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Primeira infância é período-chave para o desenvolvimento infantil

Os estímulos recebidos pelas crianças e as experiências que elas vivenciam durante essa fase são determinantes para que alcancem todo o seu potencial

POR:
Paula Medeiros
Os professores podem estimular as crianças a partir de vários tipos de atividade, envolvendo música, dança, leitura, encenações, faz-de-conta, artes visuais, desenho, pintura e até investigações na natureza; Foto Fernanda Luz/NOVA ESCOLA

A primeira infância, que vai dos zero aos seis anos de idade, é uma etapa fundamental no desenvolvimento das crianças, caracterizada por grandes transformações físicas, emocionais, cognitivas e sociais. Dentro desse intervalo, o período que se estende da gestação aos três primeiros anos de vida é chamado de primeiríssima infância. 

Pesquisas na área de neurociência apontam que esses três anos iniciais são os mais relevantes para o desenvolvimento do cérebro. Condições adequadas de nutrição, cuidado, afeto, estímulos e interações durante essa fase permitem que as funções cerebrais se desenvolvam e a criança alcance todo o seu potencial. "Estudos mostram que nos seus primeiros anos, os bebês chegam a formar mais de um milhão de conexões cerebrais por segundo", diz Karina Fasson, gerente de políticas públicas na Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, organização social que atua em prol da primeira infância. 

Até os seis anos, de acordo com a neurociência, desenvolvemos 90% das nossas conexões cerebrais. É também nessa etapa que começamos a interação com o mundo, formando bases para o aprendizado e para o amadurecimento de habilidades essenciais. "São fases superimportantes para que o desenvolvimento de uma pessoa seja pleno e saudável. Falamos de ganhos motores e cognitivos, que têm relação com a capacidade de memória, de atenção e de resolver problemas, e com as habilidades emocionais, afetivas e as sociais, de relacionamento interpessoal", explica Maria Beatriz Linhares, professora do Departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP) e membro do NCPI (Núcleo Ciência pela Infância).

Nesse contexto, o papel da escola é fundamental para potencializar o desenvolvimento das crianças em cada uma das fases. "Elas aprendem, sobretudo, brincando e interagindo. Os professores podem estimular as crianças a partir de vários tipos de atividade, envolvendo música, dança, leitura, encenações, faz-de-conta, artes visuais, desenho, pintura, investigações na natureza e assim por diante", destaca a professora.

Investir na primeira infância traz benefícios para toda a sociedade

Retorno social e econômico segue repercutindo na vida do indivíduo e impacta a sociedade como um todo

Além das vantagens para o desenvolvimento individual, investir na primeira infância também representa retorno social e econômico. O economista norte-americano James Heckman, um dos ganhadores do prêmio Nobel na área econômica no ano 2000, conduziu uma pesquisa que acompanhou ao longo do tempo várias crianças com e sem acesso a um ensino de qualidade. O objetivo era ver os impactos da Educação no curto, médio e longo prazo. "Os resultados desse trabalho randomizado mostram que cada dólar investido traz um retorno social de sete dólares”, aponta Karina Fasson, da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal. "As ações voltadas para o começo da vida têm o poder de minimizar a carga que as demais políticas públicas carregam." Isso quer dizer que investir em Educação na primeira infância é uma estratégia eficaz para reduzir os custos sociais no futuro.

Karina detalha que uma Educação Infantil de qualidade passa por infraestrutura, interações, práticas pedagógicas, currículo, equipe e gestão. "A escola também precisa ter qualidade, com instalações adequadas, materiais apropriados e profissionais capacitados. A relação é direta: uma escola sem qualidade compromete o desenvolvimento das crianças."

Ela diz que, quando se pensa em políticas públicas, esse retorno é mais significativo na fase pré-escolar do que em qualquer outra etapa da vida. “No longo prazo, quem é mais estimulado tem maior aprendizado e maior progressão escolar, e isso implica na inserção no mercado de trabalho, nos salários, em menor envolvimento em situações de vulnerabilidade, como criminalidade e drogas. E tem consequências também na saúde das pessoas”, ressalta. “Isso tem efeito não só na trajetória educacional, mas segue repercutindo na vida do indivíduo e impacta a sociedade como um todo.

