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Delia Lerner: “Temos de contestar a crença de que, se está escrito, é verdade”

Uma das maiores referências em Educação da América conversou com NOVA ESCOLA sobre ler para aprender, textos informativos e notícias falsas

POR:
Paula Peres
Crédito: Divulgação

A educadora argentina Delia Lerner é referência em estudos sobre o aprendizado das crianças. Em recente vinda ao Brasil, ela veio apresentar os resultados de sua pesquisa sobre leitura de textos com o propósito de aprender sobre os conteúdos. Sua defesa é de que os professores poderiam focar menos nas características dos textos e mais no que se pode aprender de seu conteúdo.

Na entrevista exclusiva com NOVA ESCOLA, Delia também falou sobre como a escola pode ajudar a combater as notícias falsas -- conhecidas também pelo termo em inglês

fake news -- que ganharam muito espaço na internet. “Parece algo novo, mas o problema segue o mesmo: formar leitores críticos para formar cidadãos”. Veja a entrevista a seguir.

NOVA ESCOLA: Recentemente, você pesquisou sobre a leitura de textos informativos no Ensino Fundamental. Quais foram as suas principais conclusões?

DELIA LERNER: Minha pesquisa não está focada em ler textos informativos, mas em ler para aprender conteúdos. Tem a ver, especificamente, com ler para aprender História e Ciências Naturais. E eu estou mais diretamente envolvida na pesquisa sobre ler para aprender História.

O problema é como as crianças podem aprender a pensar em diferentes situações históricas e outras questões, lendo textos que tratam dessas situações históricas. E minha questão é em que medida o que as crianças aprendem na prática de ler textos históricos, elas estão aprendendo algo que podem generalizar a outras situações de leitura.

Alguns professores acham que os textos informativos devem ser trabalhados só mais tarde, nos anos finais do Ensino Fundamental, quando os alunos já estiverem mais apropriados do sistema de escrita. O que você acha disso? Existe uma maneira correta de introduzir esses textos aos estudantes?

Nosso objetivo não é que as crianças aprendam a ler textos informativos ou expositivos. Nosso objetivo é que as crianças aprendam sobre o conteúdo que lêem. No caso da linguagem jornalística, esse tipo de texto que tem função informativa está agora na escola básica no campo de trabalho de Linguagens. Então, me parece que tem sentido a busca por formar um leitor crítico do discurso jornalístico como uma responsabilidade que agora está com Linguagens. Mas o propósito que buscamos não é aprender a ler textos jornalísticos, é formar um leitor crítico do discurso jornalístico. Isso implica ler textos jornalisticos de diferentes gêneros.

Os textos das diferentes áreas de conhecimentos nem sempre são expositivos. Os textos históricos, por exemplo, geralmente são uma combinação de narração e argumentação, que tem um componente importante de explicação, mas que dificilmente se definem como expositivos. O que acontece é que, quando se diz texto informativo, o que se coloca em primeiro lugar é a função que tem esse texto, que é diferente da função estética de um texto literário, que é diferente da função de dar instruções para uma ação, como é um manual de uso de um tablet, por exemplo. 

Eu diria que ensinar a ler textos informativos é um problema mal encarado, temos que enfrentar esse problema de outro ponto de vista.

Qual seria esse ponto de vista?

Essa ideia está conectada com a ideia de que as crianças, desde pequenas, precisam se familiarizar com uma diversidade de textos. Isso proveio de uma aplicação dos estudos de uma linguística textual que estabeleceu que havia diversidade de gêneros textuais, então essa variedade também deveria ser objeto de ensino.

Tal como nós vemos o problema hoje, há 17 anos, o problema não é familiarizar-se com os textos informativos, o problema é inteirar-se de algo. Por exemplo: nós, no primeiro ano, trabalhamos com grupos aborígenes que existiram em diferentes regiões da Argentina. Interessa que as crianças aprendam sobre esse tema, então lemos materiais que tenham a ver com isso. Alguns desses materiais, o professor lê e a turma vai discutindo, e o professor vai explicando o que as crianças não têm condições de entender.

