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Conheça experiências brasileiras inspiradas em Reggio Emilia

O olhar dos pequenos orienta projetos que entrelaçam pesquisa, desenho e escrita, entre outros conhecimentos, em escolas inspiradas na cidade italiana de Reggio Emilia

POR:
Beatriz Santomauro e Bruna Nicolielo

Na cidade italiana de Reggio Emilia há trabalhos infantis em todo canto. Numa passagem subterrânea, próxima à estação de trem, uma exposição de fotografias e desenhos forra as paredes. No comércio e nos restaurantes, as mostras são frequentes. É comum ainda ver crianças pelas praças fazendo desenhos de observação e trabalhos de campo. Os pais, por sua vez, participam de atividades variadas, como cuidar da horta na escola, e podem acompanhar os registros das professoras, que ficam na porta de cada sala. Esse pacto pela Educação dos pequenos, que envolve famílias e educadores, nasceu após a Segunda Guerra Mundial, quando um grupo de pais resolveu erguer escolas na cidade devastada, como conta o livro As Cem Linguagens da Criança - A Abordagem de Reggio Emilia na Educação da Primeira Infância (Carolyn Edwards, Lella Gandini e George Forman, 320 págs., Ed. Artmed, tel. 0800-703-3444, 69 reais). 

O educador italiano Loris Malaguzzi (1920- 1994) deu respaldo ao projeto. Ele introduziu na rede pública local a ideia da Pedagogia da escuta, em que a criança é protagonista de seu processo de conhecimento. "Essa ideia é ligada à disposição de ouvir os outros e a si próprio. Mesmo os bem pequenos constroem conhecimento que merece ser considerado", diz Bruna Elena Giacopini, educadora de Reggio Emilia. Para Malaguzzi, a criança tem inúmeras formas de pensar, de se exprimir, de entender e de se relacionar. Baseado em Jean Piaget (1896-1980), John Dewey (1859-1952), e Lev Vygotsky (1896-1934), entre outros, ele concebeu uma proposta que usa a linguagem gráfica para explorar as formas de aprender das crianças. Desenhando, elas analisam o tema de estudo e comunicam suas ideias, mesmo antes de estarem alfabetizadas. 

As propostas incluem pesquisa, produções artísticas e de textos, observação, discussão, entrevistas, explorações de números e o que mais for necessário para as crianças experimentarem e, com isso, avançarem. A rotina é semelhante à de nossas escolas, mas alguns pontos chamam atenção, como o fato de os pais entrarem na sala e brincarem com os filhos em vez de deixá-los na porta e a ausência de um tempo predeterminado para o encerramento de um projeto: o importante são as explorações.

Os espaços contribuem para o sucesso do trabalho. As salas são amplas e interligadas, a cozinha é envidraçada para que crianças e funcionários interajam, o pátio tem áreas ao ar livre que favorecem a exploração e a curiosidade. Nos corredores, são afixados os trabalhos das crianças e por todos os ambientes fica evidente o cuidado com a estética. Os materiais que alimentam as explorações - objetos reaproveitados e rejeitos de indústrias parceiras - são cuidadosamente selecionados. "Pedaços de madeira, folhas, pedras e galhos, por exemplo, são dispostos com organização no ateliê e se tornam atraentes", diz Débora Rana, da Escola Projeto Vida, na capital paulista, que visitou escolas de Reggio. 

Além do professor, a turma conta com um atelierista. "Ele trabalha com o educador responsável pela sala para aprofundar a investigação dos projetos e sugerir técnicas e materiais para a exploração da turma", explica Ana Teresa Gavião, que fez parte do doutorado na cidade. As produções das crianças, assim como suas falas, alimentam a reflexão, e a máquina fotográfica, o caderno e a filmadora estão sempre à mão para registrar o processo de aprendizagem. Parte dessa documentação é apresentada aos pais em reuniões ou outros eventos. Também alimenta a reflexão docente. A documentação educativa é considerada um patrimônio da escola, por estruturar as teorias educativas e didáticas e permitir a discussão permanente da prática. 

Um projeto nunca é igual ao outro e não pode ser replicado. Mas por reunir boas experiências, Reggio Emilia é uma referência em Educação Infantil no mundo todo. O desafio, portanto, é compreender a concepção reggiana, pensar em como adaptá-la à nossa realidade e colocar em prática o que ela tem de melhor. Selecionamos trabalhos de escolas que souberam, ao olhar e ouvir suas crianças, respeitar o momento de cada uma e suas dúvidas, fazer projetos de excelência. As fotografias que ilustram estas páginas e os relatos a seguir, produzidas pelas próprias professoras, serviram para que refletissem sobre a prática e mostram do que os pequenos são capazes.

