Burnout. Depressão. Ansiedade. Como desatar esses nós
Mudar hábitos, reconhecer limites, confiar nos colegas. Aprenda com três professores que viveram essas dores
POR: Rodrigo Ratier, Patrick Cassimiro e Karina PadialSe você já viveu essas situações, saiba que você não está sozinho. Embora não existam estatísticas nacionais recentes, sabe-se - na verdade, sente-se no dia a dia - que o problema é enorme. Os dados de São Paulo são um indício. Em 2015, os transtornos mentais e comportamentais lideraram as causas de licença na rede estadual, com 28% dos casos. Na rede municipal, eles contribuíram para um número absurdo: a quantidade de afastamentos superou o total de professores em sala. Em 2012, o Atlas de Gestão de Pessoas registrou 64,2 mil licenças diante de 58,5 mil servidores ativos.
A gente sabe que boa parte das causas dessa verdadeira epidemia tem raízes estruturais. Más condições de trabalho, muitos alunos por classe, estrutura precária, salários baixos e violência. Tudo isso reflete no ensino - e, claro, na sua saúde. Atacar esses problemas externos é fundamental. Nós já escrevemos muito sobre eles e vamos continuar escrevendo. Mas nesta reportagem a gente pede licença para falar com quem mais importa: você.
Queremos trocar ideias sobre esses problemas - que não são frescura! - e, como a gente sempre faz, pensar em soluções para dar a volta por cima. A boa notícia é que as estratégias de enfrentamento dos nós mentais estão ao alcance de todos. Para a pesquisadora Mary Sandra Carlotto, que estudou a exaustão profissional em seu doutorado em Psicologia pela Universidade de Santiago de Compostela, na Espanha, um bom começo é o seguinte: pensar nas situações que nos desestabilizam e nas possibilidades de lidar com elas, identificando as mais viáveis.
Seguimos com esse conselho em mente e apresentamos, nos quadros abaixo, formas concretas de encarar o problema. Mas podemos começar sem receituário? Vamos falar de histórias reais como a de Everson Melo, educador que, na primeira aula do curso de Pedagogia, não teve dúvida do que queria fazer pelo resto da vida: lecionar. Inspirou-se na esposa, que conheceu ainda adolescente, na paixão pela Educação. Nunca pensou em largar as aulas. Nunca até maio deste ano, quando precisou se afastar da escola por 35 dias. Everson não conseguia mais entrar em sala. Diagnóstico: estresse agudo.
LIMITE MÁXIMO - Para lidar com os desafios sem recaídas, Everson mudou de postura e de sala
O disparador foi um fator externo. Por causa da reestruturação na rede de Luziânia, cidade próxima a Brasília, a classe de 5º ano da EM Dilma Roriz Medeiros ficou apinhada de gente. Pulou de 25 para 49 alunos. "Eu ficava encostado na parede como uma lagartixa, numa sala sem ventilador nem cortina. O sol batia na lousa e, para enxergar, os alunos tinham que mudar de lugar várias vezes ao dia", conta.
Foram cinco meses até o momento do "não dá mais". Afastado por ordem da psiquiatra, Everson deu início ao tratamento com remédios e muita reflexão. A virada aconteceu quando o professor começou a aceitar seus limites. "A médica queria prorrogar a licença, mas eu mesmo pedi para voltar. Já tinha conseguido elaborar na minha cabeça que não carregaria o mundo inteiro nas costas."
Everson encontrou a paz ao reconhecer limites e não se concentrar nas emoções, mas sim, nos episódios que a geram. Antes de saber de tudo isso, porém, o professor goiano enfrentou cinco meses de culpa por não dar mais conta de ensinar.
"Comecei a me sentir incompetente e desmotivado. Perdi o idealismo", relembra. A gota d'água veio quando tentava separar uma briga entre duas alunas e uma delas começou a gritar com ele. Veio à sua cabeça a imagem de que ele empurrava a garota escada abaixo. Ficou desesperado e saiu correndo e chorando até a sala da diretora.
Os sintomas apresentados por Everson eram próximos aos do burnout, embora ele não tenha tido esse diagnóstico. Apoiada no tripé exaustão emocional, diminuição da realização no trabalho e despersonalização (insensibilidade ou afastamento excessivo em relação ao público atendido, no caso, os alunos), a síndrome do esgotamento profissional, como também é chamada, tem entre os docentes as maiores vítimas.
