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“Quando os especialistas pararem de gritar uns com os outros, o problema da alfabetização estará resolvido”

Catherine Snow, professora de Harvard, defende que superar as polêmicas sobre os métodos de ensino é fundamental para garantir a aprendizagem

POR:
Wellington Soares
A professora de Harvard não se esquiva de polêmicas: "Muitas vezes a discussão se baseia nas ideologias, e não nas evidências." Foto: Verônica Mancini

As disputas sobre a melhor maneira de alfabetizar já duram algumas décadas no Brasil. De um lado, há quem defenda o foco no ensino das relações entre os sons e as letras. Do outro, estão os partidários de uma abordagem que parta do uso de textos reais para fazer com que as próprias crianças desenvolvam o seu conhecimento sobre o sistema de escrita - o embate já foi assunto de capa da revista NOVA ESCOLA, em maio de 2016. No meio do debate, está a professora de Harvard Catherine Snow.

Ela veio ao Brasil para dar uma palestra no evento "Articulando o conhecimento científico com as políticas públicas", realizado em São Paulo, no início de março. Lá, percebeu que a temperatura da discussão continua alta por aqui. "Essa discussão é terrível. Absolutamente terrível, tanto para os professores quanto para as crianças, que acabam recebendo uma Educação ruim", disse Catherine, numa conversa na redação de NOVA ESCOLA.

Nos Estados Unidos, a professora se dedica há pelo menos três décadas a estudar as melhores abordagens para a alfabetização. Nessa trajetória, foi uma das responsáveis por pacificar os debates por lá ao participar da comissão elaboradora de um relatório que hoje pauta as políticas públicas do país (disponível aqui, em inglês). Na entrevista abaixo, a especialista fala sobre as disputas entre os diferentes grupos, a melhor idade para alfabetizar e o que cabe à pré-escola na alfabetização.

Na sua palestra no evento, você comentou sobre as dicotomias e embates existentes entre os métodos fônicos e outros de inspiração mais construtivista. Como você avalia essa disputa?

Isso me lembra uma situação que vivemos nos Estados Unidos há cerca de 20 anos. Lá houve disputas severas entre os defensores dos métodos globais [conhecidos nos EUA como whole language e que se aproximam mais do construtivismo brasileiro] e do método fônico. Essas brigas ficaram conhecidas como “Guerras de Alfabetização”. As comunidades de pesquisa e de ensino de leitura foram rachadas ao meio. As pessoas se odiavam e não conseguiam ir aos mesmos eventos que os pesquisadores que pensavam diferente. Não conseguiam sequer contemplar a possibilidade de que os presentes do outro lado da disputa também estivessem trabalhando com boas intenções. O que vi aqui no Brasil me lembrou um pouco dessa situação, mas, nos EUA, a disputa foi bem mais intensa. Cenários assim acabam sendo prejudiciais aos alunos, porque os professores se veem no meio dessa guerra, sem saber se podem confiar nas pesquisas e nas recomendações dadas pelos estudiosos.

O que as pesquisas americanas mostram com relação a essa polêmica?

As evidências apontam que os métodos globais – que se parecem um pouco, mas ainda são muito diferentes do construtivismo brasileiro – produzem os melhores resultados na creche e na pré-escola. Mas não no 1º ano. Nessa etapa, o ensino específico das relações entre sons e letras traz mais resultados bons.

Como acabaram as guerras de alfabetização nos Estados Unidos?

A partir de um relatório da Academia Nacional Americana de Ciência, foi desenvolvida muita ação política nos estados para garantir que as redes assumissem uma posição de conciliação: a linguagem deve ser rica durante toda a escolarização, mas um período de ensino no 1º ano sobre as relações entre sons e letras não faz mal a ninguém e pode ser essencial para alguns alunos. Assim, as guerras terminaram nos Estados Unidos, mas é desencorajador ver que ainda não há um acordo aqui no Brasil, porque isso é realmente prejudicial às crianças. A discussão que presenciamos é terrível, principalmente para os professores, porque eles ficam sem saber em quem acreditar. Enquanto isso, os alunos recebem uma Educação ruim tanto de quem defende um lado quanto outro, porque precisam de ambos para conseguir se inserir no mundo letrado. Quando os especialistas pararem de gritar uns com os outros, o problema da alfabetização estará resolvido, haverá programas que funcionem e todas as crianças aprenderão a ler. Isso já deveria ter acontecido aqui.

Qual é a idade certa para alfabetizar?

Bem, você pode ensinar às crianças a ler aos 3 ou aos 7 anos. O que sabemos é que é mais eficiente fazer isso em turmas com alunos de 5 ou 6 anos de idade, mas cada país costuma tomar sua decisão. Na Finlândia, é com sete anos e meio. Na Noruega, sete. Nos Estados Unidos, cinco. O que sabemos é que pode ser desperdiçado muito tempo se começamos muito cedo, porque nem todos avançarão juntos. Por isso, é melhor que se foque em outras atividades com crianças muito pequenas. 

Há algumas décadas, era comum que as crianças – antes de serem de fato alfabetizadas – fossem colocadas para fazer exercícios de prontidão, que consistiam principalmente no treino da coordenação motora e a aprendizagem do desenho das letras. O que as pesquisas mostram sobre esse tipo de tarefa?

São uma besteira completa. É claro que as crianças precisam aprender a reconhecer e a desenhar as letras, mas não precisam fazer isso traçando-as individualmente. Elas podem fazer isso ao tentar escrever legendas para um desenho que fizeram, por exemplo, ou escrevendo histórias da maneira que conseguirem. O importante é conectar a escrita à comunicação. Queremos que as crianças aprendam a ler e a escrever para participar do mundo letrado. E isso significa não traçar letras, mas escrever algo que elas realmente queiram dizer.

Já que esses exercícios não são recomendados, o que os professores de pré-escola podem ensinar sobre leitura e escrita?

Tanta coisa! O que temos notado é que, ao chegar ao 4º, 5º e 6º anos, quando os alunos são convidados a ler sobre História, Ciências ou Geografia, eles encontram dificuldades em compreender o vocabulário utilizado. Defendo que, na pré-escola, deve-se dar às crianças o conhecimento que servirá de base para a compreensão de textos nos anos posteriores. Uma possibilidae é fazer com que elas tenham contato com o vocabulário dessas áreas.

Como se pode trabalhar a ampliação de vocabulário com as crianças?

Não se trata de fazer listas de palavras para as crianças estudarem – que é o que acabou acontecendo em algumas classes dos Estados Unidos. A aquisição de vocabulário acontece quando tópicos são discutidos e pesquisados. Numa conversa sobre bombeiros, por exemplo, é possível usar palavras como oxigênio, combustão, extintor... Termos que talvez sejam desconhecidos para as crianças até aquele momento, mas que serão importantes quando elas voltarem a estudar esse tema. No caso do exemplo, o trabalho da pré-escola poderia envolver a leitura de textos sobre o assunto, uma visita de um bombeiro à escola ou um passeio até o corpo de bombeiros e diversas rodas de conversa. No final, todas as crianças saberão muito sobre fogo, oxidação e respiração e saberão as palavras porque dominam o tema, e é isso que é importante.

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