Use Chico Buarque para discutir a relação entre centro e periferia
“As Caravanas”, música de seu novo álbum, é um prato cheio para debater o tema
POR: Rodrigo RatierEle é o compositor e intérprete mais cultuado do Brasil. Mas, provavelmente, trata-se de um ilustre desconhecido para seus alunos. Chico quem? Triste – e compreensível. Chico Buarque é uma celebridade discreta. Não participa de programas de auditório, não tem músicas em rádios populares nem vídeos que viralizam no YouTube.
Com o perdão da graça gasta, dá para virar esse disco. O lançamento de Caravanas , 38º álbum de estúdio de Chico, é uma ótima chance para apresentar esse artista fundamental da MPB. As nove canções têm melodias e letras ricas. Os temas – variados – podem servir para discussões em aulas de Língua Portuguesa, Sociologia, História e Geografia.
A proposta deste texto é levar para sua aula a canção que dá nome ao álbum, “As Caravanas”. Apresentamos algumas etapas que você pode seguir na íntegra ou adaptar livremente, dependendo da realidade da sua turma e da discussão que você quer provocar.
1- Apresentando o artista
A sugestão é iniciar com uma provocação. Por incrível que pareça, a maioria dos alunos de Fundamental 2 e Médio já deve ter visto Chico Buarque, embora não consiga ligar o nome à pessoa. Explore o terreno familiar apresentando o clássico meme Chico feliz / Chico triste:
Pergunte aos alunos se já viram essa imagem, que nas redes sociais costuma vir sempre ligada a textos bem-humorados em que a expectativa da primeira frase (o Chico “feliz”) cai por terra em seguida (o Chico “triste”). Imaginam quem seja o rapaz do meme?
Você pode falar brevemente de quem se trata. O Dicionário Cravo Albin de MPB traz um verbete bem completo, que pode servir de base ou para uma pesquisa da turma ou para sua fala.
Outra referência importante é a própria origem do meme: trata-se da capa de Chico Buarque de Hollanda, disco de estreia do artista, em 1966.
Você pode encerrar essa parte com uma brincadeira provocativa – que também é um convite:
2- Apresentando a música “As Caravanas”
Diga para a turma que sua ideia é apresentar uma canção do álbum mais recente de Chico. Antes de qualquer análise, toque a faixa de áudio ou vídeo para a turma se familiarizar.
Não esqueça de distribuir cópias da letra para os alunos acompanharem:
As Caravanas
É um dia de real grandeza, tudo azul
Um mar turquesa à la Istambul enchendo os olhos
Um sol de torrar os miolos
Quando pinta em Copacabana
A caravana do Arará — do Caxangá, da Chatuba
A caravana do Irajá, o comboio da Penha
Não há barreira que retenha esses estranhos
Suburbanos tipo muçulmanos do Jacarezinho
A caminho do Jardim de Alá
É o bicho, é o bochicho, é a charanga
Diz que malocam seus facões e adagas
Em sungas estufadas e calções disformes
Diz que eles têm picas enormes
E seus sacos são granadas
Lá das quebradas da Maré
Com negros torsos nus deixam em polvorosa
A gente ordeira e virtuosa que apela
Pra polícia despachar de volta
O populacho pra favela
Ou pra Benguela, ou pra Guiné
Sol, a culpa deve ser do sol
Que bate na moleira, o sol
Que estoura as veias, o suor
Que embaça os olhos e a razão
E essa zoeira dentro da prisão
Crioulos empilhados no porão
De caravelas no alto mar
Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria
Filha do medo, a raiva é mãe da covardia
Ou doido sou eu que escuto vozes
Não há gente tão insana
Nem caravana do Arará
3- Situando o tema da discussão: a relação centro-periferia
Perceba a atualidade do tema. Chico descreve um dia de Sol no Rio de Janeiro, com um grupo de suburbanos rumo à zona Sul para curtir a praia. A relação centro-periferia pode ser um assunto familiar para seus alunos, principalmente se eles moram em grandes metrópoles. E o conteúdo deve ser contemplado no texto final da Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
A sugestão é abordar o tema no 9º ano. No texto mais atual da BNCC (a 3ª versão), a habilidade EF09GE16 fala em analisar as “aspectos populacionais, urbanos, políticos e econômicos” de países da América, o que comporta “discutir desigualdades sociais e econômicas”. Prato cheio para a letra de As Caravanas, como veremos.
