perguntas básicas, os alunos conseguem descrever as imagens e notar diferenças entre elas", conta Lima. "Também lemos artigos de jornais da época para observar que não existe uma única versão dos fatos", completa.

O professor acrescentou narrativas concebidas no presente, como os sambas-enredo da Imperatriz Leopoldinense: João e Marias (2008) narra a chegada da família real ao Brasil; Leopoldina, a Imperatriz do Brasil (1996) fala sobre a princesa austríaca que se casou com o imperador. "Os alunos se identificam muito com essa escola de samba. Muitos moram próximo à quadra e os pais desfilam por ela no Carnaval", comenta.

Divididos em grupos, os estudantes compararam as pinturas antigas aos discursos dos sambas sobre os mesmos acontecimentos. Puderam pesquisar mais detalhes em livros didáticos, dicionários e na internet e, em seguida, apresentaram as conclusões à sala.

Durante a atividade, notaram os diferentes pontos de vista registrados nos materiais analisados. Um exemplo: o samba-enredo de 1996 dá a entender que a Imperatriz Leopoldina influenciou D. Pedro I a proclamar a independência, mas ela nem sequer aparece nos quadros da época ou nos artigos de jornais analisados. "Se o professor proporciona uma reflexão sobre como a história é construída, os alunos são levados a criticar os documentos. Não é interessante usá-los apenas para ilustrar as falas", aponta Sobrinho.

O imaginário da independência

Documentos e narrativas ajudam a formar um olhar crítico sobre a história do país. Ilustração: Ariel Fajtlowicz
Identidade nacional Quem vivia aqui no século 19 não tinha a percepção de que era brasileiro, já que ainda não existia um estado nacional. Vale mostrar aos alunos que boa parte do interior do país era desconhecida e que o Brasil Império teve que se esforçar para manter sua unidade territorial frente a movimentos separatistas. Esse plano de aula propõe uma visão da independência como parte de um processo histórico maior.

Levante a espada quem nunca ouviu falar que a bandeira brasileira traz o verde das nossas matas e o amarelo do nosso ouro ou jamais celebrou o 7 de Setembro no pátio da escola. No Ensino Fundamental 1, as aulas de História ainda são muito atreladas às datas comemorativas. "Só porque os pequenos memorizaram alguns fatos não quer dizer que se tratou do tema da independência do Brasil adequadamente", alerta Daniel Helene, coordenador pedagógico do Centro de Estudar Acaia Sagarana. Além disso, as crianças menores têm dificuldade de entender conceitos complexos como o que significa deixar de ser colônia.

Então, como trabalhar esse assunto? "O maior cuidado é não dar um sentido de louvação, mas de compreensão desses símbolos nacionais. O olhar sobre eles pode ter mais historicidade", sugere Lucas Monteiro, professor de História da Escola Santi, em São Paulo.

Uma possibilidade é partir do imaginário dos alunos. Francisco Lisboa, docente da EM Professor Luiz Costa, em Fortaleza, adotou essa linha com a turma do 6º ano, recém-chegada do Ensino Fundamental 1. Ele explica que, nas séries iniciais, trabalha-se muito a questão das representações sociais ligadas ao conceito de autoridade. "É preciso respeitar o horizonte imaginativo. Inicialmente, a criança quer ser o imperador, montar o cavalo, usar aquelas roupas. Aos poucos, isso vai mudando", diz Lisboa.

Essa abordagem desmistifica a figura do governante ao enfatizar suas funções institucionais. O docente explica as tarefas burocráticas e o papel político que D. Pedro I cumpria, comparando-os aos cargos e poderes políticos do atual sistema de governo brasileiro. "O grande objetivo não é dizer ao aluno que ele está equivocado, mas trabalhar elementos para que possa construir uma imagem dos personagens históricos mais próxima da realidade", comenta o professor.

"As crianças veem a batalha do quadro do Pedro Américo e perguntam: ?Mas Dom Pedro precisava mesmo de uma espada??. Explico que existe um lado simbólico na arte e que aquela pintura é uma representação", conta Lisboa. Esse tipo de reflexão, em que os alunos procuram compreender as motivações de quem fazia o registro histórico, ajuda a dissolver estereótipos. "É importante que os estudantes vejam que a gente precisa de documentos para construir o conhecimento de História, que façam esse ?tatear? histórico e entendam que uma pintura, por exemplo, é uma recriação do artista", diz Helene.

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