 

 


Espaço que educa e registra

A turma brincou com vários elementos (como tampinhas, folhagens, forminhas, palitos e pedrinhas), que permitem uma exploração mais aberta e flexível. Também criou esboços dos desenhos dos mosaicos com base nesses materiais. Arquivo pessoal/Tatiana Joice Schmidt

Em Joinville, a 176 quilômetros de Florianópolis, cada unidade da rede municipal foi convidada a reestruturar seu espaço. A diretriz tinha como inspiração a proposta reggiana de adaptar os ambientes de acordo com os projetos e as experiências de aprendizado. "Em Reggio Emilia, nosso ambiente se modifica, num diálogo entre Arquitetura e Pedagogia", explica a atelierista Iride Sassi. Pensando nisso, Tatiana Joice Schmidt, professora do CEI Raio de Sol, levou o desafio ao seu grupo, composto de crianças de 4 anos. "Surgiu a ideia de construir uma praça. Busquei, então, conteúdos que nos ajudassem a resolver as situações que apareciam no percurso." A meninada fez um reconhecimento do local para planejar o que seria feito e que materiais usar. Houve um consenso sobre o uso de pneus descartados e sobras de construção civil. 

A próxima etapa foi dedicada à pesquisa de referências. Os pequenos estudaram a biografia do catalão Antoni Gaudí (1852-1926) por meio de textos, vídeos e sites previamente selecionados. Também analisaram as técnicas do arquiteto, optando por usar mosaicos na construção. Em seguida, planejaram e organizaram os espaços, além de construírem uma maquete. As decisões sobre o trabalho eram sempre tomadas em grupo. Todos podiam expressar seus desejos e ideias. 

Vários tópicos aprofundaram os conhecimentos dos pequenos. Conceitos de grandezas e medidas foram trabalhados na criação da praça. O grupo mediu a área com barbante e trena. Depois, somou, diminuiu e discutiu os resultados. Arquivo pessoal/Tatiana Joice Schmidt

Durante o processo, surgiram desavenças. "Eu quero usar a cor verde!", falou Carolyne. "Mas eu quero amarelo!", disse Maria Vitória. "Aos poucos, a garotada foi aprendendo a ceder e buscar consensos", explica Tatiana. A resistência foi sendo substituída por comportamentos conciliadores: "Calma, gente, precisamos entrar em um acordo! O que vocês acham de usarmos as duas cores?", sugeriu João Felipe. 

Tendo como referência uma praça do bairro e o Parque Güell, em Barcelona, na Espanha, a turma planejou onde ficariam os elementos. Depois de conhecer uma planta baixa, fez desenhos e uma maquete. Só então dispôs os elementos na praça. Arquivo pessoal/Tatiana Joice Schmidt

A professora planejou um momento para que as crianças experimentassem fazer mosaicos com materiais diversos. "Isso permitiu que cada uma traçasse seu percurso de criação, que envolveu escolhas, experiências pessoais, aprendizagens e a relação com a natureza e com diferentes elementos", explica. Numa reunião, todos discutiram as formas que seriam usadas nos mosaicos. Os pneus foram distribuídos no espaço, tendo a maquete tridimensional como referência. Por fim, as crianças reproduziram os desenhos em papel-manteiga e os azulejos foram colados. 

Depois de planejar muitos esboços, todos reproduziram os desenhos coletivamente. Os pais ajudaram a cortar os azulejos usados nas colagens. Com o apoio da professora, os pequenos acomodaram as placas sobre o cimento. Arquivo pessoal/Tatiana Joice Schmidt

A praça - um belo registro do percurso da criançada - foi inaugurada com a presença das famílias e hoje é usada por toda a comunidade escolar. Faz juz à crença de Malaguzzi sobre o poder dos ambientes para organizar situações de aprendizagem instigantes e promover relacionamentos entre pessoas de diferentes idades.

As expressões da infância

"Perdi meu anel no mar/ não pude mais encontrar/ E o mar me trouxe a concha/ de presente pra me dar", cantavam as crianças do grupo de 4 anos da CMEI Cid Passos, em Salvador, enquanto movimentavam o corpo reproduzindo o movimento das marés. A atividade fechou um projeto que valorizou o protagonismo e as múltiplas expressões dos pequenos (corporal, musical, plástica, oral e escrita). Tudo começou quando João Guilherme levou um siri até a professora Geiza Luzia do Espírito Santo. Como o grupo ficou igualmente interessado no animal, ela propôs um passeio pelos ambientes externos da unidade, que fica próxima à praia. Na lagoa que ali se forma durante a maré alta, a turma viu siris, caranguejos, peixes, aves e espécies vegetais. 