4- Situando o tema na realidade do Rio de Janeiro
A trama, como já adiantamos, é tipicamente carioca. Os primeiros versos trazem a ambientação e o deslocamento humano que será o foco da narrativa. Convide a turma para ler com atenção:
É um dia de real grandeza, tudo azul
Um mar turquesa à la Istambul enchendo os olhos
Um sol de torrar os miolos
Quando pinta em Copacabana
A caravana do Arará — do Caxangá, da Chatuba
A caravana do Irajá, o comboio da Penha
Uma primeira pergunta – básica: de que Chico está falando?
Os alunos podem dizer que se trata de um deslocamento, e o ideal é que a gente provoque para ter o máximo de informações. De onde para onde? O destino é Copacabana, e a origem – citada na letra –são bairros como Arará, Caxangá, Chatuba, Irajá, Penha, Jacarezinho e Maré.
Quais as características de cada um desses lugares? Google Mapas e Google Earth são aliados nessa descoberta.
- Pesquise junto com a turma, no computador ou no smartphone, algumas imagens de cada um dos bairros. As fotos devem indicar que Copacabana (a sugestão é navegar na avenida Atlântica) é um bairro de classe média-alta, turístico e organizado em termos urbanísticos. Os locais de origem, por outro lado, são comunidades populares, com habitações precárias e sem planejamento urbano.
- Qual o tamanho da viagem? A função “rota” do Google Mapas ajuda a responder. São viagens de 50 quilômetros (caso da Chatuba de Mesquita), que podem levar até duas horas no transporte público.
- Vale explorar a polissemia (variedade de significados) de alguns termos.
- “Real grandeza” é também o nome de uma rua do bairro de Botafogo, situada na entrada do morro Santa Marta. Ela termina no túnel Velho, que liga Botafogo a Copacabana. “É dia de real grandeza”, nesse sentido, pode indicar que é dia de praia.
- “Tudo azul” é também uma gíria dos anos 1980, que significa “tudo certo”, “tudo bem”.
Vale checar se a turma compreende o significado de “caravana” (grupo de pessoas que se reúnem para viajar ou sair) e de “comboio” (conjunto de animais ou pessoas que se deslocam juntos para um mesmo destino).
- Convide a turma a arriscar: existe algum sinônimo atual para essas palavras na gíria carioca? Uma palavra usual, com significado parecido, é bonde, que a partir do século 20 passou a designar também um “grupo de pessoas amigas”, como registra o Houaiss.
5- O sentido do deslocamento
O que motiva uma viagem tão longa?
- A resposta também está na letra: “um mar turquesa à la Istambul”, ou seja, a praia e o mar deslumbrante como na cidade turca. As faixas de areia no Rio são disputadas nos fins de semana. Vão para a praia pessoas de todas as classes – da média e média-alta que moram nos bairros nobres das Zonas Sul (Copacabana, Ipanema, Leblon e São Conrado), na Barra da Tijuca e no Recreio dos Bandeirantes, e das classes populares das favelas e subúrbios do Rio.
- Não se trata de um encontro trivial. Há tensão no ar e explosões ocasionais de violência. Pergunte à turma se eles já ouviram falar dos arrastões (alguns vídeos do problema aqui).
- Chame a atenção para o seguinte verso: Não há barreira que retenha esses estranhos. A que se refere? No computador, você pode abrir reportagens que tragam ações organizadas pelo poder público. A notícia do UOL, de 2015, traz um exemplo de ações de revista em adolescentes em ônibus vindos da Baixada Fluminense e do subúrbio para, em tese, prevenir arrastões na orla. As revistas a ônibus são exemplos das barreiras de que fala Chico.
6- A visão do centro sobre os suburbanos
O “estranhos” do verso é a porta de entrada para analisar como as pessoas que vêm de bairros populares são vistas pela opinião pública:
Suburbanos tipo muçulmanos do Jacarezinho
A caminho do Jardim de Alá
É o bicho, é o bochicho, é a charanga
Cabe provocar: por que Chico compara suburbanos e muçulmanos?
Uma aproximação é o preconceito que ambos os grupos sofrem. Hoje em dia, recai sobre os muçulmanos o peso de serem considerados, indiscriminadamente, como terroristas. Quanto aos suburbanos, o rótulo é o de serem criminosos.
Em comum, o fato de serem temidos e, ao mesmo tempo, desconhecidos por quem os teme -- e às suas manifestações: “é o bicho, é o bochicho, é a charanga”, referência à arte musical do subúrbio, das bandinhas de sopro meio desafinadas (as charangas) ao funk.
Alguns complementos, caso você queira avançar um pouco mais nesse trecho:
- Jardim de Alá é um jogo com nome de Deus no islamismo e o parque nas margens do canal do que liga a lagoa Rodrigo de Fritas ao mar, separando Ipanema e Leblon, dois dos bairros mais nobres do Rio.
