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Como unir futebol e literatura nos Anos Finais

Os campeonatos podem ser uma boa oportunidade para trabalhar o futebol em textos literários e provocar debates atuais com a turma

POR:
Ana Cláudia Santos
Além de oportunizar a leitura de diferentes autores e o trabalho com variados gêneros textuais, o futebol também pode fomentar o debate sobre questões importantes como gênero, racismo e cultura de paz. Foto: Getty Images

A escalação está completa e nosso time entra em campo! Entre dribles e jogadas ensaiadas, nossos artilheiros emplacam uma goleada literária. Porém, você deve estar se perguntando: que história é essa? Pois bem, Luis Fernando Veríssimo em sua crônica intitulada Ser Brasil, já afirmava que “a Copa é um grande negócio e um grande acontecimento cultural internacional e coisa e tal, mas também não é só isso. Mexe com essa coisa indefinível que é a relação das pessoas com os símbolos dos seus afetos, que podem ser só um escudo e uma camisa, mas representam muito mais, seja lá o que for.” 

literatura também toca nossa alma, nossos afetos e “muito mais, seja lá o que for.” Por isso, convido você, colega professor, a aproveitar a realização da Copa do Mundo de Futebol Feminino, na Austrália e Nova Zelândia, para ler as entrelinhas dos delírios futebolísticos e perceber como muitos enredos foram tecidos no gramado.

Copa do mundo feminina e a questão de gênero no futebol

Para além das quatro linhas, há muitas mulheres dando show de bola, protagonistas de suas próprias histórias, mas também, do gingado que só acontece nos campos de futebol, sem impedimento para as conquistas femininas que saltam dos bastidores e ganham os estádios. 

O Gol de Budi, da jornalista Maíra Lemos, é a história simples de uma menina que fez parte da “turma dos peladeiros do bairro” e provou que ser menina é muito mais do que não dar ouvidos a quem torce o nariz quando se fala em mulher e futebol; é não deixar que a modalidade seja apagada pela intransigência de uma sociedade que escreveu em algumas de suas páginas cenas tristes e negligentes com a canhota feminina. 

Para ampliar seu acervo sobre as histórias das mulheres no esporte, querido colega, acesse a página do museu do futebol e leia histórias lindas contadas na perspectiva feminina. Outra opção para reforçar que futebol também é coisa de menina, é trabalhar com o podcast Pé na Bola que contextualiza e valoriza o empoderamento feminino no esporte. 

Deixe que essa ideia viralize e elabore com a turma um manifesto, um dos gêneros textuais que proporciona participação ativa nas questões sociais, políticas e culturais de uma época. Está em sua essência a argumentação, a capacidade de relacionar a historicidade à intencionalidade discursiva. Para isso, resgate vozes femininas que ganharam altivez com a bola pé, mas também, registre o silenciamento, consequência de um decreto-lei, de 1941, que proibia as mulheres de praticar determinados esportes, como o futebol. Identifique enunciadores e enunciatários, expressando sentimentos e ideias. 

Futebol e racismo

Por outro lado, no livro O Negro no Futebol Brasileiro, o jornalista Mario Filho faz considerações sobre as transformações pelas quais a sociedade brasileira passou e de que forma o futebol serviu como instrumento para que fossem quebradas barreiras entre as elites e as massas populares. As portas dos grandes clubes estavam fechadas para os meninos popularmente chamados de “moleques” que perambulavam pelas ruas.

As academias em que se ensinava o futebol de fato tem origem na geral, o que evidenciava as diferenças sociais e econômicas, assim como o campo cercado e a pelada que era jogada em campo sem grama.

O esporte vindo da Inglaterra trouxe diferenças que se acentuam ainda hoje quando os noticiários são invadidos por informações que revelam cenas preconceituosas e de racismo. Mas, em nossas salas de aula, podemos usar a literatura para sintonizar nossos alunos às questões sociais que estão latentes e precisam de um olhar que não seja indiferente à realidade, mas que, apesar das diferenças de interesse ou de classe social, esteja atento à dignidade e aos valores morais e éticos. 

É sabido que a história do futebol e do samba se misturam e se tornam populares no Brasil. O esporte, originalmente praticado pelas camadas mais abastadas, seguiu firme cruzando os caminhos do samba e das localidades periféricas. Aproveite essa mistura para trabalhar questões de relevância social por meio da canção Meio de Campo, de Gilberto Gil. 

