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“O bebê pode aprender muito se acreditarmos nele”

Entrevista com Anna Tardos, especialista em primeira infância

POR:
Wellington Soares
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Psicólogia e doutora em Psicologia Infantil, foi professora da Universidade de Budapeste, na Hungria, e hoje preside o Instituto Pikler, na mesma cidade

Falar de Anna Tardos é falar da maior especialista em primeira infância no planeta, guardiã de princípios quase centenários, mas ainda hoje revolucionários, sobre o desenvolvimento dos bebês. Ideias que começaram a ser gestadas por sua mãe, a pediatra austro-húngara Emmi Pikler (1902-1984). Durante uma viagem à praia, a médica se surpreendeu com a quantidade de pais que colocava seus pequenos sentados, mesmo que essa ainda não fosse uma posição natural para filhos. Também notou que os adultos passavam o dia estimulando as crianças a andar e tentando distrai-las. Esse tipo de ação, pensou, apenas reforçava a dependência.

"E se, ao contrário, os adultos passassem a considerar as competências dos bebês?", perguntou. Foi assim que a pediatra começou a elaborar uma abordagem que tivesse o desenvolvimento da autonomia como foco. A primeira beneficiada pelas ideias foi a própria Tardos nascida em 1931  e, em seguida, as crianças órfãs da Segunda Guerra atendidas pelo abrigo que Pikler dirigia.

Hoje, Tardos é herdeira da mãe no aprimoramento da chamada abordagem Pikler, adotada por instituições de Educação Infantil em diversas partes do mundo. Durante passagem pelo Brasil, onde realizou uma série de conferências organizada pela Rede Pikler Brasil, a pesquisadora recebeu NOVA ESCOLA para conversar sobre os princípios fundamentais da abordagem, os desafios e as resistências ainda existentes para sua adoção em creches e pré-escolas.

Quais foram as principais descobertas feitas por sua mãe, Emmi Pikler?

ANNA TARDOS Como hoje, na década de 1930 havia pesquisas que tratavam sobre como as crianças aprendiam, principalmente na pré-escola e no Ensino Fundamental. Mas poucas dessas investigações se aplicavam aos bebês. A faixa etária até 3 anos é um universo completamente diferente. Emmi Pikler foi a primeira a olhar cuidadosamente para essa idade e descobrir capacidades dos bebês até então desconhecidas. Ela enxergou que eles podem se desenvolver sozinhos em certos domínios, descobrir o mundo por si sós e aprender. Como estamos acostumados a enxergar apenas a dependência deles  afinal, sem um adulto é impossível que um recém-nascido sobreviva não vemos isso. Ela não apenas identificou essas competências mas também criou recomendações práticas para seu desenvolvimento.

Quais são os princípios da abordagem Pikler?

Eu diria que há quatro, igualmente importantes. O primeiro é o respeito e a confiança na capacidade da criança. Nesse sentido, não devemos forçá-la a ficar de pé ou sentada se essas forem posições que ela ainda não tenha alcançado por si só. O bebê pode aprender muito se acreditarmos nele e respeitarmos seu ritmo. O segundo princípio é realizar os cuidados de maneira respeitosa, considerando a criança como parceira, observando e possibilitando sua participação ativa. Vejo muitos bebês que são tratados com gestos rápidos, não são olhados nos olhos, não são convidados a interagir e participar realmente da troca de fraldas, da alimentação ou do banho. O terceiro princípio é o olhar atento para a saúde e o bem estar físico da criança, aspectos fundamentais para o seu desenvolvimento. O quarto é se relacionar com os pequenos de maneira positiva e não proibitiva ou punitiva. Eles crescem ouvindo "Não faça isso!" o tempo todo, mas há outras maneiras mais respeitosas de ensinar regras.

Como evitar esse não constante?