- O nome do parque não tem conotação religiosa. Foi baseado no filme americano Jardim de Alá, que fez sucesso nos cinemas quando o local foi inaugurado em 1938.
- Provoque a turma: vocês conseguem identificar alguma influência do funk na música? Mostre que em alguns trechos que enfocam os suburbanos, a percussão transforma discretamente o ritmo no “batidão” do funk.
- Esses trechos, que aparecem e somem diversas vezes ao longo da música, têm também um acompanhamento de beatbox (reprodução do som da bateria com a boca) feito por Rafael Mike, integrante do grupo de funk Dream Team do Passinho.
O desconhecimento do centro em relação à periferia dá origem a narrativas demonizantes:
Diz que malocam seus facões e adagas
Em sungas estufadas e calções disformes
Diz que eles têm picas enormes
E seus sacos são granadas
Lá das quebradas da Maré
Interessante notar o uso do “diz que”. Pergunte à turma: quem diz?
Impossível saber. É um caso de sujeito indeterminado. Chico aposta na expressão, tão corriqueira na linguagem coloquial, para estabelecer a ligação com fofocas ou boatos.
Quais?
Nesse caso, a turma pode identificar as narrativas que ligam virilidade sexual (“picas enormes”, “sacos são granadas”) e violência (“malocam seus facões e adagas).
Uma sugestão é encerrar esta etapa com perguntas mais amplas para que todos possam opinar e refletir sobre o sentido da letra até aqui. Como surgem essas histórias? Como elas adquirem o status de verdade para determinados grupos sociais? Na opinião dos estudantes, como desconstruir essas versões?
7- Os pedidos de reação
Até aqui, os suburbanos tomam conta da ação. Nos versos seguintes, porém, a letra traz explicitamente um outro personagem.
Com negros torsos nus deixam em polvorosa
A gente ordeira e virtuosa que apela
Pra polícia despachar de volta
O populacho pra favela
Ou pra Benguela, ou pra Guiné
A turma consegue identificar quem é? Assim que localizarem “a gente ordeira e virtuosa”, pergunte o que pede esse grupo. Além do verso “apela pra polícia despachar de volta o populacho”, é importante que a turma identifique que o verso abaixo é parte da fala do mesmo grupo:
Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria
Finalmente, indague: a quem Chico pode estar se referindo? Os estudantes devem citar os habitantes dos bairros nobres, e você pode debater se a visão apresentada, na opinião da classe, é próxima da realidade ou, de alguma forma, também contém algum grau de generalização.
- Uma provocação que você pode fazer: quando Chico diz “gente ordeira e virtuosa”, ele acredita que o grupo possua essas qualidades? Ou está sendo irônico? Avançando na letra, a classe percebe que é ironia. Nos trechos finais, o autor vai se referir a eles como “gente tão insana”.
- Explique que “populacho” tem caráter negativo. O Houaiss define o termo como “grupo menos favorecido de uma comunidade”, sinônimo de ralé. O autor aqui, explicita o discurso da elite.
- Favela? Benguela? Guiné? Chico fala do desejo dos mais ricos de mandar o populacho de volta para casa – seja a atual, seja a dos ancestrais. Benguela é uma cidade de Angola e Guiné é um país do continente africano. Estabelece-se a ligação entre o preconceito de hoje com a escravidão de ontem.
- A música sugere algum tipo de explicação para o preconceito? Leve a turma a ver que o seguinte verso pode ensaiar uma explicação:
Filha do medo, a raiva é mãe da covardia
8- Delírio ou história real?
O refrão traz para o centro da cena um elemento natural e seus efeitos
Sol, a culpa deve ser do sol
Que bate na moleira, o sol
Que estoura as veias, o suor
Que embaça os olhos e a razão
Vale contar para a turma que, no século 19, existiam correntes teóricas que defendiam haver uma relação direta entre o clima e o estágio de “civilização”: quanto mais quente, menos desenvolvida a sociedade. A Superinteressante tem uma reportagem sobre esses estudos – que, com o tempo, passaram a ser considerados racistas e foram descartados.
O calor é tamanho que Chico se pergunta se está “doido”. A cena parece tão absurda e primitiva que não pode ser verdade. Passado e presente se fundem: favela, prisão, navios negreiros:
E essa zoeira dentro da prisão
Crioulos empilhados no porão
De caravelas no alto mar
Leve a turma a perceber que o autor usa o recurso de uma atmosfera delirante para mostrar que vê uma continuidade entre a escravidão e a condição vulnerável da população suburbana – majoritariamente negra – nos dias de hoje.
A constatação pode ser o gancho para a pergunta final: o autor está certo nessa avaliação? O que pode ser feito para mudar essa realidade?
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