Apresente à turma o refinado jogador Afonsinho, citado na letra, que também foi um médico politizado e militante que lutou contra a ditadura militar e pela Lei do Passe Livre que daria liberdade aos jogadores para que pudessem escolher os clubes em que  gostariam de jogar. Compare essa legislação com a Lei do Passe, na África do Sul, que exigia que negros portassem uma caderneta dizendo aonde poderiam ir, entre 1948 e 1994, período do Apartheid sul-africano.

Repare que Gil dialoga com o atleta: Prezado amigo Afonsinho/ Eu continuo aqui mesmo/ Aperfeiçoando o imperfeito. Peça aos alunos que busquem inspiração nos jogadores de hoje e escrevam também a eles versando sobre as imperfeições que merecem correção no convívio em sociedade. Qual gol de placa merece ser marcado? Se julgar adequado, dê uma melodia ao texto e grave com a turma para que a voz antirracista seja ouvida. 

Debate sobre a paz no futebol

O  futebol é a paixão nacional, foi, é e será a ambrosia dos deuses manipulada na Terra, como já afirmou Monteiro Lobato. Escritor apaixonado pelo futebol, ele nos ajuda a entender melhor o pensamento do início do século XX, revelando como a bola que rolava nos gramados começava a impactar a segregação entre as classes sociais. 

As questões políticas estavam sendo ofuscadas pelo eminente esporte e despertando maior interesse da população. Entre a nação verde-amarela, os heróis futebolísticos se tornam também símbolos da pátria, uma verdadeira “paulicéia desvairada” que rompe as fronteiras elitistas e coloca em evidência aspectos identitários e culturais do Brasil. 

Minha sugestão é a leitura e análise do conto de Lobato O 22 da Marajó, narrativa que nos provoca uma reflexão sobre os delírios coletivos em favor da guerra que é travada nos campos, como as equipes se tornam verdadeiras nações. O esquema tático para explorar o conto é a comparação com os versos de um outro amante do esporte, João Cabral de Melo Neto, que traduziu em palavras a emoção do coração pulsando quando a bola rola em campo e as gingas dos craques no ritmo dos versos do poema O futebol brasileiro evocado da Europa, mostrando que os jogadores tratam a bola como a uma amiga e conseguem dominar suas reações imprevisíveis, sabem ser maliciosos e espertos. Os versos revelam uma nova imagem do brasileiro segregada pelo futebol.

Pela comparação, os alunos irão perceber que há diferentes formas de viver a emoção que o futebol proporciona ao brasileiro e como é possível construir narrativas partindo de pontos de vista diferentes. Bola dividida, hora de contar, a exemplo dos ilustres autores estudados, como a torcida é importante para construir a imagem de um time que é, na verdade, uma nação. Proponha que a narrativa se assemelhe àquelas que costumeiramente acompanhamos durante as partidas, mostrando que a prática do esporte pode contribuir para a propagação do respeito às diferenças e propagar a paz.

O esporte e a linguagem não verbal

A literatura, assim como o futebol, também está relacionada às questões históricas e sociais de seu tempo, sendo uma possibilidade de estarmos melhores no mundo e sermos melhores para ele também. Portinari retrata na pintura Futebol (1935) sua cidade natal e o futebol como arte. A obra pode ser visitada nesta página, espaço em que também estão disponíveis atividades online. 

Situe a obra para que os alunos identifiquem a vivência retratada por Portinari, evidencie a felicidade das crianças; leve a turma a refletir sobre a infância, a cidade natal e a manifestação popular transmitida pela metáfora das crianças usando roupas desgastadas e sujas.

Ler imagens é também um exercício valioso que devemos praticar em nossas aulas, construa com sua turma um mosaico que possa representar o futebol como identidade da cultura brasileira.

Nosso pontapé inicial foi dado! Entre em campo, faça seu time vibrar e, depois, é só correr para o abraço. Estou na torcida, até a próxima!

Ana Cláudia Santos é professora de Língua Portuguesa na Educação Básica da rede estadual de ensino há 20 anos e mestranda em Educação Profissional e Tecnológica. Foi vencedora do Prêmio Educador Nota 10, promovido pela Fundação Victor Civita, nas edições de 2014 e 2018, com os trabalhos O Povo Conta e O (Ser)tão de Cada Um. Recebeu a medalha Ordem do Mérito Educacional (MEC) – Grau de Cavaleiro e o troféu Capitão-Médico João Guimarães Rosa, da Academia de Letras da PMMG.