Suponhamos que uma menina queira mexer em uma xícara em cima da mesa. Se eu apenas digo não, é possível que ela se afaste, mas volte logo em seguida. Se eu afastar o objeto para fora de seu alcance, ela compreende que não deve mexer naquilo. Dessa forma, ajudamos a criança a conter seus impulsos. Crianças de 1 ano e meio ou 2 têm necessidade de explorar e acabam fazendo coisas "proibidas"  o fato é que, se a criança não pode mexer, o objeto não deve estar a seu alcance. Quando isso não ocorre, inicia-se uma luta. Os adultos brigam, insistem em dizer que algo é proibido até perderem a paciência. Esse processo de socialização pode acontecer de maneira tranquila. A relação com bebês deve ser livre dessas formas de violência. Autogovernar-se é uma tarefa difícil que deve ser ensinada com a criança e não contra ela. Quando permitimos, os pequenos aprendem a se regular com base nos movimentos.

Como os princípios, criados para as famílias, se aplicam às instituições educativas?

Pikler observou que as crianças em suas famílias normalmente se desenvolvem bem, mesmo que os cuidados não sejam guiados pelos princípios da abordagem que ela criou. O mesmo não acontece em creches ou abrigos. Isso porque o contato com os pequenos pode ser cheio de pequenas violências. Se alguém segura a criança de forma indelicada ou faz os cuidados de modo apressado, sem considerar o que a criança diz com seus gestos, o bebê sente e protesta: chora e se move para tentar impedir a troca. Nas famílias, os pequenos conseguem se desenvolver e crescer bem apesar disso, porque sentem que os adultos ali se importam com eles e os amam. Quando não são tratados por parentes ou pessoas próximas, a situação é diferente: estar em grupo  algo não natural nessa idade  e ter poucos momentos de atenção exclusiva e, portanto, poucas trocas verdadeiras entre adulto e criança são situações causadoras de estresse e podem comprometer o desenvolvimento e a saúde dos bebês.

Como as escolas podem equilibrar a atenção dada aos cuidados e à Educação?

No início, as creches eram lugares em que apenas se guardavam os bebês. A função da instituição era mantê-los limpos, alimentados e seguros. Em outro momento, passou-se a acreditar que elas deviam também educar, e isso foi um ganho. Depois de Pikler, não vemos diferença entre essas duas coisas. Eu observei aqui no Brasil educadores que brincam com os pequenos, os levam para explorar o jardim e passam o dia dizendo: "Isto é uma flor, isto é uma família, isto é um animal". Na hora de trocar a fralda, há uma auxiliar que cumpre essa tarefa, como se educar e cuidar não fossem relacionados. A Educação está nos detalhes, que começam justamente nesses momentos de cuidado. Quando um adulto fala "Agora eu vou te pegar no colo", a criança olha, se prepara e se deixa levar. Aí está a aprendizagem. Tudo isso requer grandes alterações nas estruturas das instituições que atendem crianças dessa idade, para garantir que não sejam trocados com pressa ou comam simultaneamente. Em resumo, que tenham o seu tempo e individualidade respeitados.

Há muita resistência às ideias de Pikler?

Sim, porque os princípios da abordagem vão completamente contra a tradição. Educadores vêm às palestras, nos ouvem e saem incomodados, pensando: "Realizo meu trabalho há 20 anos, tenho boas intenções e de repente alguém me diz que o que eu faço não é bom!". O que eu digo é que queremos uma mudança de cultura, na maneira como se enxerga a relação com a criança. Dizemos que os adultos não devem colocar o bebê sentado, pegá-lo de qualquer jeito, enfim, fazer o que quiserem com ele. Isso gera frustração. Quando falamos que educar na creche não é mostrar ao bebê onde fica o nariz, a boca ou algo do tipo, os educadores ficam desconfortáveis. "Se eu não posso ensinar, então para que estudei Pedagogia?", perguntam. O papel do educador é planejar o ambiente e propor um espaço que permita que as crianças explorem e se desenvolvam. Isso pode parecer simples, mas é um grande desafio, algo que pode demorar muito tempo para se aprender.