Desenhar sempre e cada vez melhor
Atividades constantes com materiais variados para aprimorar o traço
POR: Patrick Cassimiro, Fernanda Salla e Anna Rachel FerreiraSerá que o giz cria uma linha bonita no chão? Quanto de pressão colocar na canetinha para riscar o papel: muita ou pouca? O que desenhar em um cartaz grande? E se a folha já tiver umas bolinhas estampadas, como fazer? No desenho, o objeto riscante - canetas diversas, lápis etc. - e o suporte (ou base) - como a cartolina - fazem a diferença no traçado. Além disso, o modo de manejar o objeto, a força empregada nele sobre a superfície, o gesto necessário para fazer a forma desejada, tudo isso são habilidades a ser desenvolvidas para que as crianças possam aprimorar cada vez mais a autoria e as produções.
AUDACI
Pedagoga graduada pela UPE e especialista em docência do Ensino Superior pela Faculdade Joaquim Nabuco, em Recife.
"O projeto surgiu da formação que fIz na rede municipal. Lá, compreendi que educar é fazer desabrochar as características próprias de cada criança."
Isso pode soar óbvio para os adultos, pois, ainda que não se tornassem grandes artistas, já tiveram bastante contato com o ato de desenhar. Mas, para os pequenos, iniciantes no assunto, tudo é novidade. Pensando no potencial expressivo da turma de 3 anos da creche, a educadora Audaci Maria de Lima, da Escola Municipal XV de Novembro, em Camaragibe, região metropolitana de Recife, planejou diversas situações de desenho - cada uma com um tipo de material e um suporte diferente - e visitas a museus para que eles explorassem as possibilidades de criação.
Essa rotina de experimentação proporciona a qualificação gráfica. "Ao desenhar todos os dias, a criança relaciona o procedimento ao resultado final e pode ir transformando gradativamente sua ação", explica Rosa Iavelberg, autora do livro Desenho na Educação Infantil (144 págs., Ed. Melhoramentos, tel. 11/3862-7377, 58 reais). Segundo Luiz Paulo Ferreira do Amaral, coordenador da formação na rede municipal que inspirou a docente a elaborar o trabalho com as atividades permanentes de percurso de desenho, dessa maneira a escola se torna um espaço onde desabrocham potenciais criativos individuais.
Novas descobertas todos os dias
Para começar, Audaci pediu que as crianças desenhassem algo livremente e guardou essas produções iniciais para que pudesse acompanhar a trajetória de todos (veja exemplo comentado na entrevista). Nessa fase, ainda apareciam muitas garatujas, que são traçados de linhas em todas as direções, como rabiscos em zigue-zague. Depois, ela deu início às propostas. Em uma delas, os pequenos desenharam com giz branco de lousa no chão. "Muitos me contavam o que estavam fazendo, se bichos ou plantas, por exemplo", diz.
Nem sempre o pequeno já tem uma intenção ou busca representar algo, mas aquele rabisco ou figura faz sentido para ele, tornando-se narrativas que mudam ao longo do tempo. Algumas linhas com caneta hidrocor podem ser em um momento um rio e, em outro, se tornar algo completamente diferente. Por vezes, o desenho é consequência da própria experimentação de formas, materiais e gestos. "É preciso enxergar a garatuja como desenho, pois é do emaranhado de linhas que nasce o símbolo, conforme afirma a pesquisadora norte-americana Rhoda Kellogg", diz Rosa.
A cada dia, a docente escolhia um objeto riscante, uma base e o modo como estaria posicionada. Papéis de tamanhos diferentes eram colocados no chão, na mesa e até na parede. Carvão, caneta esferográfica e lápis grafite foram algumas variedades disponibilizadas à turma, uma por vez. "Essa diversidade permite que as crianças desenvolvam uma intencionalidade no uso dos materiais e pesquisem aspectos como a pressão, o plano, a ocupação do espaço e o controle do traço", afirma Denise Nalini, coordenadora de projetos de formação de professores de Educação Infantil do Instituto Avisa Lá, na capital paulista.
As intervenções da professora foram essenciais para a transformação dos desenhos das crianças e a ampliação do repertório de procedimentos. Em uma das propostas, folhas em tamanho A4 foram colocadas sobre a mesa e os pequenos tinham de desenhar de pé, com caneta esferográfica. A postura e a força necessárias para se ter destreza nessas condições são bem específicas e esse desconforto dá oportunidade para a criança desenvolver o conhecimento e o domínio corporal.
