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Quando as emoções entram no currículo

Autocontrole, curiosidade e esforço fazem diferença na hora de aprender. Veja como trabalhar competências como essas na sua aula

POR:
Patrick Cassimiro, Maggi Krause e Bruna Nicolielo

C uriosos, persistentes, organizados, criativos, autônomos: com frequência, essas são algumas das características presentes nos alunos considerados os melhores da classe. A gente sabe que nem sempre elas são trabalhadas intencionalmente em sala de aula. Mas isso está mudando. Nos últimos anos, ganhou espaço o movimento que defende as competências socioemocionais e incorpora as aprendizagens sobre as emoções e habilidades sociais ao dia a dia da escola.

 

   

A forma mais tradicional de organização das competências é encaixá-las nestes cinco eixos

A influência das socioemocionais cresceu com a produção de pesquisas em áreas diversas, da Educação à Economia e a Psicologia. Elas mostram aquilo que já sabíamos, mas faltava comprovar com análises rigorosas. Dados do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa, sigla em inglês)) - que desde 2015 investiga a influência de competências não cognitivas - reenfatizam a relação na vida escolar: mais autoconfiança, motivação e expectativas levam a um melhor domínio da língua materna, por exemplo. "O fato de alguém ser curioso intelectualmente e gostar de aprender não tem reflexo só na Educação mas também na carreira e na vida", ressalta o psicólogo Filip De Fruyt, professor na Universidade de Ghent, na Bélgica, e pesquisador do eduLab21.

Estudos brasileiros também atestam a importância dessas competências. Alunos mais responsáveis, focados e organizados aprendem em um ano letivo cerca de um terço a mais de Matemática do que os colegas. Essa conclusão foi tirada de uma pesquisa do Instituto Ayrton Senna (IAS), realizada em 2013 com 25 mil estudantes avaliados pela Secretaria de Educação do Rio de Janeiro. Já o desempenho em Língua Portuguesa foi melhor entre quem tinha maiores níveis de abertura a novas experiências, mesmo se vinha de famílias menos favorecidas. "As evidências sugerem que as competências socioemocionais podem ser ensinadas nas disciplinas convencionais se o currículo explicitar tais habilidades", diz Simone André, psicóloga e gerente executiva do IAS.

Esse movimento está crescendo no mundo. Em maio deste ano, especialistas de 24 países discutiram em Paris quais habilidades os estudantes deveriam ter no futuro próximo. Foi a primeira reunião da iniciativa Education 2030, da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Os objetivos são desenvolver uma estrutura de aprendizagem relevante para 2030, estudando as competências e fazendo análises comparativas entre currículos internacionais.

Se essa temática ainda não chegou à sua escola, deve aportar em breve. A versão atual da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) defende o desenvolvimento integral dos estudantes, não apenas a aprendizagem de conteúdos. Nessa perspectiva, as socioemocionais devem ser estimuladas enquanto se trabalha os saberes curriculares com a turma. Elas estão citadas nos itens que compõem as competências gerais e também nas específicas. Em Matemática, por exemplo, estão listados tópicos como: enfrentar situações-problema; investigar, organizar, representar e comunicar informações relevantes, para interpretá-las e avaliá-las crítica e eticamente; agir individual ou cooperativamente com autonomia, responsabilidade e flexibilidade; interagir com seus pares de forma cooperativa; sentir-se seguro da própria capacidade de construir e aplicar conhecimentos matemáticos, desenvolvendo a autoestima e a perseverança na busca de soluções.

Repare que cada palavra destacada no parágrafo anterior é um atributo que pode ser encaixado em um dos cinco eixos socioemocionais (leia acima): Abertura ao novo, Consciência, Extroversão, Amabilidade e Estabilidade emocional. Vale lembrar que essa é apenas uma das formas de organizar essas qualidades, também chamadas de traços de caráter, ou pelo termo soft skills, ou habilidades "suaves". Elas fazem contraponto às hard skills, as "duras" e relacionadas à cognição, ou seja, à capacidade mental de adquirir conhecimentos, ideias e experiências. Outras competências importantes, como a criatividade e o pensamento crítico, são chamadas de híbridas, pois entrelaçam elementos cognitivos e socioemocionais. Para quem toda essa nomenclatura soa como modismo educacional, vale relembrar que esses aspectos sociais e emocionais estiveram no centro da reflexão de pensadores clássicos da Educação, como Lev Vygotsky (1896-1934), Jean Piaget (1896-1980) e David Ausubel (1918-2008). Ao elaborarem seus conceitos, eles defenderam, por exemplo, que a interação, a curiosidade, a relação do eu com o mundo e com o outro e a disposição para alcançar objetivos são instâncias fundamentais da aprendizagem.