Nós preferimos essa solução, que o professor ajude, mas oferecendo outras informações que as crianças não têm conhecimento, que permitem compreender o que está escrito. E podemos selecionar alguma parte desse texto que as crianças conseguem compreender por si mesmos, no contexto do que estamos estudando. Eles já têm bastante informação sobre esse grupo, como já sabem bastante que esse pedaço onde se amplia, por exemplo, que se dedicavam à pesca. E há uma parte do texto que explica como eles pescavam, quais peixes haviam na região em que viviam etc. E então essa parte, depois que as crianças sabem bem do que se trata, eles podem ler autonomamente, e depois discutimos. Mas o centro está que eles aprendam sobre como vivia esse grupo aborígene, não está que aprendam a lidar com esses textos informativos. Mas passou pelos textos informativos, entende?

Como formar leitores críticos na atualidade das fake news compartilhadas pelas redes sociais?

É um caso particular formar um leitor crítico nessa situação em que você está bombardeado de informações com diferentes intenções e fácil acesso a tudo. Mas como tema, a formação do leitor crítico é uma constante da escola primária, não é que começou com a internet. O propósito tem a ver com a formação do cidadão.

É verdade que há informações falsas na internet, mas também há diferentes perspectivas sobre os acontecimentos sociais e políticos. O que a Educação pode contribuir para tornar leitores críticos é primeiro esclarecer que alguém que escreve algo tem uma intenção.

O problema central é que os meninos pequenos e os adultos que estão menos familiarizados com a cultura escrita tendem a pensar que o que está escrito é verdadeiro.

No caso das crianças, tem uma pesquisa de Emilia Ferreiro sobre o verdadeiro e o falso, e os meninos não admitem que eu escreva, por exemplo, “os pássaros não voam”. Eles dizem “não pode escrever isso, porque está errado”.

Há uma tendência de pensar que se está escrito, é verdade. E a formação do leitor crítico deve contra-argumentar essa suposição, tem que mostrar que não é assim, e que sobre o mesmo tema há diferentes posições. E isso tanto com a cultura do impresso quanto com o digital. É verdade que no mundo digital o problema está multiplicado na milésima potência. Mas me parece que como problema, segue sendo o mesmo.

Há alguma atividade prática que os professores podem realizar com os alunos, já no Ensino Fundamental 1?

Há muito o que se fazer na escola primária para preparar as crianças para serem leitoras desses conteúdos.

É importante que as crianças aprendam, quando vão buscar uma informação, a distinguir quais são as fontes mais confiáveis. Não estou falando do que se publica nas redes, como Facebook, não. Por exemplo, a Wikipedia. É importante falar para as crianças que quando você lê algo na Wikipedia, é somente o que pensa uma pessoa. E não é a mesma coisa consultar algo ali e consultar uma fonte científica. É uma ajuda para as crianças, não tem como largá-los e dizer que busquem informação sobre algo sem orientá-los.

Também é necessário, diante de um texto jornalístico, saber quem escreveu, quais intenções tem alguém que disse o que está dizendo, comparar com o que disseram outras publicações, outros meios, outros autores sobre o acontecimento ou processo, e adotar uma posição própria, que pode coincidir com alguma dessas ou com nenhuma dessas.

Ao se posicionarem, algumas pessoas acabam confundindo opiniões com verdades e argumentam contra afirmações incontestáveis, como a de que a Terra é redonda. Há pessoas que afirmam que a Terra é plana, por exemplo. O que o professor pode fazer quando se depara com essa realidade?

Esse é um exemplo extremo, né? Não há ninguém que acredite que a Terra seja plana…

Não, é verdade. Eles recebem até um nome: são os terraplanistas.

[Muitos risos] Não sei, acho que um primeiro passo é mandá-los ler a história da Ciência.

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