A docente também ofereceu papéis que continham interferências gráficas, como círculos. Alguns tinham apenas uma figura circular e outros mais, ora espalhadas, ora concentradas em determinada área da folha. A intenção era estimular o reconhecimento e a exploração de outras formas além da linha e promover a relação dos pequenos com elas, aguçando a criatividade deles. "Observei que, no início do processo, as crianças às vezes contornavam a figura, outras riscavam por cima. Já mais para o fim do ano, esses desenhos foram substituídos por outros. Elas passaram a fazer carinhas nela, por exemplo", lembra a educadora.
A linha matérica foi mais um recurso usado por Audaci, que disponibilizou pedaços de barbante para que as crianças desenhassem com eles no chão. Da imaginação delas surgiram objetos de todo tipo, como uma piscina, em que Rafael Alves de Oliveira, 3 anos, mergulhou no faz de conta e desatou a nadar.
Em outra atividade, com a ajuda de um projetor, as crianças apreciaram as formas resultantes de suas posições nas sombras na parede. Desse modo, desenhavam com o corpo. "O desenho é gesto, assim como a dança. A produção gráfica imprime as marcas deixadas por esse movimento", afirma Paula Zurawski, professora do Instituto Superior de Educação Vera Cruz (ISE Vera Cruz), em São Paulo, e selecionadora de creche do Prêmio Educador Nota 10. Nessa concepção contemporânea do desenho, ele é entendido como algo que se dá quando há uma tomada de consciência da intervenção feita no espaço por meio do gesto, como são as sombras - que, apesar de efêmeras, são desenhos.
Olhar atento e intervenções precisas
A atuação do professor durante o processo produtivo dos pequenos é fundamental para auxiliá-los a avançar no gestual e no aprendizado sobre cada objeto. Quando o educador vê que a criança está sempre furando a folha com o lápis devido à pressão excessiva empregada, pode questioná-la sobre a possibilidade de se usar outra ferramenta, como um giz de cera, mais grosso, ou de diminuir a força ao desenhar. Esse tipo de indagação faz com que ela pense sobre as especificidades dos materiais e seja capaz de fazer escolhas.
Além de atividades direcionadas, é interessante propor vivências de ateliê à turma, em que vários suportes e objetos riscantes são disponibilizados, para que cada um eleja com o que trabalhar. "Nas primeiras experimentações, o docente pode oferecer três materiais para que se acostumem gradativamente a selecioná-los, de acordo com o que querem expressar", sugere Paula.
O contato com obras de artistas também foi importante para as mudanças observadas nos trabalhos das crianças ao longo do processo. Audaci levou a turma à Oficina Francisco Brennand e ao Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam), ambos em Recife. Na primeira, elas interagiram com produções como as esculturas em cerâmica do pernambucano que dá nome ao local. No Mamam, apreciaram obras modernas, que fugiam do retrato fiel do real, e assim expandiram o repertório. "Frequentar lugares de produção alimenta a criação artística das crianças. Os artistas imprimem suas próprias marcas e criam com base em uma pesquisa, como a que os pequenos estão fazendo", diz Paula.
Em sala, após cada atividade, quem quisesse podia apresentar sua obra aos demais. A observação dos trabalhos alimentou as criações dos pequenos desenhistas. "Algumas crianças contavam sobre as formas que haviam feito, enquanto outras já mostravam interesse em representar algo específico", afirma a docente.
Foram muitas as produções da turma, que tinham como objetos de investigação as ferramentas, os gestos, os suportes e as marcas deixadas neles. "O mais importante nessa idade é que a criança se identifique no que desenha e tenha autonomia para fazer escolhas que a possibilitam criar o que deseja", diz Denise. Ao serem estimuladas a falar sobre suas criações, elas entendem o real sentido da arte, como exemplifica Rafael, o garotinho da piscina de barbante: "O meu desenho..." Ele para de falar por um instante, olha pensativo para a própria produção e continua: "Eu sou o meu desenho".
ENTREVISTA
Rosa Iavelberg
A pesquisadora comenta as produções inicial e final (após oito meses de trabalho) de uma das meninas da turma.
A diferença entre esses dois desenhos pode ser interpretada como uma evolução? Por quê?
Sim. No primeiro, a criança esboça uma intenção de simbolizar, que é possível notar pelas formas fechadas que ela fez no lado direito da folha. Já no segundo, há um símbolo bem definido. Ela passou a ter intenção ao fazer os símbolos no espaço do papel.
Como o professor pode contribuir para que essa evolução ocorra?
Dando oportunidade para que os pequenos desenhem todo dia e trabalhem ao lado uns dos outros. Também é importante acolher positivamente os resultados e, por vezes, pedir que falem sobre as obras.
De que forma auxiliar as crianças a avançar ainda mais?
A melhor maneira é continuar oferecendo diferentes tipos de lápis, canetinhas, pincéis, e papéis de tamanhos e cores variados, alternando a posição da superfície, como propôs a professora Audaci.
Fotos: Leo Caldas.