Arte e a liberdade para criar
Novos caminhos para o ensino da disciplina jogam luz no percurso criativo individual. Entenda o que mudou e saiba como orientar a turma
POR: Rodrigo Ratier, Camila CamiloO que é arte? Onde pode ser encontrada? Quem é capaz de apreciá-la? Quem a produz? Ao pensarmos nessas perguntas, é natural que evoquem respostas associadas ao universo da cultura erudita. Arte é um quadro de Portinari, uma sinfonia de Mozart, um filme de Godard ou uma coreografia de Deborah Colker. Habita museus concorridos, refinadas salas de concerto, cinematecas cult e teatros renascentistas. Está à disposição de uns poucos privilegiados dotados de sensibilidade aguçada para decifrar suas mensagens. E, sobretudo, é realizada exclusivamente por indivíduos geniais, predestinados, únicos. Em uma palavra: para ser artista, é preciso ter um dom.
Será mesmo? Vejamos a definição de um grande especialistas no assunto, o filósofo britânico Robin George Collingwood (1889-1943). Em seu clássico The Principles of Art (sem tradução para o português), Collingwood sustenta que arte é algo feito pelo ser humano para exprimir seus sentimentos subjetivos. Sob esse ponto de vista, as obras artísticas falam de sonhos, epifanias, perplexidades, frustrações, dores, amores. São capazes de suscitar emoções no público que os fatos do dia a dia não conseguem transmitir. Provocam riso, choro, reflexão, mudança de mentalidade. Daí sua importância na vida de cada um de nós.
Partindo dessa perspectiva mais generosa, é possível ampliar o leque de artistas em potencial para, virtualmente, o conjunto da humanidade. Todos nós somos capazes de produzir e de entender a arte. Isso vale, é claro, para a escola. Estudantes da Educação Infantil ao Ensino Médio, embora não sejam especialistas nem precisem conceber obras-primas, têm algo em comum com artistas profissionais. Eles possuem vontades, imaginação, opiniões e identidades para exprimir.
O foco na expressão dos alunos visa romper com os limites das atividades estereotipadas (desenhos para colorir, reprodução de quadros de artistas consagrados etc.), mas não se confunde com o espontaneísmo do tipo "deixar fazer tudo". Tem a ver com o percurso criativo individual, processo pelo qual os artistas passam ao realizar suas obras (leia os depoimentos ao longo da reportagem). Diz respeito a um mergulho no universo artístico: conhecer referências e explorar materiais como base para produzir.
Para o educador, significa ter preparo e prontidão para orientar a turma nos desafios artísticos. Estimular o potencial criador de crianças e jovens enriquece o desenvolvimento deles como sujeitos e cidadãos. "Ao produzir arte, o estudante amplia sua forma de perceber o mundo e de opinar sobre ele", analisa Maria José Spiteri, professora de Estética e História da Arte da Universidade Cruzeiro do Sul, em São Paulo. Mas a realidade de muitas escolas está a Louvres de distância desse ideal. Marque com um X se alguma das práticas abaixo é recorrente no seu ambiente de ensino.
( ) Na hora de desenhar, os alunos reproduzem estereótipos, como o célebre desenho de uma casinha com montanhas ensolaradas ao fundo.
( ) Nas aulas de música, a turma tem pouco contato com instrumentos musicais e nenhum com composição.
( ) As atividades de dança se restringem a coreografias copiadas da TV e da internet.
( ) O teatro é organizado só para que, no fim do ano, todos apresentem um conto de fadas para os pais. E a menina mais bonita é a princesa...
Se isso acontece na sua instituição, não se envergonhe. É assim - infelizmente - na maioria delas. As razões são muitas e remetem ao período da ditadura militar (1964-1985). Na época, a expansão das matrículas não foi acompanhada pela atração de docentes preparados. Até hoje, só 7,7% dos professores de Arte têm licenciatura em artes visuais, teatro, música ou dança, segundo levantamento do Movimento Todos pela Educação.
