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A cartilha Caminho Suave ajudou a alfabetizar milhões de pessoas. Mas seu método, padronizado e cheio de equívocos, não é uma boa saída

POR:
Pedro Annunciato, Maggi Krause e Lucas Freire

Não é preciso vasculhar sebos e bibliotecas para encontrar o livro didático de leitura e escrita mais vendido da história da Educação brasileira. Ainda dá para comprar em grandes livrarias a 132a edição da cartilha Caminho Suave. Ela permanece praticamente igual às que começaram a circular em 1948: os exercícios repetitivos, as letras sobrepostas a desenhos, o traço antigo das ilustrações. Embora seja considerada ultrapassada, a publicação vendeu mais de 10 mil exemplares no ano passado. Segundo a atual editora, a Edipro, pais, programas de alfabetização, estrangeiros de origem oriental e professores estão entre seus principais compradores.

Dos anos 1990 para cá, Caminho Suave perdeu o prestígio. Descartada por especialistas de várias concepções de alfabetização, ainda é um recurso usado por alguns educadores. Muitos consultam o material às escondidas, quase clandestinamente, por medo do julgamento. O interessante é que um conflito entre metodologias estimulou sua criação. No início do século 20, eram utilizados métodos sintéticos, nos quais se aprende primeiro fonemas, letras ou sílabas, para depois juntá-las; ou analíticos, em que um texto ou uma palavra eram decompostos em unidades menores. "No estado de São Paulo, o secretário de Educação estadual impôs por 21 anos o método global de contos, analítico, utilizado nos Estados Unidos. O método foi muito criticado pelos educadores, que o achavam distante das necessidades reais da sala de aula. Só em 1945, uma lei federal permitiu que se ensinasse conforme a própria escolha", explica Eliane Teresinha Peres, coordenadora do grupo de pesquisa História da Alfabetização, Leitura, Escrita e dos Livros Escolares da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL).

Entre os que não acreditavam no modo americano de alfabetizar estava a paulistana Branca Alves de Lima (1911-2001). Entre 1929 e 1945, com base em experiências como professora em escolas rurais e na própria intuição - segundo contava -, ela criou e aprimorou o método eclético ou alfabetização pela imagem: misturar palavras inteiras com o estudo sequencial do silabário e ilustrações que associavam imagem e palavra-chave (veja abaixo). A ideia era romper os limites de sua escola. "Como nenhuma editora quis publicá-la, ela imprimiu os primeiros 5 mil exemplares com a ajuda do pai", relata Luciano Narciso Mendes, professor de Língua Portuguesa que estuda a história da Caminho Suave. Em 1971, o material foi recomendado pela diretoria de Educação do estado de São Paulo e alcançou os programas do Ministério da Educação (MEC). Pulou de 790 mil exemplares, em 1972, para 1,8 milhão em 1975 e quase 2,5 milhões em 1980, seu recorde. Até hoje, é o material de alfabetização mais vendido da história do Brasil.

Na mesma década começam questionamentos severos à sua abordagem. As investigações de Emilia Ferreiro, Ana Teberosky e outros pesquisadores chegaram ao Brasil, revelando que as ideias das crianças sobre a escrita não seguem a lógica estabelecida nos silabários. Para além de métodos, a busca era entender como o ensino poderia se adequar às formas de aprendizado recém-descobertas. Essas ideias influenciaram as políticas públicas e, em 1996, o MEC excluiu a Caminho Suave do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD).

Mas como um método que orientou milhões durante décadas pode ser tachado de ineficaz? "Sem dúvida, a cartilha ajudou a alfabetizar. Mas também deixou muita gente para trás", argumenta Janice Carneiro de Pontes, coordenadora de Ensino Fundamental 1 no Colégio Humboldt, em São Paulo. Ela explica que alunos com mais contato com a cultura escrita tendem a aprender mesmo com estratégias pouco adequadas. Já aqueles com poucas referências não têm subsídios para elaborar suas hipóteses. Além disso, um método padronizado deixa de fora quem não se adequa a ele. "No tempo em que eu utilizava a cartilha, certa vez tive 50% de reprovação. Mas a tendência era colocar a culpa no aluno", lembra Eliane, que começou sua carreira na sala de aula.