Burnout é um quadro sério que requer mudanças rápidas no trabalho. Algo que nem sempre acontece. Quando o professor voltou à escola, ele foi transferido para uma sala maior, com ventilador e cortina, mas junto com os mesmos 49 alunos. Mesmo assim, o pouco que foi feito já ajudou. "Se não conseguimos eliminar a fonte principal do problema, já melhora se resolvemos outras, mesmo que nem sejam tão importantes. A carga tensional que elas geram é subtraída da quantidade total de estresse que estamos experimentando. Assim, ficamos sujeitos a níveis menores de tensão", diz Marilda Lipp, diretora do Centro Psicológico do Controle do Stress e organizadora do livro O Stress do Professor.
A vida num entorno complicado
MUDANÇAS DE VIDA - Claudio superou o quadro depressivo com terapia, remédios e partidas de futebol
Claudio Menezes Maia é de uma família de professores - pai, mãe, irmão, tias e esposa. É outro caso que nunca titubeou na escolha da carreira que seguiria. Formou-se em Letras e leciona para o Ensino Fundamental e Médio, no Ciep 513 George Savalla Gomes - Palhaço Carequinha, em São Gonçalo, na região metropolitana do Rio de Janeiro. "Eu amo dar aula e tenho orgulho da escola onde trabalho. Ela foi reinaugurada há seis anos, com uma infraestrutura de ponta", conta.
A realidade do entorno, no entanto, é difícil. No bairro pobre em que a escola está localizada, os jovens sofrem com a estrutura precária. "Eles não têm amor, respeito, cultura, comida. Falta tudo. Alguns pedem cesta básica, outros trazem receita médica perguntando se podemos comprar remédio. Conviver diariamente com essas situações começou a me deixar muito triste", relembra.
Dois episódios em especial não saíam da sua cabeça. O suicídio de um aluno gay que chegou a registrar o que iria fazer numa redação não corrigida a tempo pela professora. E o castigo aplicado por um pai que deixou o filho por três dias sem comer por causa de uma suspensão. Somaram-se a isso tristezas pessoais - a morte de um colega confundido com um policial, um aborto espontâneo sofrido pela esposa e o falecimento da avó. O ano de 2014 estava difícil.
"Todos nós, em algum momento da vida, enfrentaremos traumas, mas quem passa por muitos deles seguidamente tem mais chance de lidar com a depressão", diz Fernando Duarte, psiquiatra que atua em Centros de Atenção Psicossocial (Caps).
Claudio lembra de estar todo o tempo irritado, desanimado, sofrer com insônia, se afastar da sala de aula para chorar e viver com constantes pensamentos negativos. Não percebeu sozinho que precisava de ajuda, mas teve sorte. Durante um período, que coincidiu com o momento em que atravessava o episódio depressivo, o setor de Gestão de Pessoas da Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro manteve uma equipe de saúde e bem-estar para apoiar os educadores. Foi a coordenadora do programa que o convidou para conversar com a assistente social.
Encaminhado para o psicólogo e para o psiquiatra, ele ficou dois meses afastado da sala. Começou a fazer terapia - que continua até hoje - e a tomar antidepressivos - que, por recomendação médica, já largou. Também mudou seus hábitos. Voltou a jogar futebol, esporte que tinha parado de praticar por causa da rotina de trabalho intensa, e a sair de casa, inclusive para assistir partidas do seu time, o Palmeiras, em outros estados.
Claudio ainda aprendeu a ter controle sobre seus pensamentos: "Se eu imagino o futuro, que os jovens vão reproduzir o que os pais fizeram, virar bandidos e matar como mataram meu amigo, volto a entrar num ciclo de desesperança e a ficar questionando o meu papel dentro da escola". Por isso, foca sempre no presente.
Manter-se positivo é uma das receitas contra o negativismo que permeia a depressão. Para a psicóloga Ciça Maia, especialista em terapia cognitiva pela USP, a pessoa que apresenta esse quadro costuma ter um olhar enviesado e é preciso que ela retome o senso de realidade. "O depressivo acha que tudo sempre vai dar errado, mas sabemos que não é assim. Há muitas chances das coisas darem certo e isso também depende da forma como julgamos a situação', afirma.
Um olhar compreensivo para si mesmo
NOVA FUNÇÃO - A readaptação foi o caminho de Rosi para continuar na escola
Nem sempre o problema é superado em um prazo de 30 dias prorrogáveis por mais 30. Voltar a encarar situações que nos tiraram do prumo pode demorar, ser cheio de altos e baixos, de remédios que, em vez de melhorar, pioram.
