Ela enfrentou o Escola sem Partido
Gislaine viu no debate de gênero um modo de ajudar os alunos. Com a comunidade, venceu a resistência ao tema
POR: Wellington SoaresEu tinha acabado de arrumar a bagagem para visitar o Colégio Astolpho Macedo de Souza, em União da Vitória (PR). Olho para o meu cabelo no espelho - descolorido, platinado, moda nas boates LGBT do centro de São Paulo - e me questiono como será circular com ele por uma cidade de interior. Começo a repensar as roupas que coloquei na mala. Talvez aquela camisa rosa não tenha sido uma boa opção. Um colega já tinha sido ofendido em uma outra viagem de trabalho pelo mesmo motivo. Não dá mais tempo de desfazer a mala. Sigo viagem.
Chego à cidade já no fim do dia. As ruas de União da Vitória estão escuras e vazias. "Não tem perigo de assalto, não", tranquiliza a professora Gislaine Waltrik. "Só o assédio. Os homens param em seus carros para 'oferecer carona' quando estou voltando da escola depois das aulas da Educação de Jovens e Adultos", me conta enquanto ainda conversamos amenidades. Nos braços, ela carrega os trabalhos dos alunos. São desenhos e mapas do projeto vencedor do Prêmio Educador Nota 10 de 2017. A proposta consiste em abordar gênero e sexualidade nas relações que eles possuem com a Geografia.
"Comecei o projeto em 2007", diz Gislaine. "Vi um aluno chorando durante o intervalo. Perguntei o porquê e ele me disse que haviam chamado ele de gay. Fiquei sem reação." Não para por aí. A docente conviveu com uma sequência impressionante e triste de acontecimentos da vida de seus alunos: são relatos de abuso sexual durante a infância, ataques homofóbicos e até a morte de duas alunas transexuais da EJA.
Esses episódios motivam a professora a tratar o tema em sala de aula. A discussão passa por elementos geográficos. Ao ensinar o conceito de espaço, por exemplo, os alunos são desafiados a pensar os locais em que mulheres e homens são autorizados a circular. Depois, a professora sugere que eles reflitam também como as maneiras de agir esperadas para cada sexo influenciam no modo como se sentem em cada lugar - em casa, na escola, na cidade e assim por diante (leia exemplos ao longo do texto). Para traduzir as reflexões, a volta à linguagem geográfica: mapas, tabelas, relatos e apresentações trazem à tona questões como o machismo, o assédio e a LGBTfobia. A abordagem é simples, mas se destaca pela coragem nesse contexto em que vivemos.
O trabalho encantou os selecionadores do Prêmio Educador Nota 10. Acompanhei a discussão que culminou na seleção dos dez vencedores, no fim de julho. A selecionadora Sueli Furlan, professora do departamento de Geografia da USP, parecia nervosa. Não é o habitual. Ela sempre foi a especialista mais confiante ao defender os projetos que avalia. "O trabalho da Gislaine é muito sólido e muito delicado. Mas não sei se devo indicá-lo para os ganhadores. Não gostaria de expô-la", ela disse. A discussão entre os especialistas era justamente sobre essa questão. "Há grupos que podem persegui-la", ponderou outra especialista.
A estratégia de perseguição
Lei da mordaça, censura, perseguição: é assim que os professores se referem ao projeto Escola sem Partido (ESP), que tem ganhado força no país desde 2014. Era a ele também que os selecionadores se referiam. No site oficial, o grupo diz defender a pluralidade de ideias nas escolas. Na prática, mobiliza militantes para denunciar e atacar professores que tratem de temas como direitos humanos, política e, é claro, gênero e sexualidade. "Se essa lei existisse aqui em União da Vitória, eu já estaria presa", brinca a professora Gislaine. São duas as estratégias mais utilizadas pelo ESP: a primeira é a intimidação jurídica. Em seu site, o grupo encoraja simpatizantes a imprimir uma carta e enviá-las a docentes que abordam assuntos de que o ESP discorda. "Não há valor legal nenhum, mas serve como intimidação", explica Rafael Kirchhoff, presidente da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da Ordem dos Advogados do Brasil do Paraná (OAB-PR).
A segunda estratégia é incentivar a criação de leis que institucionalizem o programa. O primeiro local a aprovar um projeto do tipo foi Alagoas, no início de 2016, seguido por diversas cidades país afora. Recentemente, em Campinas e Jundiaí, municípios próximos a São Paulo, propostas similares avançaram nas câmaras de vereadores. A validade dos projetos ainda está em discussão pelo Supremo Tribunal Federal (STF), mas a sinalização é de que eles vão contra a Constituição.
Por que - e como - falar de gênero
Mesmo com o risco de intimidação, Gislaine não deixa de acreditar na importância do assunto. Há duas motivações principais. A primeira são as histórias de seus alunos. São casos como o de Claudemir Gomes Junior, 23 anos e hoje aluno da EJA, o 1º ano do Ensino Médio. Ele abandonou o ensino regular após sofrer um ataque homofóbico que o deixou com fraturas múltiplas espalhadas pelo corpo. Também é o caso de estudantes como Gabrielle Lima Melle, 17 anos, que sofre assédio todos os dias quando caminha pela rua.