Em sala, como fazer

Não existe fórmula mágica, e sim intencionalidade na prática. No Colégio Estadual Chico Anysio, no Rio de Janeiro, a professora de Matemática Denise Oliveira organiza suas aulas com as turmas de Ensino Médio em torno da resolução de problemas. Ao propor os exercícios, ela valoriza as diferentes estratégias e a comunicação delas. "Compreender e fazer-se compreender é um aprendizado importante, que pode ser generalizado para outras disciplinas", diz a docente, que dá autonomia aos alunos para escolherem, na problemateca - um arquivo de situações-problema -, qual item preferem resolver.

Maria Vitória Almeida Santos entrou no 1º ano do Ensino Médio da Chico Anysio há seis meses. "Antes eu não tinha o hábito de fazer cálculo mental, mas agora tento usá-lo o máximo possível. Gosto de ajudar e ser ajudada pelo grupo. Interagimos muito", conta a adolescente de 15 anos, que quer ser engenheira civil. Desenvolver a atitude protagonista, a fé na própria capacidade, a abertura para experiências e a comunicação são intenções integradas à rotina das 40 escolas do Programa Ensino Médio Inovador (Proemi) apoiadas pelo IAS no Estado do Rio de Janeiro. "É preciso reavaliar o mito de que o aluno não é esforçado. Nosso modelo de Educação é que desconsidera seu potencial", afirma Simone, do IAS. 

No Colégio Estadual Chico Anysio, a boa comunicação é valorizada para a resolução de problemas de Matemática

FALA DA ESPECIALISTA

DANA McCOY

Professora da faculdade de Educação de Harvard

Por que as socioemocionais estão em alta no discurso da Educação?

Gestores públicos sempre confiaram às famílias esse tipo de formação. Nos últimos anos, as evidências da Economia, Psicologia e Neurociência confirmaram a ligação entre habilidades cognitivas e bem-estar socioemocional. Por isso, os sistemas educacionais têm a responsabilidade de apoiar as crianças nesse sentido.

Qual sua importância na aprendizagem?

Elas são fundamentais, em particular a autorregulação, capacidade de gerir pensamentos, sentimentos e comportamentos. Ela permite ao aluno prestar atenção, lembrar de regras e informações e controlar seus impulsos. Também faz com que encare melhor situações estressantes, incluindo a pobreza e a violência.

Como o professor pode estimular o autocontrole no aluno?

Além de ensinar a nomear e identificar sentimentos, ele precisa ser um bom modelo. Se os adultos reagem ao estresse de modo desregulado, as crianças internalizarão as mesmas estratégias. Vão tentar resolver problemas com uma briga em vez de conversar.

Como as habilidades contribuem para reduzir a desigualdade?

O nível educacional dos pais influencia nas habilidades cognitivas, como no gosto pela leitura, mas estudos mostram que essa relação não existe para as socioemocionais. Ajudando um aluno a ter autonomia emocional e social, diminuímos a distância que separa ricos e pobres das oportunidades. Perseverança e esforço importam mais do que a facilidade em aprender conteúdos.

