Pap Ndiaye: "Não nascemos racistas, nos tornamos racistas"
Doutor em História e pesquisador do Instituto de Estudos Políticos (IEP) de Paris, especialista em Relações Raciais fala sobre o desafio de superar o racismo na Educação
POR: NOVA ESCOLA, Lúcia MüzellEstá na Constituição brasileira que a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei. Também consta no documento que um dos fundamentos da República Federativa do Brasil é promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. No entanto, sabemos que atitudes racistas e discriminatórias ocorrem na escola, na rua e em casa, envolvendo crianças, adultos e idosos. Diversas situações ficam impunes, são silenciadas ou até encaradas com certa naturalidade por algumas pessoas.
Na opinião de Pap Ndiaye, que já visitou o Brasil algumas vezes para proferir palestras sobre o tema, há muito a fazer a respeito nas escolas, desde a Educação Infantil até o Ensino Superior, seja por meio de ações desenvolvidas em sala de aula, seja com políticas públicas.
Preconceito racial é algo que se aprende?
Pap Ndiaye Existe um grande debate a respeito. Nelson Mandela (1918-2013, ex-presidente da África do Sul e líder do movimento anti-apartheid naquele país) dizia que o racismo é um aprendizado. Concordo. Não nascemos racistas, nos tornamos racistas. O problema é fruto das disposições sociais e a aprendizagem pode acontecer muito rapidamente, logo na infância.
A origem do racismo se dá por causa da escravidão dos negros africanos?
Ndiaye Não, porque antes deles outros povos foram escravizados. Em todas as épocas havia escravos de todas as cores, em todas as regiões do mundo. Historiadores relatam que o racismo, como conhecemos hoje, não existiu na Antiguidade e na Idade Média. A cor da pele tinha muito menos importância do que a do cabelo, por exemplo. Tal como na atualidade, o racismo emerge nos séculos 16 e 17 com a escravidão de pessoas negras, criada com a expansão colonial europeia e as rotas transatlânticas. O que hoje chamamos de racismo é um esforço para justificar a redução à escravidão da população africana. Ou seja, há uma relação profunda entre racismo e escravidão, mas a escravidão moderna, não a praticada na Idade Média e na Antiguidade.
No Brasil, os maiores alvos do preconceito são os negros, pobres e moradores de regiões desfavorecidas. É possível dizer que o contexto social agrava esse problema?
Ndiaye Certamente, os pobres podem ser vítimas de experiências racistas muito violentas. Um caso claro está relacionado à polícia, que é discriminatória com frequência. Ao mesmo tempo, a condição social tem a ver com as questões raciais. Ou seja, de acordo com a classe a que pertence, o negro experimenta o racismo de diferentes formas. Se ele for rico, também pode ser vítima de ações racistas. No mercado de trabalho, se uma negra quiser trabalhar como operadora de caixa de um supermercado, tudo bem. Porém, se quiser ser a diretora, certamente haverá problemas, ainda mais se for em uma rede famosa. E mais: estudos sugerem que, nos Estados Unidos, quanto mais se sobe na pirâmide social, mais se está suscetível às discriminações.
As escolas francesas recebem alunos marroquinos e argelinos, por exemplo. Já as brasileiras, haitianos e bolivianos. Mas a convivência entre diferentes nacionalidades não parece estar minimizando o preconceito. Por quê?
Ndiaye A ideia de que a dimensão multicultural das sociedades pode reduzir o racismo de forma mecânica, é muito simplista, infelizmente. O problema não desaparece só porque há crianças de todas as cores nas classes. Com certeza, vale mais ter estudantes de várias cores de pele do que apenas de uma, mas isso não é a única condição para diminuir o racismo no ambiente. O mesmo pensamento vale para os programas escolares brasileiros para valorizar a África e as contribuições culturais e históricas daquele continente. Eles são importantes, mas não podemos achar que terão o efeito de acabar com o preconceito racial. Não é porque aprendemos coisas sobre a história africana que nos tornamos mais abertos ao outro, sem preconceitos.
O racismo de um país reflete na Educação? De que maneira?
Ndiaye Sim. Na França, por exemplo, a escola é percebida como o lugar onde esse problema não existe. Os professores dizem que não são racistas e adotam um discurso antirracista. Mas não é bem assim. A questão não tem origem simplesmente na boa vontade das pessoas. Não basta dizer que é para ser. É necessário que as práticas sejam coerentes com a fala. Os educadores, por exemplo, podem ter comportamentos discriminatórios ao orientar os estudantes sobre as possibilidades de carreira. Para as de ensino técnico, muitos encaminham os alunos que não são brancos. Para os demais, por sua vez, é recomendado um curso universitário. A escola não está imune a comportamentos discriminatórios. Mas isso ainda não é objeto de estudos aprofundados na França, inclusive porque há uma resistência forte à ideia de que essa instituição possa realmente produzir discriminações.