Se isso prejudicou disciplinas tradicionais como Língua Portuguesa e Matemática, o que dizer da Arte - na época chamada de Educação Artística, uma atividade opcional fora da grade obrigatória. "Nascem daí atividades pouco estimulantes que acabaram se tornando comuns nos bancos escolares, como o desenho livre ou preencher os contornos da bandeira do Brasil", conta Eliana Pougy, especialista em Linguagens da Arte da Universidade de São Paulo (USP).
Do repertório, as soluções para uma animação
"Entendo a produção em Arte à maneira de pensadores como Thierry de Duve. A criatividade não é exclusividade de quem tem um dom. É uma maneira de encontrar soluções para as perguntas propostas. Ou, ainda, de inventar as próprias perguntas.
Eu queria que a turma do 4° ano vivenciasse o processo artístico completo de uma animação. Começamos vendo o surgimento do cinema, com o flipboard. Trouxe a clássica história do magnata que jurava que seus cavalos tiravam as quatro patas do chão ao correr. Ele contratou um fotógrafo para provar que estava certo e só ganhou o desafio porque as imagens foram postas em sequência - como nas animações.
Em seguida, fizemos um zootropo, um tambor circular com pequenas fendas por onde se vislumbram algumas figuras. Quando giramos o objeto, elas se movem. Completei o trabalho de repertório com diversas animações, que a criançada assistiu empolgada. Quando chegou a hora da produção, meu papel era ajudar a resolver as dúvidas. Percebi que alguns cuidados, como a sequência certa de cenas e ângulo, vieram das referências com as quais eles tiveram contato nas aulas. Com essa base, eles entenderam que são capazes."
Kelly Sabino, professora da Escola de Aplicação da USP
"Na criação de esculturas, uso bastante a memória de cenas do cotidiano. Vou direto ao material, usando as mãos para fazer e refazer até chegar ao mais próximo do que está na minha cabeça."
Simone Grecco, artista plástica
O tripé que virou o jogo
O quadro ganhou novas cores na década de 1980, com o avanço das pesquisas em arte-educação e o surgimento da abordagem focada no tripé apreciação-produção- contextualização - a proposta triangular. Sua idealizadora, a educadora Ana Mae Barbosa, argumenta que o aprendizado de arte ocorre com base na ligação entre a leitura de obras (apreciação), a teoria e a história da arte (contextualização) e o fazer artístico (produção). É um salto quântico: em vez de ficar restrito à reprodução de modelos predeterminados, o estudante é exposto a diversas formas de expressão, analisa produções e firma relações com o que já conhece para produzir. Novos impulsos vêm com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), em 1996, que torna Arte parte do currículo do Ensino Fundamental, e no ano seguinte, com os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), que abraçam a proposta triangular.
A novidade recente são os estudos que têm sofisticado a gama de alternativas disponíveis para a sala de aula. Uma das contribuições mais originais é a do belga Thierry de Duve. No livro Fazendo Escola ou Refazendo-a? (345 págs., Editora Argos, tel. 49/3321-8208, 49 reais), o filósofo e historiador da arte parte da premissa de que a capacidade de se expressar artisticamente aumenta conforme a sensibilidade estética e a alfabetização artística progridem. Fica evidente o diálogo com a proposta triangular. Mas Thierry de Duve vai além. Recorrendo à própria experiência com formação de artistas, ele propõe um programa de ensino de Arte com foco no percurso criador.
Falar de desse conceito é apresentar a confecção de uma obra artística como consequência de um processo. Isso inclui analisar o que foi desenvolvido por vários artistas e como eles trabalhavam, conhecer referências de outras áreas que possam acrescentar ao tema escolhido, experimentar objetos do cotidiano como recursos e refletir sobre o que foi feito.