 

Fantoches ajudam as crianças a expressar suas emoções no CEI Inês Belarmino, em Petrópolis (RJ)

Considerar as dificuldades dos alunos e os contextos em que vivem é primordial para planejar o trabalho. Em Petropólis, na região serrana do Rio de Janeiro, as crianças da pré-escola do CEI Inês Belarmino falavam pouco e não sabiam expressar seus sentimentos. Todas vêm de famílias sem o hábito da conversa. A educadora Renata Machado conduz a turma de 16 crianças por uma rotina que inclui discussões sobre as emoções e sensações. Além da roda inicial, elas simulam situações com fantoches, escutam histórias e músicas. "Fazemos um mural com as coisas que nos deixam tristes, felizes etc. Aparecem relatos singelos, como 'quando mamãe me deixa dormir com ela' (feliz) e 'quando meu pai me leva para tomar vacina' (triste), até questões sérias, como casos de violência doméstica", diz Renata. Para casa, a professora sugere tarefas em conjunto para estreitar vínculos. São coisas rápidas como traçar o contorno da mão de pais e filhos e compará-los.

As crianças aumentaram seu vocabulário e o conteúdo de suas histórias. "A qualidade da conversação mudou: antes elas respondiam só sim e não às perguntas. Hoje, conseguem contar histórias com detalhes", observa Renata, que cursou o programa Compasso, do Instituto Vila Educação, oferecido na rede municipal. A autorregulação foi outra consequência, já que os pequenos aprenderam a identificar seus sentimentos e acolhê-los, para então lidar com eles.

Cuidados com a prática

Quem vê de fora por vezes julga esse trabalho focado nos sentimentos. Há quem diga que valorizar traços de caráter ou sugerir quais são "recomendados" é um modo indireto de responsabilizar o aluno pelos fracassos na escola. Ou até uma tentativa de mudar sua personalidade em prol de disciplina ou aumento de rendimento. Não é por aí. É preciso equilibrar aspectos, como impulsividade excessiva ou falta de confiança, que afetam a aprendizagem e o bem-estar. Competências socioemocionais e conteúdo caminham juntos. "Ambos são importantes e precisam ser trabalhados de forma intencional e concomitante", enfatiza Ana Luiza Colagrossi, do Vila Educação.

OLHAR DO PESQUISADOR

CESAR A. AMARAL NUNES

Pesquisador associado à Faculdade de Educação da Unicamp

A polêmica das avaliações e lições sobre a prática

A escola é responsável por um aluno ser perseverante, capaz de lidar com adversidades, ter empatia? Pesquisas que acompanharam sujeitos por mais de 35 anos demonstraram que jovens com evidências dessas competências tinham maior probabilidade de ter sucesso profissional e uma vida adulta mais plena do que os que apenas exibiam bom desempenho acadêmico. A equipe do professor James Heckman, Prêmio Nobel de Economia e responsável por esses estudos, publicados na última década, revelou em sua conferência mais recente que "embora exista uma variedade de métodos para medir essas competências, não há consenso sobre quais abordagens são mais adequadas para quais propósitos".

Há muitas polêmicas com relação a avaliações nessa área. As que tomam a forma de testes, além da desconfiança dos educadores, pouco contribuem para apontar caminhos para escolas e sistemas educacionais. Por outro lado, avaliações baseadas em autorrelatos dos alunos sofrem críticas por não serem objetivas o suficiente para orientar políticas baseadas em responsabilização de escolas e educadores. Colaboro com um programa coordenado pela OCDE e que envolve mais 12 países para desenvolver e avaliar criatividade e pensamento crítico com o uso de instrumentos formativos. Os alunos se autoavaliam por meio de rubricas e ficam responsáveis por apresentar evidências que justifiquem a avaliação, contando com devolutivas dos professores (vídeo sobre uso de rubricas). Estuda-se sobre como fazer esse tipo de avaliação utilizando jogos, medidas comportamentais, procedimentos baseados em neurociências ou por meio de problemas dinâmicos apresentados com tecnologia, mas ainda há muito o que avançar.

Resultados de pesquisas recentes e de programas tradicionais nessa área como o Casel e o Second Step, adaptados para nossa realidade por várias instituições, nos permitem tirar algumas lições: o clima e a cultura da escola afetam diretamente o desenvolvimento socioemocional dos alunos; as competências estão inter-relacionadas e não podem ser desenvolvidas como se fossem apenas itens de um currículo; o desenvolvimento delas pode ser intencional, mas se dá paulatinamente, na interação com vivências e depende de reflexão e feedbacks dos professores e colegas; docentes que não têm essas competências não são aptos para desenvolvê-las em seus alunos; e instrumentos de avaliação formativa são necessários. Para muitos, esses elementos podem sinalizar uma cultura escolar completamente diferente da atual, mas ela revela enorme potencial de preparar os jovens para o futuro.