A transição conturbada para as novas abordagens, na década de 1980, deixou muita gente perdida. "Passou-se de um extremo, a prisão total ao método, a outro, a ausência de qualquer método - e sem formação suficiente. É como se tivessem tirado o chão dos professores sem colocar nada no lugar", conta Janice.

Eliane argumenta que o sucesso da cartilha deriva diretamente dessa ausência de formação. "Ele se explica pelo fato de a Caminho Suave ser um material simples, sequencial e estruturado, que poderia ser aplicado por praticamente qualquer pessoa", diz. Mas, mesmo diante da sensação de desamparo, existem alternativas para alfabetizar que passam longe dos exercícios das cartilhas. A Caminho Suave, assim como as outras, é limitada e - nem adianta procurar - a chave para que todos aprendam não está nela. Veja a seguir páginas os maiores problemas apontados pelos especialistas e dicas para não pensar em consultá-la.

 

TREINO NÃO É APRENDIZAGEM

Método

Na primeira parte, 102 exercícios preparatórios visam o desenvolvimento viso-motor e auditivo. O intuito é memorizar as letras e associá-las aos sons e contornos correspondentes. O exercício 74 pede para ligar as letras aos desenhos. No 75, a atividade é treinar o contorno.

Problema

O processo de alfabetização vai além das habilidades motoras ou da percepção visual. Ele se passa, especialmente, nas hipóteses que a criança formula ao tentar associar as palavras que vê ao significado, e isso ocorre quando ela reflete sobre a escrita. A mera aquisição de habilidades mecânicas ajuda pouco na aprendizagem.

 

IMAGENS FORA DE CONTEXTO

Método

A alfabetização pela imagem propõe uma associação entre uma palavra-chave, a ilustração que a representa e o contorno da letra. A ideia é que a imagem apoie a memorização das sílabas e a ligação com o significado. A escolha de frases simples prioriza o repertório de sílabas já vistas nas lições anteriores, segundo a sequência, e trabalha com repetições para reforçá-las.

Problema

A associação entre o rabo do gato e a "perninha" do "g" é forçada. Mesmo repetindo os mesmos personagens, a cartilha não estabelece contexto e narrativa que façam sentido. O uso de falsos textos não favorece a imersão na cultura da escrita e não permite o desenvolvimento da compreensão da mensagem, que ocorre com textos reais, como livros literários e artigos.

 

SEQUÊNCIA QUE IGNORA O ALUNO

Método

As famílias silábicas são estudadas separadamente, uma a cada lição, numa sequência que vai das mais simples para as mais complexas. A primeira é a do "ba" de barriga, que aparece na página 33, e a última é o "gue" de foguete, que só surge na página 109.

Problema

A hierarquia estabelecida pela cartilha parte de um ponto de vista lógico para os adultos, mas não para as crianças. Elas não fazem essa separação, mas pensam na palavra como um todo. O "ba" não é necessariamente mais fácil que o "gue". Depende da referência do aluno, que, mesmo antes de treinar o "ba", já pode ter familiaridade com palavras como "jogue", "guerra" ou "rasgue".

 

NÃO SE DESESPERE!

Saídas possíveis para ajudar alunos que não renderam o esperado

 

  • Reforce o diagnóstico

Uma nova sondagem pode deixar mais claro o que o aluno já sabe e, assim, o ponto de partida para o avanço. No Programa Ler e Escrever, do governo do estado de São Paulo, o guia de orientações didáticas para o 2o ano mostra, a partir da página 41, como fazer isso: bit.ly/guia-sondagem.

 

  • Crie referências

Materiais simples de consulta são úteis para a criança conseguir produzir os próprios textos. Um cartão individual com as letras do alfabeto, um caderno que reúna escritos do aluno e a lista de nomes são boas opções.

 

  • Aumente a produção

A criança só vai aprender se enfrentar situações diversas de escrita. Além de gêneros convencionais, aposte em jogos nos quais ela teste e compare suas hipóteses de escrita com as dos colegas. No site de NOVA ESCOLA, há uma sequência didática de jogo da memória, que cumpre essa função: bit.ly/jogo-memoria.

 


Fontes: Ana Paula Dini, formadora de professores da Prefeitura de São Paulo, Andréa Luize, coordenadora da graduação em Pedagogia do Instituto Vera Cruz, e Carla Tocchet, professora da pós-graduação em alfabetização do Instituto Vera Cruz

Imagens: reprodução cartilha Caminho Suave