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O massacre em Realengo como marco da violência

A tragédia na escola carioca é resultado de uma insanidade, mas se transformou num símbolo da cultura de intolerância que atinge o país

POR:
Luis Carlos de Menezes
Foto: Marina Piedade
Luis Carlos de Menezes
Físico e educador da
Universidade de São Paulo (USP).

O Brasil tem assistido com horror a repetidas chacinas. As vítimas já foram camponeses em Eldorado de Carajás, no Pará, desabrigados na Candelária, no Rio de Janeiro, presidiários no Carandiru, em São Paulo, e gangues em combates entre si ou com a polícia em diferentes lugares do país. Assassinato em massa de estudantes, porém, e por alguém sem antecedentes, é algo mais comum no noticiário internacional. Se já ficávamos perplexos com massacres em escolas distantes, além de lamentar profundamente, deveríamos também tentar compreender como nos alcançaram.

É claro que um desequilíbrio pessoal resultou na tragédia - nessa medida imprevisível -, mas, se a olharmos em seu contexto, talvez vejamos como frustrações e misticismos podem hoje se combinar num anjo vingador, que despeja seu ódio na instituição à qual debita todo seu infortúnio. Enquanto ex-alunos foram à escola dias depois, homenageando o aniversário da instituição, outro mostrou seu ressentimento brutal, executando jovens cuja vitalidade e alegria talvez lhe fossem insuportáveis.

Não foi um surto, mas um projeto deliberado, em que convicções místicas parecem ter legitimado a violência. Terá incorporado um homem-bomba fundamentalista que explode os que considera infiéis ou um jovem perdedor na sociedade individualista que mata colegas por ter sido ignorado ou desprezado? Nosso assassino parece ter combinado os dois modelos, ao preencher na morte o vazio de sua vida, ao sucumbir no inferno de uma humilhação solitária.

Em outros tempos, isso pareceria estranho à cultura brasileira de convívio, em que eram usuais o preconceito e a segregação, mas não se pretendia destruir o que fosse objeto de estranhamento ou de desprezo. Tudo indica, no entanto, que isso está mudando, pois já temos assassinatos em série de mendigos, agressões em grupo a homossexuais e batalhas campais entre torcidas desportivas, que mostram a intolerância violenta instalada entre nós. E se o assassinato em massa se deve a uma loucura, ela se insere no contexto global de matanças mal compreendidas, inspiradoras para mentes frustradas e dominadas por certezas sectárias.

A escola pode ser um dos alvos, mas também igrejas, bares e clubes - onde se expressem convicções, preferências e tendências - podem ser punidos por "encarnarem o mal". Eis mais um desafio deste complicado mundo em que estudamos, trabalhamos, nos divertimos, amamos e educamos. Na página 48 desta edição, discute-se como se recompõe uma escola traumatizada por violência tão brutal, pois como disse uma professora, dias depois da tragédia: "Vamos nos reerguer, que nossa escola tem de ser maior do que isso". Vale reafirmar, portanto, que a Educação precisa ser ativa, mais do que defensiva, contra a violência em geral, e combaterá a intolerância, o preconceito e a segregação ao apresentar como conquista, não como problema, nossa diversidade étnica, religiosa ou sexual.

O que terá mudado, afinal, se a escola nunca foi uma ilha? Mudou o mundo e nele a escola, que hoje abriga problemas e possibilidades da sociedade contemporânea: tribos rivais e ONGs solidárias, crenças diversas e crianças traumatizadas, jovens solitários e comunidades virtuais. Assim, o oásis da infância ou o templo do saber já se tornaram também uma trincheira, em que nós, professores, num só instante transitamos entre orientar o coletivo e amparar desgarrados, acomodar dissensos e evitar assédios, divulgar ciência e combater crendices. É esse o bom combate da sala de aula, e nossas armas são toda compreensão e toda coragem deste mundo, ao lado da constatação de que Littleton, a cidade americana onde ocorreu o massacre da escola Columbine, também pode ser aqui.

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