A etapa seguinte envolveu a pesquisa sobre os animais observados. O movimento das marés também intrigava a meninada, até que Isabele observou: "A praia leva e traz a lagoa!". "Por que ela enche e fica vazia? O homem tira a água dela?", questionou Eliseu. Novas pesquisas possibilitaram descobertas sobre o fenômeno. Todos ficaram encantados com o brilho das conchas que observaram no espaço. A professora aproveitou para problematizar noções de quantidade. Houve contagens e comparações entre números. 

A garotada registrava tudo o que via por meio de desenhos com a exploração de técnicas e materiais variados. "É importante usar essa diversidade para consolidar as formas. O desenho, que torna visível o pensamento infantil, não deve ser feito apenas com lápis e caneta", diz Deanna Margini, educadora de Reggio Emilia. Geiza também estimulou a prática da escrita de próprio punho. A cada nova visita à lagoa, as crianças faziam uma lista do que haviam encontrado, como animais e plantas. Elas escreviam de acordo com suas possibilidades, para discussão posterior. O grupo também produziu textos individuais e coletivos, tendo a professora como escriba. "Em um deles, pedi que todos imaginassem a história do lugar. O resultado foi uma história, que começava com o 'era uma vez' dos contos de fadas, estrutura conhecida da turma", diz Geiza. 

Num outro passeio, os pequenos observaram a mariscagem - fonte de renda para as famílias da região. As atividades envolveram, ainda, a exploração de movimentos corporais e a fantasia. A garotada reproduziu o movimento dos caranguejos e andou num círculo, feito com uma corda, que simulava o contorno da lagoa. Também entoou cantigas e participou de brincadeiras tradicionais. No fim do trabalho, os pequenos tinham experimentado aprendizagens significativas em diversas áreas do conhecimento.

Durante o trabalho, Geiza convidou a meninada a registrar tudo o que via por meio de desenhos. A lagoa foi representada de várias formas: desenho livre e pintura em papel, escultura em argila e pintura num painel de azulejos em uma parede da escola. Arquivo pessoal/Gleiza Luzia do Espírito Santo

Pesquisa e muitos desenhos

"O Sol não tem laranja, ele é amarelo. O fogo é laranja. Ele é uma bola de luz", dizia Samuel, 5 anos. "Quando o Sol está aqui, na China é Lua. Quando a Lua está aqui, na China é Sol", comentava Isabella, da mesma idade. Ideias como essas mobilizavam a turma da pré-escola do Jardim dos Pequeñitos, em Santo André, região metropolitana de São Paulo. Pensando nisso, a professora Juliana Ferrazzo perguntou o que era o Sol e qual a sua importância. Muitos comentários se seguiram após essa provocação. Beatriz disse que o astro era: "Uma coisa grande, que voa no céu". Guilherme comentou: "É um avião, que ficava flutuando no espaço". 

Juliana sugeriu a produção de desenhos sobre o tema e, depois, convidou a turma a falar sobre eles. Diante de tantos pensamentos diferentes, a classe se dividiu. Era o momento de confrontar opiniões. A docente, então, lançou a questão: "Afinal, o Sol dorme ou vai para outro país?". Houve muita discussão. "Se ele dormir apaga o fogo. Ele vai para outro país", comentou Sofia. 

A professora fez outra provocação: "Como o Sol faz para ir para outro país?". A garotada foi convidada a representar as respostas por meio de desenhos mais uma vez. Em seguida, todos comentaram suas produções. "Eu fiz o Sol e os planetas estão girando em volta do Sol", comentou Samuel. Laura acrescentou: "A Terra fica rodando em volta do Sol". No ateliê, houve uma rodada de investigações. Luzes e bolas de isopor foram exploradas pela classe, dividida em duplas. Enquanto isso, Juliana circulava, observando atentamente cada um. "O processo de escuta diz respeito a prestar atenção a todos os aspectos da criança. Tudo o que é dito e não é dito, gestos e olhares, por exemplo", diz a diretora Valéria Andreeto. Com a ajuda da auxiliar Cibele Pereira, Juliana tomava notas e fotografava. 

Na brincadeira com luzes e lanternas, novas hipóteses surgiram. "Parece o mundo, que fica claro e escuro", disse Maria Izabel. A turma também observou o pôr do sol da janela em dois dias. No primeiro, viu um lindo entardecer, com nuances de rosa, laranja e vermelho. No dia seguinte, estava nublado. A maioria achou que o astro "Tinha ido para outro país". Depois, foi a vez de trabalhar com outros materiais, como blocos de montar. 

Em seguida, a classe redigiu dois textos, tendo a professora como escriba: um era sobre o astro, o outro sobre o dia e a noite. O objetivo era organizar as hipóteses surgidas ao longo do percurso. Uma pesquisa em textos informativos e a reescrita dos textos fechou o trabalho. A essa altura, os pequenos já eram especialistas no tema.

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