 

Formação ao seu alcance

VÍDEOS

CURSOS

Pelo Brasil, empresas e institutos oferecem programas para redes estaduais, municipais e particulares:

LIVROS

 

Na EM Victor Szczepanski e Souza Silva, em Paulínia (SP), o professor de Língua Portuguesa Diogo Avelino propôs às turmas de 6º a 9º ano produzir curtas sobre temáticas discutidas nas aulas de Convivência Ética. A disciplina foi introduzida na rede após uma parceria de formação do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral (Gepem). Além dos conteúdos, relacionados à produção e leitura de texto, o foco era estimular a colaboração e a responsabilidade. Para isso, o docente deu autonomia, mas atuou como mediador entre os alunos. Ao longo do projeto surgiram problemas de convivência: Kevin Ferreira da Silva, 16 anos, não fez a parte dele e foi questionado pelo grupo do 9º ano, que já tinha se organizado e estabelecido objetivos. Depois da cobrança dos colegas, ele repensou seu papel e se voluntariou para assumir outras atividades.

No mesmo projeto, Maria Eduarda de Oliveira Almeida, a Duda, do 8º ano, não se encaixava em grupo nenhum por causa da timidez. "Não conseguia falar ou interagir com alguém por conta própria. Só queria saber de ficar desenhando em algum cantinho", contou a adolescente de 14 anos. Quando o professor percebeu que ela gostava de desenhar, explicou o conceito de storyboard - uma espécie de planejamento visual de cenas a serem registradas. E a convidou a fazer as ilustrações de todos os grupos. "Comecei novos desenhos e surgiram muitas ideias, tudo compartilhado com os colegas, o que me deixou mais próxima de todos. Fui ficando cada vez mais segura. Me tornei uma pessoa mais extrovertida e criativa", descreve Duda. Quando a qualidade das relações melhora, aumenta a disposição para aprender.

Para ilustrar os storyboards dos curtas, a ex-tímida Duda (à esquerda) interage com os colegas em Paulínia

Percursos para se formar

Até hoje, poucos estudos identificaram quais características os educadores precisam ter para impulsionar o desenvolvimento de caráter do aluno, mas quem não possui uma competência socioemocional dificilmente consegue orientá-las. "Muitos professores não desenvolveram essas habilidades em sua própria trajetória. Por isso, a formação deve oferecer a possibilidade de passar por situações que mobilizam tais valores e refletir sobre eles", diz Sandra Garcia, formadora da Mind Lab, que atua em redes públicas.

Há várias soluções para conhecer as socioemocionais e descobrir como usá-las, porém é preciso ter alguns cuidados, como olhar criticamente para materiais didáticos e treinamentos em vídeo. "Não se pode desenvolver a empatia, por exemplo, em apenas dois meses", aconselha Telma Vinha, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e colunista de GESTÃO ESCOLAR. Outro alerta é sobre a avaliação individual do aluno em relação às competências, considerada questionável (leia acima).

Várias empresas e institutos oferecem formação na área das socioemocionais: fique atento se sua rede é beneficiada e se o programa permite reflexão e sensibilização, sem impor regras e formas prontas de trabalho. Ligado à Unicamp e à Unesp, o Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral (Gepem) há anos orienta profissionais com objetivo de criar um ambiente na escola favorável ao desenvolvimento sociomoral dos estudantes.

O trabalho estimula o protagonismo e a participação dos alunos nas decisões e resoluções dos conflitos, assim como no desenvolvimento da assertividade, empatia e tolerância. "Uma boa formação estimula a participação ativa do professor, num processo de estudo e reflexão sobre si e a prática pedagógica", diz Telma. Isso inclui construir junto com os profissionais da escola quais as habilidades serão trabalhadas com base na realidade da instituição e de seus alunos.

Ilustrações: BRUNO THOFER. Fotos: LUCAS LANDAU, MANU VASCONCELLOS e JEFFERSON DE SOUZA