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Eu fui punida por debater

Demissões e notificações ameaçam quem discute politica e gênero. Saiba o que fazer

POR:
Rodrigo Ratier e Pedro Annunciato

"O Karl Marx é baile de favela / O 1º B é baile de favela / Sociologia é baile de favela / E o capitalismo está acabando com a galera." Os versos são da paródia criada pelos alunos do 1º ano do Ensino Médio do CE Professora Maria Gai Grendel, em Curitiba. Sob a orientação da professora de Sociologia Gabriela Viola, eles escolheram a música e criaram a letra com conceitos do marxismo. Gabriela gostou, gravou e publicou em seu Facebook para prestigiar a garotada. Num espaço de 24 horas, o vídeo viralizou, mas não como a turma pretendia. Perfis que não querem saber de Marx (nem de funk) na Educação compartilharam as imagens e detonaram a professora, vendo na aula o exemplo mais bem-acabado da doutrinação marxista que, para eles, assola o país.

Paródia de funk  com conceitos  marxista rendeu  suspensão a Gabriela. Foto: Marcelo Almeida

A repercussão levou a Secretaria de Estado da Educação do Paraná a afastar Gabriela sob o argumento de que seus métodos e o funk seriam inadequados. "Não tive apoio da direção da escola. Trabalhando, poderia me defender melhor", diz. Com o apoio de colegas e alunos, ela foi reintegrada uma semana depois.

O cenário de polarização política tem tornado casos assim mais visíveis. No centro das polêmicas estão movimentos conservadores que visam banir das escolas discussões sobre política e gênero. A tática passa longe do debate franco. Ao contrário: educadores têm sido afastados, como Gabriela, demitidos, como Paulo César, ou recebido notificações extrajudiciais, como Deneir. As histórias dos três você conhece nesta reportagem.

Do ponto de vista educacional, é legítimo discutir a forma de trabalho de qualquer educador. O que não se admite são episódios de ameaça ou execração. A escola precisa se preparar para enfrentar esse tipo de ação.

Um primeiro esclarecimento diz respeito às notificações extrajudiciais que ameaçam processar por danos morais educadores que debaterem política ou gênero. Apesar de assustadoras, seu efeito legal é nulo. "A notificação é uma carta que pode ser redigida por qualquer um com argumentos jurídicos para pressionar a outra parte a resolver um problema", afirma Rafael Kirchhoff, presidente da Comissão de Diversidade Sexual da OAB do Paraná. O apoio jurídico só é necessário se o processo chegar à Justiça. "Nesse caso, a direção deve reportar o caso à Secretaria de Educação, que, na procuradoria do estado ou do município, defenderá a escola", diz Fernando Mendes, formador de gestores educacionais na Comunidade Educativa Cedac. Nos tribunais, é provável que a escola vença, afirma Rafael. "Os princípios constitucionais da liberdade de ensinar e de aprender e o pluralismo são garantias para o docente."

Mais importante ainda é agir para evitar que as coisas cheguem a extremos. Isso passa por reforçar o diálogo aberto com a comunidade sobre o papel da escola na formação dos cidadãos. "As famílias devem ter clareza da finalidade da instituição", ressalta Fernando. Um ponto central é enfatizar que escola e família têm dinâmicas próprias. No livro Por uma Pedagogia da Dignidade, José Sérgio Carvalho, professor de Filosofia da Educação pela USP, lembra que crianças e adolescentes têm papéis sociais diferentes em cada uma dessas instituições: são filhos em família e alunos na escola. Essa distinção é boa para o amadurecimento pessoal, pois põe os pequenos e jovens em contato com diferentes regras de organização.

Foto: Ricardo Toscani

Postagens questionadas

"Foi um susto, pois eu tinha uma relação ótima com as turmas. Tudo desandou depois que defendi o ex-presidente Lula no Facebook. Pais reclamaram à escola que eu pregava o socialismo. Respondi que nunca levantei bandeiras na escola, não reprimo opiniões e que o clima na sala era muito positivo. Dias depois, fui demitido por ter 'postura inadequada', mas a coordenação não soube dar sequer um exemplo."

PAULO CESAR RAMOS, ex-professor do Colégio Candelária, em Indaiatuba (SP)

 

OUTRO LADO O colégio se recusou a comentar o caso. Disse apenas que o relato de Paulo é "uma história inverídica".


 

 

A escola mostra outro caminho

Quando os pais desejam decidir sobre os "valores morais" que serão "transmitidos" aos seus filhos - como consta no modelo de notificação -, a direção pode convidar a família para uma conversa. O objetivo é mostrar que a escola possui um projeto reconhecido pela comunidade escolar e segue currículos e políticas públicas também decididos por meio de processos democráticos.

Claro que professores erram. Doutrinação, por exemplo, é sempre errado. Há também conteúdos inadequados a certas faixas etárias. Quando coisas assim acontecem, a alternativa pedagógica o diálogo antes de tomar providências. O coordenador deve deixar o docente expor seus pontos, investigar o caso com outros envolvidos (alunos e colegas, por exemplo) e aprofundar suas observações acompanhando diretamente a aula. "Como qualquer profissional, educadores têm competências e deficiências. É trabalho do coordenador colaborar para que a equipe docente melhore sempre", diz Fernando. Nesse sentido, as eventuais mudanças de conduta - que às vezes são, sim, necessárias - devem ser pactuadas entre professor e coordenador. Mais uma vez, o norte deve ser a articulação entre a prática em sala com as políticas da rede e o projeto político-pedagógico da instituição. Esse conjunto de documentos evita medidas arbitrárias e garante que a Educação contemple valores reconhecidos por todos. São a base de um ensino que não precisa de intimidação.

Na saída da escola, grupos de alunos se manifestam em apoio ao professor. Fotos: Rafael Facundo e Bernardo Moreira

Sexualidade interditada

"No 2º ano do Ensino Médio, propus um projeto sobre gênero e sexualidade. Uma semana depois, recebi um ofício da deputada distrital Sandra Faraj dizendo que os alunos estavam sendo forçados a aceitar a 'ideologia de gênero'. Não é fácil tomar uma pancada dessas, mas contei com o apoio dos alunos, da direção e da Secretaria de Educação, que está respondendo à deputada."

DENEIR DE JESUS MEIRELES, professor de Biologia do CE Nº 6, em Ceilândia (DF)

 

OUTRO LADO "A família de uma aluna me procurou para denunciar a situação. Solicitei informações por ofício. A aluna, seus pais e esta parlamentar discordam do conteúdo sugerido", Sandra Faraj (SD-DF).