O drama das escolas sem banheiro
A realidade das instituições que não possuem sanitários na zona rural brasileira
POR: Rodrigo Ratier, NOVA ESCOLA, Beatriz VichessiObservada a distância, a paisagem é bucólica. A singela casa de taipa é uma moradia tradicional no Meio-Norte, região que abrange o Maranhão e parte do Piauí. Sustentada por um gradeado de troncos de babaçu unidos com nós de cipó, tem paredes de barro e cobertura de palha. Resiste a chuvas fracas e, por contemplar frestas para o vento correr, dispensa ventilador mesmo sob intenso calor. Aproveita ao máximo a riqueza da mata dos cocais, como os sertanejos da área fazem há séculos.
Mas não estamos falando do passado. O ano é 2011. O lugar, a zona rural de Caxias, cidade de 155 mil habitantes a 371 quilômetros de São Luís. A casa é, na verdade, uma escola. EM São Gonçalo. A bordo de um veículo utilitário esportivo 4x4, capaz de vencer as irregularidades das estradas de terra, ela fica a cerca de uma hora da zona urbana do município. Em seu interior, 18 alunos de uma turma multisseriada de 1ª a 4ª série assistem à aula da professora Fernanda Pereira da Silva. Sobre o chão de terra, um mobiliário destroçado. Como as cadeiras com encosto não são suficientes, algumas crianças se recostam diretamente na armação metálica. No meio da construção, um velho armário de ferro faz as vezes de biombo entre a sala de aula e outro cômodo. Nele, um fogãozinho de duas bocas com bujão de gás, pilhas de livros didáticos e mantimentos para a merenda disputam espaço com feixes de ramos de arroz - parte da safra do dono da área, um vizinho que cedeu as salas para o ensino, mas ocasionalmente as usa como depósito.
A isso se resume a EM São Gonçalo. Não há quadra, refeitório, laboratório de Ciências ou de informática, internet, telefone, esgoto ou água encanada. Não há banheiro. "Quando alguma criança está apertada", conta Fernanda, "eu entrego o papel e digo para ir ali". "Ali" é uma pequena clareira a 20 metros da escola, nos fundos do terreno, onde a capoeira encontra a mata e um amontoado de papéis usados e embalagens plásticas se acumula. "Ali" é onde os alunos da EM São Gonçalo fazem suas necessidades. "Xixi e cocô", confirma a professora.
Do catálogo de estatísticas educacionais constrangedoras, a quantidade de escolas sem sanitário costuma ser a mais evocada para sublinhar o arcaísmo que, a despeito dos avanços recentes em acesso e qualidade, teima em existir na Educação brasileira. "Banheiro é condição mínima de qualidade para a escola. O poder público precisa garanti-lo", diz Gabriela Schneider, especialista em políticas, gestão e financiamento da Educação da Universidade Federal do Paraná (UFPR). "Mais que um direito básico, ter instalações adequadas é requisito para o aprendizado", reforça Ronaldo Lima Araújo, professor da Universidade Federal do Pará (UFPA) na área de trabalho e Educação. "É conhecida a relação entre o desempenho escolar e as condições do ambiente de ensino."
Transtorno em 8.974 escolas, diz o Censo
A extensão do problema espanta. A pedido de NOVA ESCOLA, o economista Ernesto Martins Faria, especialista em cálculos e análises de indicadores educacionais, esquadrinhou os dados do Censo Escolar 2010, os mais recentes sobre o tema. De acordo com as informações oficiais, há 8.974 escolas de Ensino Fundamental sem banheiro, o equivalente a 6% do total de estabelecimentos no país. Nove em cada dez pertencem a redes municipais, e 99% delas estão no campo, a maioria no Norte e Nordeste. O Maranhão é duplamente campeão, puxando a fila tanto em número de instituições sem sanitário (3.166) quanto na porcentagem do total da rede (26,5%). Logo atrás aparecem Roraima, Amazonas e Acre (respectivamente 25, 20 e 14% de escolas sem banheiro, a maioria em áreas indígenas), seguidos por Piauí, Tocantins e Pará (pela ordem, 12, 11 e 9%, boa parte em áreas de agropecuária familiar). Dos dez estados mais críticos, seis também estão na lista das dez piores notas no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) nas séries iniciais.