O papel da escola no desenvolvimento infantil

Maria Beatriz explica que o desenvolvimento de uma criança depende de três fatores: genéticos, de maturação e de estimulação ambiental. Em relação aos estímulos, as pessoas que estão próximas da criança, sobretudo a família e a escola, são determinantes. “A criança precisa de creche [destinada à faixa etária até 3 anos] e de pré-escola [para 4 e 5 anos]. A Educação Infantil é primordial, pois é quando ela começa a experimentar o mundo para além do núcleo familiar, faz amigos, aprende a conviver com as diferenças e realiza várias descobertas em todas as áreas", salienta.

Para Maria Paula Zurawski, doutora em Educação, professora do curso de Pedagogia do Instituto Superior de Educação Vera Cruz, em São Paulo (SP), e formadora de professores em redes públicas e particulares de todo o país, uma boa Educação é aquela que reconhece as crianças, desde que são bebês, como sujeitos. A escola é um espaço que deve ser agradável, acolhedor e pensado para elas e que as veja como centro e como razão de sua natureza e organização. “Tempos, espaços, materiais e interações devem considerar os modos de ser e de estar das crianças. A escola é um lugar de encontro e deve oferecer oportunidades de convivência, de igualdade, de diversidade", defende.

Ela acredita que é fundamental os educadores conhecerem as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI) e a própria Base Nacional Comum Curricular (BNCC). E, com o apoio da equipe gestora e de outros professores e professoras, devem saber organizar ambientes e situações de aprendizagem que respeitem os interesses das crianças e que estejam necessariamente estruturados em torno dos eixos das interações e das brincadeiras. 

Ela dá um exemplo: "Curiosas e atentas ao que acontece no mundo, as crianças pequenas se interessam pela escrita e pela leitura desde muito cedo”, diz. Assim, “o interesse pela linguagem deve ser ampliado para a leitura de obras de qualidade, exigindo que a professora seja não apenas uma excelente leitora, mas uma curadora interessada, e coloque as crianças em contato com situações de linguagem e de leitura que possibilitem aprender sobre o sentido de ler e escrever”.

No caso dos bebês, as interações e as brincadeiras também devem ser priorizadas quando se organiza o ambiente do berçário, que precisa garantir a movimentação livre e segura das crianças. "Uma educadora de bebês e crianças pequenas deve compreender que, durante os três primeiros anos de vida, as crianças realizam conquistas importantes, por exemplo, com relação à linguagem e ao movimento”, destaca. “Acompanhar essas conquistas faz parte dos saberes altamente qualificados do profissional que trabalha com essa faixa etária que, até há pouco tempo, não era valorizado. Mas hoje são reconhecidos como uns dos mais importantes na constituição da subjetividade dos pequenos", completa. 

Respeito aos saberes das crianças

No magistério há 42 anos, a professora Mirtes Ramos dos Santos Melo, da rede municipal de Recife (PE), exerceu diferentes funções, mas sempre atuou em creches. Para ela, uma Educação de qualidade deve partir do respeito e do afeto

"É preciso respeitar as crianças e os saberes que elas trazem. Elas devem ver o mundo como um campo de possibilidades e usar seus corpos e a imaginação para construir um universo próprio, em que caixas podem se transformar em casas, tambores ou até mesmo bicicletas, por exemplo. Quero criar memórias afetivas, construídas a partir de experiências significativas e transformadoras”, afirma ela, que também é especialista em ensino de arte, formadora da NOVA ESCOLA e ganhadora de vários prêmios, entre eles o Educador Nota 10.

Para exemplificar, Mirtes conta de uma instalação que fez com lanternas e bichinhos de plástico em sala de aula para trabalhar os conceitos de claro e escuro e luz e sombra com seus alunos, que têm cerca de dois anos. "Ao entrar na sala, um deles chamou a atenção para o foco de luz na parede, dizendo que parecia os olhos de um monstro. Então, as crianças começaram a brincar de aproximar e afastar a luz, e assim o monstro se movimentava”, relata. “Começaram então as teorias: ‘quem havia faltado tinha sido capturado e estava preso na parede’. Eu não previ isso no planejamento, mas foi a partir do que elas trouxeram que comecei a instigar a curiosidade: como era o monstro, como eram seus olhos, ele tinha pernas e braços e como elas poderiam salvar os ‘sequestrados’? No fim, cada uma desenhou o ‘seu’ monstro."

Na opinião da professora, esse tipo de estímulo ajuda no desenvolvimento integral das crianças, porque "ali há espaço para a criatividade, a originalidade, a questão do movimento e a oralidade, entre tantas outros aspectos que estão sendo desenvolvidos", observa. "O ‘monstro’ se tornou um catalisador para a imaginação, levando cada um a encontrar sua própria maneira de superá-lo."