Como os profissionais ligados à Educação podem contribuir para combater o racismo?
Ndiaye Investigando sobre a existência do racismo e de discriminações no ambiente escolar. Também é importante ter um verdadeiro programa sobre o tema que seja integrado ao currículo das disciplinas.
É válido trabalhar ações contra preconceitos e racismo desde a Educação Infantil?
Ndiaye Claro que sim. É necessário, obviamente, adaptar a linguagem para que as crianças compreendam o assunto. Pesquisas comprovam que desde a primeira infância as questões de racismo podem se apresentar nos corredores da escola. As crianças ouvem coisas em conversas em casa e as repetem na escola, porém sem más intenções. Sendo assim, o papel dos educadores é essencial. Eles devem prestar atenção no que os pequenos falam e não achar que só porque têm pouca idade não sabem o que estão dizendo. A ideia não é punir ninguém. Mas, sim, explicar, conversar a respeito.
Ter bonecas negras e livros com personagens de diversas raças na escola à disposição estimula as crianças a lidar com as diferenças desde cedo?
Ndiaye Todos os esforços de Educação e de prevenção são válidos. Porém, nos livros infantis, por exemplo, a predominância de personagens brancas continua. Quando há figuras não brancas, elas vivem em um mundo exótico, e apenas com pessoas semelhantes a elas, por exemplo.
Há professores que desejam abordar a questão do preconceito, mas reclamam que as famílias dos estudantes são preconceituosas. O que fazer nesse caso?
Ndiaye Eles não podem recuar. Há chances de que, apesar do contexto familiar, as crianças construam uma personalidade própria, diferente da dos pais. A escola precisa trabalhar a interdição moral do racismo, quer dizer, ensinar que se trata de uma proibição imposta com autoridade. Os alunos precisam aprender que frases com essa conotação são não só ruins, são proibidas. É preciso explicar isso a todos e os educadores têm essa obrigação. Educar também tem a ver com explicar aos estudantes que não podem dizer ou fazer certas coisas. Na França e no Brasil, racismo é ilegal, não somente uma ideia ou um direito de expressão. Não se pode dizer "sou racista e me comporto como tal". Não se trata de uma questão de gosto, de inclinação. É um assunto jurídico.
Usar filmes que abordam a questão da escravidão é válido para conversar com os estudantes sobre preconceito racial?
Ndiaye Sim. Mas não somente aproveitando a ocasião de um lançamento no cinema sobre o passado para levar o tema até a classe. Temos de criar situações e falar da atualidade para levantar o debate. O racismo não é o passado do Brasil ou da França, é o presente.
Pap Ndiaye fala sobre o sistema de cotas nas universidades e a questão do preconceito:
Universidades brasileiras possuem o sistema de cotas para negros, na maioria pobres e com histórico escolar desfavorável. Ele ajuda a resolver a questão do racismo e dos preconceitos em geral?
Ndiaye As políticas de ações afirmativas, tal como essa, são, na minha opinião, excelentes, embora onde quer que esse tipo de ação tenha sido instaurada sempre provocou críticas. Um dos argumentos consiste em dizer que essas iniciativas geram sentimentos de ressentimento e de frustração nos brancos, que dizem: "Vejam, só os negros têm vantagens, ao ganhar as melhores vagas sem merecer". Mas hoje temos conhecimentos e informações suficientes para saber que o racismo recua com ações como essa. Ele diminui porque os brancos constatam que os colegas negros são alunos estudiosos e que, quando entram na universidade por uma cota, se sentem estimulados a estudar mais, não menos. Os cotistas precisam se esforçar para compensar o atraso em relação aos demais. Isso contribui para a emergência de uma classe média superior negra, que ajuda a acabar com a ideia de que os negros são pobres, vivem nas favelas e só têm direito a ser campeões de futebol ou músicos, se quiserem ter sucesso.
Qual é o sentimento dos negros, ao entrarem na universidade por uma porta diferente da tradicional?
Ndiaye Não podemos ignorar o fato de que é provável acontecer um choque cultural. Por causa dele, no Instituto de Estudos Políticos (IEP), por exemplo, muitas das pessoas pobres que ingressam nos cursos abandonam as aulas nas primeiras semanas. Por isso é importante compreender que a verdadeira política de ações afirmativas consiste não apenas em dizer: "Sejam bem-vindos!". E depois: "Até logo, virem-se!". Ela consiste em acompanhar esses alunos. O nível acadêmico deles pode ser inferior em diversas áreas, como nas línguas estrangeiras. Nesse caso, em particular, é preciso oferecer cursos à parte. É necessário também acompanhá-los ao longo dos anos, inclusive psicologicamente, para que superem o choque de estarem em um mundo que não tem nada a ver com o que conheciam até então. Há outras dificuldades, mas, em geral, o balanço é positivo, porque muitos desses jovens se sentem orgulhosos e percebem que podem ser bons. Temos de confiar no cotista.
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