A exatidão das cifras é apenas aparente. Durante os meses de março e abril deste ano, entramos em contato com as Secretarias de Educação de mais de 15 municípios que, segundo o Censo, teriam em suas redes escolas sem sanitário. Em todas as conversas, os números oficiais eram contestados. Para o organizador do Censo Escolar, o Instituto de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), os culpados são os coordenadores e diretores escolares, responsáveis pelo preenchimento dos questionários. Na prestação de contas, a preocupação exclusiva dos gestores seria com o total de matrículas. Não é à toa. Único dado fiscalizado pelo Governo Federal, ele serve de base para o cálculo do repasse do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb). "Para totalizar as outras informações do Censo, realmente preciso puxar a orelha de muitos coordenadores", admite, sob condição de anonimato, a secretária de Educação de uma das cidades consultadas.
Encontrar uma escola sem banheiro não é fácil. Em geral, são unidades pequenas e isoladas, de uma ou duas turmas, quase sempre multisseriadas e com no máximo uma dupla de docentes. Ocupam construções emprestadas ou cedidas por vizinhos ou associações comunitárias. Ficam na zona rural, longe do centro dos municípios e em áreas de difícil acesso, por vezes intransponíveis nos meses de chuva. Não têm coordenador nem diretor. Funcionários? No máximo, um zelador, que prepara a merenda, faz a limpeza e abre e fecha a escola. É comum, porém, encontrar professores que acumulem todos esses papéis.
Entre maio e junho, nossa equipe foi em busca de municípios que se dispusessem a demonstrar a real situação de suas escolas supostamente sem banheiro. Aceitaram nos receber as prefeituras de Barras, a 122 quilômetros de Teresina, de Marabá, a 568 quilômetros de Belém, e a já citada Caxias, no Maranhão. Embora os roteiros tenham contemplado estabelecimentos de infraestrutura adequada - sugestão das Secretarias das três cidades -, não tivemos acesso negado a nenhuma escola. "Aqui temos coisas boas e a bagaceira. Você vai ver as duas", resumiu Sílvia Maria Carvalho Silva, titular da pasta de Educação da cidade maranhense, numa frase que poderia sintetizar o conjunto das viagens.
Conhecemos cerca de duas dezenas de escolas. Apenas duas - a EM São Gonçalo e a EM Bom Princípio, ambas em Caxias - não tinham nenhum tipo de sanitário. Mas a situação era precária em quase todas.
Na zona rural de Barras, unidades como a EM João Rozeno contam com uma fossa negra de alvenaria no fundo do terreno. O vaso é, na realidade, uma abertura irregular esculpida no chão de cimento, com tamanho suficiente para tragar uma criança pequena. Já em Marabá, na EMEF João Batista, o banheiro está em um barraco escuro de madeira, de odor repugnante e coalhado de insetos. "É uma tábua podre que está para quebrar. A gente tem de subir nela e se equilibrar, com cuidado para não cair no buraco, que é nosso banheiro", define um aluno de 9 anos. Na mesma cidade, na EMEF Rio Sororó, enquanto as turmas aguardam a nova construção, prometida para 2012, a "casinha" é a mesma para meninos e meninas e alaga quando chove. Ainda na zona rural, em outro estabelecimento, há um vaso para as meninas e outro para os meninos. Faltam os assentos. E também as portas. Nome da escola: EMEF Paraíso do Saber.
