Apresentado por
Educador Nota 10

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A construção da identidade

Como refletir sobre a periferia ajudou a turma a pensar mais sobre si mesma

POR:

O QUE É?

Experiência de Geografia sobre a vida na periferia. Trabalho vencedor do Prêmio Educador Nota 10 de 2016. Conteúdo originalmente publicado no site de Nova Escola.

QUEM FEZ?

Fábio Augusto Machado, professor da EMEF Professora Marili Dias, em São Paulo (SP).

PODE TE INSPIRAR PORQUE...

Os alunos puderam refletir sobre a própria realidade de morar na periferia da cidade.

ETAPA

Ensino Fundamental

ANO 

6º 

CONTEÚDOS

Geografia, espaço, periferia, moradia, habitação 

O professor dos “perigosos”

Como Fabio Augusto Machado discutiu identidade com seus alunos e mostrou que eles podem, sim, ser donos da própria vida
TEXTO LEANDRO BEGUOCI  DESIGN   JACQUELINE HAMINE

Oprofessor desce o morro com o pé no freio. "Ô, perigoso!", e buzina para um jovem. Acelera o carro, freia na próxima curva. "Fala, perigoso!" Os dois adolescentes respondem com a mão levantada e um "Salve, fessor!". Os dois são alunos de Fabio Augusto Machado, professor da EMEF Professora Marili Dias na Vila dos Palmares, uma área pobre, dentro de um bairro ainda mais pobre (o Morro Doce), numa das regiões com alguns dos piores indicadores sociais da cidade de São Paulo. Ele é um dos Educadores Nota 10 por causa de um projeto singelo e poderoso: mostrar que a escola vale a pena e que eles podem ser mais do que adolescentes limitados pelo bairro - ou perigosos para o restante da cidade, um rótulo que os meninos e meninas de lá carregam.  

FABIO AUGUSTO MACHADO 

35 anos
10 anos de docência

Educador Nota 10 
São Paulo (SP)

Geografia
6º ao 9º ano

Projeto 
A Construção  da Identidade

"Todo mundo se chama aqui de perigoso", conta Fabio, meio envergonhado da palavra de conotação negativa. "Eu tenho de falar a língua dos alunos, mas faço questão de mostrar que eles podem ser muito mais do que os limites que eles têm hoje". O projeto de Fabio se chama A construção da identidade do(a) educando(a) no espaço escolar a partir do lugar. Quando li o projeto, confesso que fiquei ressabiado. É muito relevante discutir identidade - o conjunto de características que torna cada pessoa um ser singular no mundo. A questão é como fazer isso dando concretude ao conceito. Essa desconfiança se dissipou durante a visita. A sacada de partir da história do bairro e da escola para responder ao "quem sou eu?" fez todo o sentido para aqueles jovens. Mais que isso: permitiu que se questionassem sobre o futuro.

A escola das pedradas

Quando nasceu, a escola Marili era a Geni da música de Chico Buarque: só recebia pedradas. Nenhum professor queria a Marili, nenhum aluno queria a Marili, a comunidade detestava a Marili. A escola foi construída em 2008, sobre um antigo campo de futebol. O bairro queria a escola... mas não ali, justo em cima de uma das raras áreas de lazer da região. Depredada por quem usava o campinho, a Marili se consolidou como a última escolha de professores e alunos. "Havia um estigma de que todos os estudantes remanejados para ela eram os piores alunos da região", lembra a professora de Português Adriana da Silva Ferreira, coautora do projeto. Foi aí que uma equipe de professores, da qual Fabio faz parte, decidiu que não assistiria a escola se dissolver enquanto os alunos não aprendiam. Implantaram pedagogia de projetos e apostaram numa das coisas mais eficazes para começar a mudar: acreditar nos alunos. "O aluno da periferia quer transformar o bairro, mas as escolas dizem, direta ou indiretamente, que ele não é ninguém. Combatemos esse discurso", afirma Daniela Gissoni, professora de Geografia e também coautora do projeto.

O projeto, em si, é bastante simples. Os alunos foram convidados a estudar a história do bairro e a pensar a origem da escola. Depois, entrevistaram os vizinhos e mergulharam na cultura da região. Mais tarde, refletiram sobre os conceitos de identidade e globalização, associando essas ideias aos próprios desejos e às expectativas dos pais. Por que eles querem um tênis de mil reais num bairro tão pobre? E por que os pais não acreditam que eles podem ir além do Morro Doce? Em todos os momentos, Fabio, Adriana e Daniela agiram como mediadores, fazendo perguntas, estimulando os alunos a pensar por eles mesmos. 


 

A GEOGRAFIA DO MORRO

Palavra de especialista
"A ideia do protagonismo e da autoria é trabalhada ao longo de todo o projeto e permite aos alunos descobrirem suas múltiplas identidades e criatividades", conta Sueli Furlan, professora de Geografia da USP  e selecionadora  do prêmio.

Para o alto e avante 
Antes do Educador Nota 10, o projeto foi apresentado na semana de Geografia da USP. Foi o primeiro contato de muitos alunos com  a universidade.

Hino que os jovens escolheram 
A Vida é Desafio, rap dos Racionais MCs, foi um hino informal do projeto: "É necessário sempre acreditar que o sonho é possível/Que o céu é o limite e você, truta, é imbatível". O som embalava a turma sempre que as dificuldades apertavam  e alguém pensava  em desistir.

 

Melhores índices, mais autoestima

É difícil e arriscado associar o trabalho deles à melhoria de desempenho nas avaliações externas. Mas o fato é que, mesmo por essa régua, a Marili Dias vem avançando. Nos anos finais, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) da escola foi de 4,6 para 5 em dois anos. É maior do que a média do município de São Paulo (4,3) e de escolas-referência da capital paulista, como a EMEF Desembargador Amorim Lima (também 4,3). Os números ainda são baixos, mas algo, inegavelmente, vem acontecendo. "A gente tinha um rótulo horrível", lembra Karina Ferreira, 14 anos, aluna que passou a vida na EMEF Marili Dias. "Hoje, nós fazemos de tudo por essa escola. Ela é nossa, é a nossa família."  

Há ainda um mundo de coisas para melhorar. A escola não é uma ilha e sofre com efeitos de uma região abandonada e violenta. Recentemente, um aluno de 14 anos morreu de overdose. Poucos dias antes da minha visita, todos os tablets foram roubados por uma gangue. A escola está com uma direção provisória e ainda há resistência à pedagogia de projetos. O trabalho do Educador Nota 10 e de suas colegas teve de enfrentar as baixas expectativas dos pais e dos próprios alunos. Mas, apesar de todos os percalços, aconteceu - e agora é uma referência nacional. Fabio, Adriana e Daniela são apaixonados pela escola pública. Quando a paixão se encontra com a técnica, coisas boas acontecem. E o Morro passa a ser um pouquinho mais Doce - ao menos na sala de aula.


Fotos: Raoni Maddalena