Nessa trajetória, um primeiro passo é pôr a turma para enfrentar desafios artísticos. Cabe ao professor apresentar a provocação, como faz Maria da Paz Melo, docente da EM Valéria Junqueira Paduan, em Santa Rita do Sapucaí, a 386 quilômetros de Belo Horizonte. Seus alunos, cujas fotos e obras ilustram esta reportagem, precisam lidar com situações como desenhar o movimento de fios e barbantes pendurados no teto. Além de recorrrer a questionamentos que envolvam aspectos técnicos, é possível desafiar abordando um determinado tema (a sensação de viver numa grande cidade), estudando a fundo um movimento artístico (o renascimento italiano) ou investigando como se estruturou a produção de arte em um certo lugar (a confecção de máscaras nas tribos africanas). O objetivo é levar a garotada a mergulhar no contexto de produção e conhecer como se expressam os artistas.
Outra recomendação é explorar materiais e técnicas variadas. Na realidade escolar, corresponde a perguntar: o que as crianças e jovens podem usar na aula de Arte? Rosa Iavelberg, arte- educadora e professora da Faculdade de Educação da USP, argumenta que o que está nas redondezas deve ser aproveitado. "Desenhar não se faz só com lápis preto e sulfite. As folhas que caem das árvores, restos de produtos limpos ou sucata também são recursos possíveis." A exploração vale, claro, para outras linguagens artísticas. Na turma da professora Kelly Sabino, da Escola de Aplicação da USP, o contato com uma ampla lista de técnicas de animação foi o caminho para resolver diversos problemas quando chegou a hora de gravar vídeos (leia o depoimento na página anterior).
Thierry de Duve assinala também a importância de experimentar o fazer artístico. Isso significa produzir mais de uma versão da obra, voltar à versão inicial, compor e recompor a primeira tentativa. É o caminho dos improvisos musicais das aulas de Áudrea Martins, professora do Projeto Prelúdio, em Porto Alegre (leia o depoimento abaixo). Os experimentos devem ser preferencialmente individuais, pois a arte tem uma dimensão subjetiva muitas vezes incomunicável. Algo diferente do que se vê nas escolas, onde trabalhos em grupo são recorrentes. A prática vem da ideia de que com pares a criança avança melhor, o que é verdade em algumas situações. "Mas a experiência estética é sempre individual. Ela depende dos procedimentos que cada um elabora", aponta Monique Deheinzelin, doutora em Psicologia e Educação pela Faculdade de Educação da USP.
No ritmo do improviso e da exploração musical
"Como professora de Música, proponho cotidianamente situações em que os alunos compõem. Quando trabalhava na EMEF São João Batista, em São Leopoldo, a 40 quilômetros de Porto Alegre, sugeri que os alunos recolhessem os sons do ambiente e explorassem os instrumentos de modo não convencional, como soprar a flauta doce sem posicionar os dedos.
Vários exercícios enfocavam o improviso. Elaboramos uma melodia curta que todos aprenderam a tocar. Depois, tiramos a melodia e cada um improvisou em cima da mesma base harmônica. Outras vezes, eu limitei o número de notas - já pedi que improvisassem com apenas duas.
A experimentação dá o tom quando introduzo o uso de softwares de edição. Minha escolha é o Audacity, que não vem com bases prontas, como outros programas. Ou seja, tudo precisa ser produzido pela turma. Por fim, durante as apresentações, a troca é constante. Um pergunta para o outro de onde veio a ideia, quais dificuldades encontrou etc. Compartilhar o caminho da criação é importante. Isso deixa mais claro que a obra musical é um percurso e não um estalo de imaginação."
Áudrea Martins, professora do Projeto Prelúdio, do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS), em Porto Alegre
"Convivi com a música na minha família e na rua de casa, onde tinha roda de samba. Às vezes, a letra vem de uma palavra inspiradora guardada por muito tempo."