Professora de Geografia de escola estadual em Mococa, no interior paulista, Rosi Tomura aceitou o desafio, em 1999, de dar aula em uma escola localizada na periferia da cidade. Encontrou por lá não só um entorno hostil mas estudantes que refletiam a agressividade em suas atitudes. Ela também já andava com a saúde emocional abalada desde a gravidez de sua primeira filha, quando enfrentou um quadro que, tempos depois, foi diagnosticado como depressão.
Foi com esse histórico que ela recebeu a notícia que um aluno matou outro a facadas nos arredores da escola. O motivo: a vítima não quis dar um cigarro para o agressor. "Já estava difícil para mim, eu vivia chorando, mas depois desse episódio passei a ter muito medo. Na rua, suava, tremia e olhava para trás a todo instante para ver se não estava sendo seguida." Começou a enxergar os jovens como se eles fossem gigantes e assustadores. "Ao final de um dia de aula, falei para mim mesma: nunca mais volto aqui. Cheguei em casa, peguei todo o meu material de trabalho, que demorei anos para juntar, joguei na calçada e um catador de material reciclável levou", conta.
Acompanhada por psicólogo e psiquiatra foi diagnosticada com fobia social, um transtorno de ansiedade. Iniciou o tratamento com remédios e, depois de meses de total isolamento e prostração, voltou, aos poucos, a fazer coisas simples, como atravessar a rua sozinha.
"Existe uma ansiedade que é normal. O problema surge quando a angústia é permanente, incapacitante e gera grande sofrimento", explica o psiquiatra Rodrigo Bressan, organizador do livro Saúde Mental na Escola. Novamente, a quebra da cadeia de pensamentos se mostra uma estratégia eficaz. Quando conseguiu perceber que as pessoas não estariam o tempo inteiro a julgando, Rosi conseguiu avançar. Em 2002, dois anos após ter se afastado da escola, ela retornou como professora readaptada. Estar fora da sala de aula foi uma condição médica para que ela não mantivesse um contato tão direto com os alunos.
Para o psicanalista Chafic Jbeili, especialista em saúde do professor, ser readaptado não significacontato tão direto com os alunos. que a pessoa fracassou. "Podemos fazer uma associação com um soldado diagnosticado com estresse pós-traumático. Ele consegue retomar sua vida depois de um tratamento, mas voltar à guerra provavelmente reativará os sintomas do transtorno."Fora do campo de batalha, porém, ele poderá desenvolver outras atividades.
Para isso, é preciso superar outra barreira: o estigma. Até entre os pares, os readaptados são encarados como preguiçosos, encostados ou fracos. Não ter o sofrimento reconhecido é motivo de mais tensão. Para Rosi, a situação é outra. Membro do conselho escolar da EE Zenaide Pereto Ribeiro Rocha, ela organiza materiais de Geografia para os alunos e atua junto com a orientação educacional, planejando ações para reduzir as faltas e o abandono.
É melhor prevenir
Quando se trata de saúde, o velho conselho aí de cima vale mais do que nunca e precisa ser colocado em prática quanto antes. Ficar sentado - e estressado - esperando o número de alunos nas salas diminuir, o salário aumentar e as famílias participarem não parece uma boa saída.
Há outras estratégias capazes de ajudar. Algumas mais fáceis como instituir pausas no dia para relaxar. E outras mais difíceis como tirar algo positivo das situações e levá-las com bom humor. É isso que ocorre quando em vez de entender a desobediência de um aluno como um desaforo, você enxerga o episódio como um indício de que ele precisa da sua ajuda para encontrar um caminho e mudar a forma de ser.
Deixar de lado as emoções e focar em encontrar soluções é dica unânime dos especialistas. Outra é poder contar com uma rede de apoio formada na escola. Pesquisas do mundo inteiro mostram que conversar com os pares é uma das principais formas de aliviar o estresse. A recuperação é mais rápida e a intensidade da reação é menor quando o professor tem o suporte dos colegas, que entendem o que ele está passando.
Os gestores, portanto, têm um papel central na construção de um bom ambiente de convívio, o que por si só ajuda a minimizar os desequilíbrios emocionais. Segundo Chafic, comemorar conquistas e destacar qualidades dos docentes é mais saudável do que expor problemas e fracassos. "Isso faz parte da implantação de uma agenda positiva, que pode incluir, ainda, momento formais de troca de experiências bem-sucedidas."
Mobilizar recursos, sejam eles coletivos ou individuais, é um caminho para diminuir as situações desagradáveis e reencontrar as motivações e paixões que levaram à escolha da docência. Foi assim com Everson, Claudio e Rosi. Queremos que seja assim com você também.
Fotografia: Elisa Mendes / Rafael Facundo / Milena Aurea
Bordados: Patrick Cassimiro