A segunda motivação são as pesquisas que comprovam a importância de se ensinar sobre gênero e sexualidade. "Desde, pelo menos, a modernidade, o conceito de gênero é central na formação das sociedades e na vida cotidiana das pessoas", afirma Mooni Moallem, professora da Universidade da Califórnia em Berkeley, nos EUA. A docente faz parte de um conjunto de especialistas que pesquisam sobre o tema (leia quadro abaixo). Todas as evidências indicam: gênero é uma teoria e uma questão social.
Ainda assim, o ESP insiste na existência de uma "ideologia de gênero". A ideia é que, ao discutir essas questões em sala, educadores estariam "fazendo a cabeça" de crianças e jovens. A tese é falsa: não se muda a orientação sexual de alguém. Pelo contrário, a informação é a principal arma para desfazer preconceitos e diminuir o sofrimento ligado à definição da sexualidade. No artigo Da "Doutrinação Marxista" à "Ideologia de Gênero" - Escola sem Partido e as Leis da Mordaça no Parlamento Brasileiro, o professor da Universidade de Brasília (UnB) Luis Felipe Miguel, crítico ao ESP, esclarece a estratégia usada pelos militantes: tirar os dados científicos de cena e transformar a discussão em uma questão moral, comparando os estudos de gênero ao encorajamento da sexualidade precoce, da pornografia e até da pedofilia. Novamente, o argumento é falso. Os programas pedagógicos consistentes apresentam informações adequadas a cada faixa etária.
GÊNERO NÃO É IDEOLOGIA, É CIÊNCIA
O Escola sem Partido tenta reduzir a questão de gênero à militância feminista e LGBT. O tema ultrapassa - e muito - esses espaços. As pesquisas envolvem cientistas de diversas áreas que investigam a presença do conceito em seus objetos de estudo. Pode acontecer na Psicologia, por exemplo, ao pesquisar como a moral é constituída nos gêneros. Ou na História, ao observar os papéis das mulheres em diferentes contextos. Leia, abaixo, quatro exemplos de evidências coletadas pelas pesquisas científicas.
- Genética
Um estudo da Universidade da Califórnia em Los Angeles descobriu que questões químicas - genéticas ou influenciadas pelo ambiente - podem alterar como determinados genes se manifestam e explicam a relação genética e ambiental na formação da sexualidade. Leia mais em: bit.ly/origem-sexualidade
- Economia
Não são poucas as pesquisas que mostram que o mundo é feito para homens. Um levantamento da ONG Oxfam mostra que, no Brasil, as mulheres ganham 62% do valor dos rendimentos dos homens e que só em 2047 esse número será igual. Leia mais em: bit.ly/diferencas-generos
- Antropologia
As diferentes maneiras como homens e mulheres se comportam são elementos criados socialmente. Em seu mestrado pela USP, Michele Escoura identificou que personagens de séries de TV e filmes influenciam como as crianças constroem e experimentam identidades de gênero. Assista a entrevista em bit.ly/entrevista-princesas
- Psiquiatria
Jovens LGBT apresentam mais depressão, ansiedade, transtorno de estresse pós-traumático e suicídio. Um estudo americano mostrou que pensamentos suicidas são três vezes mais comuns entre jovens LGBT do que em jovens heterossexuais. Leia mais em: bit.ly/saude-lgbt
Na escola, pluralidade e parcerias
"Gislaine, você não sabe o que aquele aluno aprontou hoje", confidencia uma professora enquanto passamos o intervalo com os docentes. Durante um debate sobre cultura do estupro, levantado pelas meninas da sala, um jovem discordou. Defendeu a castração química e usou o argumento:
"Se as 'coisas' fossem cortadas fora, eu pensaria duas vezes antes de fazer algo". Quando a professora perguntou se aquele tipo de punição era necessária para promover o respeito, o aluno perdeu o controle. "Me xingou de tudo e me mandou tomar naquele lugar", conta ela constrangida.
Relatos assim são raros na escola de Gislaine e são tratados como um caso de agressão. O que sempre surgem são opiniões discordantes. Nada mais natural. "O objetivo da aula é fazer com que todos expressem suas opiniões, desde que bem fundamentadas", conta. Wellerson Cordeiro, 16 anos, é um exemplo. "Não concordo com o ensino dessas questões para crianças muito pequenas, mas passei a entender coisas que me ajudam a pensar na relação com minha namorada", diz.
A abordagem com as famílias também é cuidadosa. O trabalho de Gislaine é conhecido e compartilhado com os responsáveis. "Fizemos uma apresentação ano passado e os pais vieram prestigiar e conhecer", conta ela. Na discordância, uma conversa sincera costuma resolver o desentendimento: a professora explica a importância do tema, tira dúvidas que os pais possam ter e apresenta o documento Desafios Educacionais Contemporâneos (bit.ly/Desafios-PR), parte do currículo da rede e que inclui essas discussões.
Fato é que o tema já está presente na realidade dos alunos. Quando os entrevistei, não foram poucos os exemplos de situações listadas por eles - de casos de novela a histórias de colegas que se descobriram LGBT. Foi então que começou a me parecer bobo o receio da homofobia que tive ao iniciar a viagem. Com diálogo, conhecimento e muita coragem para abordar temas difíceis, mesmo quando o contexto tenta impedir, professoras como Gislaine ajudam a mudar o mundo. Desassombram a discussão sobre gênero e sexualidade e ajudam jovens de cabelo platinado e camisa rosa a andar tranquilos por onde quiserem.
Fotos: MARCELO ALMEIDA