Pedro Luís, poeta e músico, um dos fundadores do grupo Monobloco
Ao final, análise do processo
Para arrematar, cabe analisar o que foi feito. Carmem Machado, professora da EE Professor Benedicto Leme Vieira Neto, promove avaliações entre pares ao longo de toda a sequência didática (leia o depoimento abaixo). Para o aluno, falar como fez, discutir o porquê das escolhas e as formas como se apropriou das influências vistas nas aulas ajuda a sistematizar o próprio processo criador. Também auxilia a conferir consistência à curadoria do conteúdo - selecionar o que será exposto à comunidade é uma tarefa que cabe à turma.
Seguir caminhos que inspirem meninos e meninas a criar não quer dizer riscar da tela práticas como a releitura ou a cópia. A ideia é dar um novo significado a elas. Imitar o que foi feito por alguém conhecido ou tentar passar para o papel o que se vê no quadro não funciona. Mas a cópia é um procedimento útil para entender como o artista resolveu problemas técnicos - relativos ao uso dos materiais, por exemplo. A releitura, por sua vez, consiste em entender como ele produziu e reinterpretar seu olhar. Para Maria José, é o oposto de tentar fazer igual. "Na verdade, trata -se de buscar responder a perguntas do tipo: Como esse artista olhou o mundo?."
Ensinar Arte dessa maneira requer uma postura pedagógica específica. Para desafiar a turma - e ter preparo para auxiliar a cumprir a tarefa - , cuidar da formação é essencial. "Não me satisfiz com a graduação em Artes. Me especializei em artes cênicas, busquei o mestrado e agora o doutorado", conta Carmem. Atividades úteis para a construção de repertório também precisam ser rotineiras, como defende Rejane Coutinho, do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (Unesp). "É importante frequentar concertos, conhecer os artistas da sua cidade, buscar os sites de museus nacionais e internacionais que disponibilizam visitas virtuais." Quanto mais referências, menor o risco de trazer para as aulas artistas incensados pela mídia e pelo mercado, mas sem reconhecimento da crítica ou de seus pares. "Quem ensina precisa se preocupar em saber de onde vem o artista e como ele está localizado no mercado de arte", defende Rosa Iavelberg.
E uma última provocação: se a ideia é criar, o professor precisa se expor. "Os docentes devem experimentar fazer arte. Como eles vão ensinar as crianças a produzir se nunca fizeram isso?", indaga Maria Cristina da Rosa Fonseca da Silva, professora do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). Para ensinar, vivenciar o percurso criativo também é fundamental. Compartilhar os caminhos da expressão com seus alunos, melhor ainda.
O desafio de dançar uma história
"Todo trabalho que proponho começa com uma pergunta: o que posso trazer de inspirador para meus alunos? Costumo fazer provocações com base nas manifestações dos estudantes.
Com os alunos do 7° ano, foi assim. Eles contaram que tinham vontade de dançar, mas sentiam vergonha. Planejei uma sequência para todos experimentarem a dança como linguagem artística. Me inspirei em propostas de Rudolf Laban (1879-1958), Viola Spolin (1906-1994) e Pina Bausch (1940-2009). Exploramos uma conexão entre dança e teatro. Provoquei a turma a criar símbolos para expressar ações como girar, correr e saltar. Sugeri objetos para compor as cenas, como água, terra e cadeiras. Em outro momento, cada um trouxe a fotografia de um momento especial. O importante não era a beleza estética, mas a lembrança que as imagens traziam. Eles escreveram essas memórias e contaram para um colega. Depois, transformaram a narrativa em movimentos corporais realistas ou abstratos, com base no que vimos antes. Eles se apresentavam ao fim de cada encontro e um avaliava o trabalho do outro."
Carmem Machado, professora da EE Professor Benedicto Leme Vieira Neto, em Salto de Pirapora, a 130 quilômetros de São Paulo
"Para planejar uma coreografia, contam muito o material e as características dos profissionais com quem vou trabalhar, como os músicos."
Morena Nascimento, bailarina
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