Garantias legais de desenvolvimento 

De acordo com  o Censo de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), quase 9% da população brasileira é formada por crianças de até seis anos de idade, o que representa pouco mais de 18 milhões de habitantes em um universo de 212 milhões de brasileiros. As garantias legais para o desenvolvimento dessa faixa etária são asseguradas por diversas legislações, como a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), a Política Nacional de Educação Infantil (PNEI) e o Marco Legal da Primeira Infância.

O artigo 227 da Constituição Federal indica que crianças e adolescentes são prioridade absoluta e devem ter assegurados o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação e ao lazer, entre outros. O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal nº 8.069, de 13 de julho de 1990), que regulamenta o artigo 227 da Constituição, afirma que as crianças e os adolescentes são sujeitos de direitos, em condição peculiar de desenvolvimento, que demandam proteção integral e prioritária por parte da família, da sociedade e do Estado. 

Já o Marco Legal da Primeira Infância, de 2016, estabelece princípios e diretrizes para a formulação e a implementação de políticas públicas voltadas a crianças dessa faixa etária para garantir seu desenvolvimento integral. Ou seja, o documento determina que estados e municípios desenvolvam planos para a primeira infância.

Todos esses instrumentos legais visam garantir que as crianças tenham acesso a ambientes seguros, que promovam seu desenvolvimento pleno. “Nossos documentos são extremamente avançados, humanos e democráticos, porque a concepção de ser humano que está posta ali é pautada por princípios éticos e políticos que estão na base da construção de relações respeitosas e amorosas, fundamentais para uma vida digna", comenta Maria Paula.

Karina considera que esses instrumentos, por si só, não garantem a efetividade das políticas, mas são um início. “Se queremos que a situação das crianças melhore, os entes federados precisam ter um diagnóstico para propor linhas de ação e uma meta de onde se quer chegar em determinado intervalo de tempo."

Impactos das desigualdades

Ainda que seja um direito constitucional, o pleno desenvolvimento da primeira infância é altamente impactado por desigualdades socioeconômicas, etnico-raciais, regionais e de gênero. “A lei diz que a criança deve estar na pré-escola. Mas a creche nem sempre tem vagas suficientes", diz Maria Beatriz. 

No Brasil, a creche não é uma etapa obrigatória, mas é um dever do Estado. O país possui mais de 600 mil crianças fora de creches, segundo o levantamento “Retrato da Educação Infantil no Brasil - Acesso e Disponibilidade de Vagas”. Os dados foram divulgados em agosto de 2024 pelo Ministério da Educação (MEC) e o Gabinete de Articulação para a Efetividade da Política da Educação no Brasil (Gaepe-Brasil).

Conforme a pesquisa, em 44% dos municípios brasileiros há crianças aguardando por uma matrícula, a maioria delas com até dois anos de idade. Além disso, mais de 78 mil crianças (8% do total) com idade entre quatro e seis anos não frequentam a pré-escola, e metade delas está nessa situação porque a rede não possui vagas suficientes. O Plano Nacional da Educação definiu como meta atender 50% de todas as crianças de zero a três anos nas creches, mas hoje só 38,7% estão matriculadas, de acordo com dados da Pnad Educação 2023.

Maria Beatriz reforça que, em relação à desigualdade socioeconômica, o ciclo intergeracional de pobreza precisa ser combatido, pois é um fator de adversidade. Por outro lado, a escolarização dos pais, especialmente a da mãe, influencia positivamente no desenvolvimento da criança. "Um bom nível escolar [dos pais] significa uma série de outros fatores protetores conjugados, como melhor qualificação profissional, melhor emprego, mais recursos e acesso a uma alimentação mais saudável”, exemplifica. 

Karina observa que há grupos vulnerabilizados e com direitos negligenciados, como mostram indicadores socioeconômicos e étnico-raciais. “Por exemplo, a mortalidade materna de mulheres negras é muito maior do que a de mulheres brancas. E a mortalidade de crianças indígenas é o dobro da registrada no restante da população infantil." Segundo ela, se houvesse mais políticas públicas intersetoriais e integradas na primeira infância, essas famílias poderiam se beneficiar com a redução da pobreza. "Se queremos uma sociedade mais justa, investir na primeira infância é poder mudar não só a situação das crianças, mas de toda a sociedade."