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O passado indígena diz presente

Projeto didático sobre moradias tradicionais ajuda um povo a redescobrir a própria identidade e indaga o que é ser índio hoje

POR:
Wellington Soares e Patrick Cassimiro

 

Resgate da tradição - Para construir uma casa paiter, é preciso conhecer o material necessário, retirá-lo  da mata e dominar as técnicas de construção.  Tudo é feito de um jeito específico, que só os mais velhos conheciam. O projeto recuperou esse saber e ergueu uma dessas casas, hoje museu de objetos típicos da vida paiter surui.

Desde 1969, quando se iniciou o contato do povo indígena paiter surui com os não indígenas, muito da tradição se perdeu: os pajés não atuam mais e os trabalhos manuais, que são parte da sua identidade, deixaram de ser ensinados aos mais jovens. Ainda assim, alguns costumes resistem. Seja no uso corrente da própria língua, o tupi mondé, no estilo de vida, levado à sombra de pequenas construções de palha anexas às casas construídas pelos não índigenas, ou em comemorações, como o festival de troca de sementes. 

LUIZ WEYMILAWA SURUI 

29 anos
6 anos de docência  

Educador Nota 10
Cacoal (RO)  

Geografia
6°ao 9º ano

Projeto: Lap Gup: Nossa Casa, Nosso Lar

A EIEFM Sertanista José do Carmo Santana se tornou um dos polos dessa resistência. Ela fica na aldeia Gãpgir, à qual se chega por uma viagem de meia hora de carro a partir de Cacoal, no interior de Rondônia. O trabalho desenvolvido pelo professor Luiz Weymilawa Surui nas aulas de História e Geografia é responsável por recuperar as tradições e fazê-las dialogar com o conhecimento construído no mundo não indígena. Exemplo disso é o trabalho com o qual ele conquistou o título de Educador Nota 10: nele, os alunos aprendem sobre as casas tradicionais e os costumes ligados a essa forma de moradia.

O trabalho singular, descrito nos textos que acompanham as fotos desta reportagem, representa o que se espera de toda escola indígena: um professor da comunidade que utiliza o idioma local e a sabedoria dos habitantes de seu território para construir conhecimento que permita a inserção dos jovens indígenas no mundo dos brancos. "Queremos que eles saibam sobre a própria identidade, mas que também tenham condições de seguir com os estudos fora de suas aldeias", diz Rita Gomes do Nascimento, a Rita Potiguara, diretora de Políticas de Educação do Campo, Indígena e para as Relações Étnico-Raciais do MEC.

Projetos como esse reforçam o papel da escola não só na sobrevivência da cultura local mas também na reflexão sobre o que é ser índio hoje.
 

Reflexão sobre a moradia  

O contato com não indígenas alterou profundamente o modo de vida da população e suas tradições. Do nomadismo, passaram a ter residência fixa dentro da Terra Indígena 7 de Setembro. O novo território representa parte da região onde eles moravam antes do contato. Mas tem seus problemas: o trecho de floresta de onde vem boa parte da matéria-prima do seu artesanato e das suas construções ficou distante. Além disso, a pecuária e a exploração de madeira têm avançado cada vez mais sobre o território demarcado. Das casas tradicionais, cobertas de palha, os paiter passaram a morar em residências de madeira construídas pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Mas quase todas as casas da aldeia possuem um anexo, uma tenda feita de colunas de madeira e coberta com palha. Ela lembra as residências tradicionais, mas não é construída com exatamente os mesmos materiais. São utilizadas técnicas aprendidas após o contato, como a inserção de pregos. É nessas construções em que eles passam a maior parte do dia, quando não estão na lavoura, e é onde fazem os produtos de artesanato, cuja  venda complementa a renda das famílias.

Narrativas ancestrais

Gakaman Surui (sentado na rede) fala apenas em tupi mondé. Mesmo sem entender uma só palavra, é possível notar a solenidade do que ele diz pela voz rouca e muito baixa. O senhor de 74 anos é um dos poucos que se lembram da vida antes do contato. "Ele diz que era um tempo em que as pessoas eram mais felizes, havia muitas festas", traduz o professor Luiz (em pé, de camiseta verde).

A transmissão oral marca a cultura da maior parte dos povos indígenas. É ela a principal fonte de conhecimento para os alunos de Luiz. Em tupi mondé, eles entrevistaram os mais velhos da aldeia para conhecer as tradições mais antigas. A busca das tradições também é a fonte de maior resistência contra o projeto: alguns pais da aldeia acreditavam que não era necessário tratar da cultura local na escola, porque a família se encarregaria de transmiti-la. "Mas isso não ocorre mais como antigamente. Se a escola não tratar as tradições, elas se perdem", aponta Maria Barcellos, indigenista que trabalha com os surui desde a década de 1970

Em sala, dois mundos  

"O esforço da escola indígena hoje é conjugar os saberes tradicionais com  os conhecimentos escolares", defende Rita Potiguara. Luiz faz isso ao não limitar seu  trabalho ao conhecimento local. Os jovens de 6º ao 9º ano fizeram mapas da aldeia e uma maquete sobre a construção tradicional. Também discutiram conceitos geográficos curriculares. Um deles foi o de lugar, definido como a junção entre a paisagem (tudo aquilo que está ao alcance da visão) com os vínculos estabelecidos com ela.

Antes do projeto de Luiz, a aldeia Gãpgir era, para os jovens paiter surui, um lugar diferente do que é hoje. A reflexão sobre os costumes e a história local ressignificou a relação dos estudantes com aquela comunidade e com a própria identidade indígena. O museu construído por eles atraiu visitantes interessados pela cultura deles, ajudou na renda das famílias - muitas aproveitam as visitas para fazer a venda  de artesanatos - e despertou a vontade  de saber mais sobre o povo. "Depois do projeto, decidi pesquisar sobre as pinturas corporais. Quando recebemos visitantes, explico o significado delas e pinto o rosto dos turistas", conta Oyeti Surui, 16 anos.


Fotos: Marcus Mesquita