Cada escala reforçava a convicção de que a ausência de um banheiro decente é, na verdade, a ponta de um emaranhado de dificuldades infraestruturais. A lista é longa. Em Barras, na EM João Rozeno, a própria professora retira a água diariamente de um poço raso, que seca na estiagem. Como a falta de geladeira impede um estoque de comida, a merenda é pouco nutritiva, baseada em produtos industrializados. Quando a reportagem esteve por lá, os alunos almoçaram macarrão com sardinha. Em Marabá, a EMEF João Batista faz jus ao jeitão de mansão mal-assombrada: está infestada de morcegos. Aninhados no vão entre o teto e o telhado, eles sobrevoam a sala de aula, dando rasantes junto à cabeça das crianças. No dia de nossa visita, a aula chegou a ser interrompida tamanha a agitação dos bichos. Em Caxias, na EM Bom Princípio, a água de um poço artesiano comunitário não verte da torneira porque o sistema de bombeamento quebrou. A alguns quilômetros dali, a UEM Jerônimo Castro não tem paredes. O antídoto para os tempos de calor vira tormento nos dias de tempestade e ventania, quando os alunos ficam ensopados em plena aula. Na EM São Gonçalo, aquela do início da reportagem, o problema é ainda mais absurdo: sem manutenção nas paredes de madeira e barro, a escola desabou duas vezes na última década.
Um jogo de empurra entre os governos
Como chegamos a esse ponto? O que explica a vergonhosa avalanche de problemas? "De maneira geral, a ausência do Estado na garantia ao direito à Educação é a causa das precariedades no meio rural", afirma a professora Mônica Castagna Molina, especialista em Educação do campo da Universidade de Brasília (UnB). Donas das redes mais precárias, as prefeituras defendem que não podem ser as únicas responsáveis por enfrentar o desafio gigantesco da Educação no campo. Caxias, por exemplo, tem o triplo do tamanho da cidade de São Paulo e cerca de 800 povoados rurais. Já em Marabá, com área dez vezes maior que a capital paulista, o fluxo migratório fez a população crescer 33% nos últimos dez anos - alimentando, por consequência, a corrida por vagas nas salas de aula.
Como a arrecadação local é quase sempre insuficiente, os municípios dependem da colaboração de outros níveis de governo. Os estados tendem a se eximir, alegando já ter suas próprias redes para cuidar. Sobra a União, que ampara as prefeituras com o dinheiro do Fundeb. O montante, entretanto, só sustenta a manutenção do sistema: nas séries iniciais em zona rural no Maranhão, Pará e Piauí, a expectativa era que o governo federal repassasse, em 2011, apenas 165 reais mensais por aluno. Melhorias consistentes dependem de iniciativas específicas. No caso da construção de banheiros, não há um programa ativo, embora o Ministério da Educação (MEC) tenha sinalizado a inclusão da demanda na próxima versão do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), que deveria ter entrado em vigor neste ano. Enquanto proliferam as lacunas no pacto federativo que financia o ensino público, muito pouco vem sendo feito.
Se o aperto é grande quando a verba escoa até o destino, imagine quando vaza pelo ralo da corrupção. Em Caxias, um relatório da Controladoria Geral da União (CGU) inspecionou 31 obras de escolas realizadas entre 2002 e 2005 com dinheiro federal. Em pelo menos 23 delas, havia irregularidades. Construções fantasmas, feitas pela metade ou com materiais de baixa qualidade - como as raquíticos ripas que servem de pilares na EM Cristino Cruz, em Caxias.
Tão preocupante quanto a escassez de recursos é um mal disfarçado preconceito na fala de certos gestores públicos. O argumento básico é o seguinte: para populações tão carentes como as das escolas sem banheiro, qualquer recurso é um avanço. "Em áreas mais isoladas, higiene é algo secundário. Muitos alunos só conhecem a fossa na escola", deixou escapar a secretária de um dos municípios visitados. Para os especialistas, a ideia é perigosa, pois encara as desigualdades como uma coisa natural e admite a existência de alunos de segunda classe. "A escola precisa garantir todos os recursos para a Educação. Sobretudo em áreas pobres, ela tem a obrigação de ser um centro de esclarecimento e de dar o exemplo de civilidade", defende Gabriela Schneider, da UFPR.
Uma escola assim ajudaria comunidades como a do Boqueirão, na zona rural de Barras, a ref letir sobre seu modelo de desenvolvimento. A maioria das casas tem TV e boa parte das famílias possui ao menos uma moto. Todos, entretanto, defecam no mato. Num sistema educacional a serviço de uma sociedade melhor, a ausência de um lugar adequado para as necessidades é inaceitável. Escolas sem banheiro precisam deixar de ser escolas para virar imagem do passado.
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